Educação,

Uma tarefa sem fim

Criado a partir de conversa de avó com netas, livro aborda conceitos e desafios da vida política

29out2018 | Edição #16 out.2018

Política não é assunto de criança. Tempos atrás, também não era assunto de mulher nem de analfabeto. Hoje, em certos territórios, não é assunto de imigrante. Noutros, não é da conta de ninguém — a não ser de alguns poucos políticos autoritários, é claro.

Mas se o homem é por natureza um animal político, como afirmou Aristóteles, a política é do interesse de todos, tanto por seu impacto nos diferentes modos de vida e nas relações entre eles como na forma como restringe ou amplia perspectivas futuras. 

Faz sentido, portanto, pensar que quanto mais cedo o tema for apresentado e debatido, assim como as questões éticas que o envolvem, melhor. 

Afinal, crianças em idade escolar potencialmente já identificam diferenças e injustiças e experimentam responsabilidades e ação coletiva, seja na reclamação em grupo sobre uma questão mal colocada em prova, seja na hora de fazer bullying com um colega (ou de ser vítima dele). A escola é, em geral, a primeira instituição que regula a vida dos pequenos cidadãos modernos, e a vida dos estudantes está recheada de conceitos e práticas políticas.

É a partir deste entendimento e das intrigantes perguntas feitas por suas duas netas — uma de oito e outra de catorze anos — que a filósofa francesa Myriam Revault D’Allonnes escreveu A política explicada aos nossos filhos.

Professora emérita da École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde leciona teoria política, e pesquisadora associada do Centro de Pesquisas Políticas da Science Po, em Paris, D’Allonnes também coordenou uma aclamada coleção de filosofia para crianças publicada pela Gallimard.

Tamanho gabarito permitiu a ela responder aos questionamentos das netas de maneira simples e direta, traduzindo a complexidade do tema por meio da história e da prática. Com isso, D’Allonnes torna palatável, para crianças e adultos, um tema indigesto tanto quanto onipresente.

O conteúdo é organizado em perguntas (das netas, Sarah e Léa) e respostas (da avó, D’Allonnes), em que a linguagem oral foi preservada, o que dá ao leitor a sensação de ser o ouvinte de uma conversa íntima e familiar, mas cheia de interesse público.

As netas complicam a vida da autora ao levantarem questões como: “O que é poder?”; “Se somos todos livres e iguais, por que precisamos de chefes e por que os obedecemos?”;  “Para que servem os partidos políticos?”; e ainda “Como podemos participar da vida política e da democracia se não somos filiados a nem militantes de nenhum partido?”.

Muitas vezes, a resposta é seguida de novo questionamento. D’Allonnes evoca o suprassumo da filosofia política, de Platão e Aristóteles, a Thomas Hobbes, Montesquieu e Rousseau, passando por Hannah Arendt. Discorre sobre os conceitos de poder, autoridade, regime, legitimidade, opinião pública e separação de poderes.

E, a partir da etimologia das palavras política (polis, em grego, significa “cidade”) e democracia (demos, em grego, significa “povo”), explica que política não é assunto de especialistas. Pelo contrário, fazer política é criar uma maneira de viver junto, participar dessa vida em grupo e conviver com as diferenças. Nessa diversidade, defende a pesquisadora, reside a riqueza da nossa sociedade que, diante das discordâncias e do debate de ideias, conseguiria estabelecer acordos e prosperar, beneficiando a todos.

Resgatados a origem e os princípios do tema, D’Allonnes apresenta como o contexto do mundo globalizado e certas práticas políticas contemporâneas perniciosas parecem ter desconstruído alguns sentidos originais do regime democrático, gerando frustração, descrédito, medo e raiva.

Legitimidade

Trata-se, segundo a autora, da grande ameaça dos dias de hoje. “Os cidadãos, desestimulados e decepcionados com a política tal como é praticada”, passam a acreditar em líderes demagogos, que lhes prometem salvação para todos os problemas.

A especialista alerta: as eleições não são, por si só, garantia de nada. Da ascensão legítima do Partido Nazista, em 1933, às chamadas “democracias iliberais” ou “democraturas”, como as de Pútin, na Rússia, ou de Erdogan, na Turquia, os exemplos são muitos.

Segundo D’Allonnes, a democracia está em constante mudança e requer, cada vez mais, cidadãos conscientes de suas responsabilidades, que acompanhem, controlem e critiquem os políticos. Sem educá-los para isso, diz, tudo fica mais difícil. Política, portanto, é assunto de criança, sim.

Quem escreveu esse texto

Fernanda Mena

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.