Editora 451,

Noções de republicanismo

Heloisa Starling recupera a tradição republicana dos tempos da colônia e amplia a compreensão de episódios-chave de nossa história

29out2018 | Edição #16 out.2018

O republicanismo tem raízes sólidas plantadas na história dos conflitos contra os privilégios e na evolução das ideias democráticas. É um dos grandes legados do Iluminismo. Ser republicano é ser portador de uma série de valores -— igualdade, liberdade e fraternidade — que surge com o liberalismo iluminista e vai além dele na construção de correntes democráticas, libertárias, pluralistas e socialistas.

Os repúblicos devem ser iguais no acesso aos direitos à justiça, à representação política, à educação e às profissões. Há quem diga que República não é sinônimo de democracia. Não é mesmo. Mas foi o movimento republicano que forçou as monarquias a se democratizarem. Daí nasceram modelos híbridos que, preservando o poder monárquico, o limitam, submetendo-o ao Parlamento. Os parlamentos foram se tornando mais representativos com os avanços rumo ao sufrágio universal. Repúblicas autoritárias, sem voto, sem participação e sem direitos civis não são mais que restos degradados do que um dia foi ou quis ser República.

Ser republicano no Brasil colônia, de Heloisa Starling, busca o republicanismo autêntico nas raízes remotas do Brasil para entendermos a vacuidade de nosso projeto republicano. É leitura na qual não se perde o tempo dedicado a cada linha. Um ensaio histórico de primeira grandeza e rara qualidade literária. Prosa fina e refinada, literatura não ficcional, que prende e cativa o leitor com uma boa narrativa, emocionante, lances inesperados e grandes personagens. De quebra, os fatos pesquisados de nossa história são narrados de uma perspectiva inovadora.

Heloisa Starling nos entregou seu livro mais criativo e ousado até o momento. Nele, ela busca os significados da noção de República sem se perder nas brumas da complexidade teórica, ou nas minúcias do detalhe histórico. A pesquisa é minuciosa, e a teoria, examinada com exatidão. Todavia, ela nos serve a essência do que capturou na vasta rede que lançou sobre a literatura, os documentos e os fatos da época. Num texto no qual a poesia muitas vezes sublinha a análise, trata as ideias com leveza e precisão, e os fatos históricos como eles realmente foram, cheios de movimento, intensidade e fúria.

De saída, saca uma citação de Frei Vicente do Salvador, de 1627, sobre o que é ser repúblico, a qual traça inequívoca fronteira entre o público e o privado. É dessa separação seminal entre o público e o privado que se alimenta o republicanismo. A autora volta-se para o passado remoto do Brasil, em busca das raízes perdidas de nosso ideal repúblico, e nos enche de esperança e sonho.

O Brasil era uma colônia escassamente povoada. Mas, já ali, Heloisa Starling encontra razões para uma constatação inquietante: “nos quatro séculos que nos separam de frei Vicente do Salvador e de padre Antônio Vieira, permanece renitente a evidência de que chamamos por República um esboço que não encontrou forma. E a implacável natureza redutora e deficitária de sua República fica ainda mais reveladora quando compartilhamos, no presente, o sentimento de crise e da incerteza política, e experimentamos a estranha sensação de que o tempo cronológico está girando fora dos eixos”.

A poesia muitas vezes sublinha a análise de Heloisa, que trata os fatos históricos como realmente foram, cheios de movimento, intensidade e fúria

Lembrou-me uma passagem de José Eduardo Agualusa, em Um estranho em Goa, na qual o escritor Mário Cabral de Sá comenta um opúsculo de Tristão Bragança da Cunha dizendo que a “Índia, antes dos ingleses, era apenas uma noção, não era uma nação”. Volta e meia me passa pela cabeça que somos, ainda hoje, sob muitos aspectos, mais uma noção de Brasil, fragmentária e divergente, do que a nação Brasil. Talvez uma das explicações esteja no fato de que passamos tempo demais brigando com nossos fundadores, rejeitando-os por estarem em desacordo com a perspectiva contemporânea de cada um de nós. 

Ora, nenhum herói é destituído de incoerência e contradição. Se escarafuncharmos a biografia de qualquer herói, nosso ou de outros povos, haveremos de encontrar razões para deles desgostarmos. Mas isto não exclui o respeito histórico pelo papel que desempenharam na construção coletiva. É da natureza humana sermos esse cadinho de emoções e impulsos que divergem. São essas fricções internas que nos movem, para o bem e para o mal. São elas também que nos impulsionam à rebeldia, à insurreição, à aventura, instilando-nos coragem para nos sublevarmos. Neutralizam o instinto de sobrevivência a nos empurrar sempre para a zona de conforto.

Heloisa Starling não briga com nossos fundadores. Ao contrário, trata-os com respeito e busca identificar aqueles outros que, embora não tenham conseguido realizar seus planos repúblicos, são autores do legado do republicanismo brasileiro que ainda pode ser resgatado. Dedica-se a abrir nossa memória atrás de uma tradição esquecida e que nos tem feito enorme falta. Para fazê-lo, caminha por duas trilhas, a das ideias republicanas e a das revoltas por elas estimuladas. Revisita insurreições e revê seus inspiradores e suas lideranças, legítimos fundadores da tradição brasileira.

Democracia

A noção de república ameaça os governantes e mobiliza os conjurados. Esses conflitos, embora registrados nos livros de história, não têm sido claramente associados aos ideais republicanos. Mais ainda, essa revisão histórica nos revela personagens esplêndidos e a “perigosa” associação entre República e democracia em movimento. “A ideia de democracia era ameaçadora por aquilo que evocava: a igualdade entre diferentes”, escreve. Levanto os olhos do computador e relembro as últimas horas de debate político-eleitoral entre nós e não resisto à conclusão de que essa ideia continua a ser vista como ameaçadora por muitos.

É elucidativo o exemplo que a autora nos dá de como as autoridades descreviam o quilombo de Palmares. Era muito mais que um quilombo, pois havia nele “todos os arremedos de qualquer República”, registrava a Memória encomendada pelo governador de Pernambuco, d. Pedro de Almeida. Palmares surgia na Memória como uma confederação desenhada para buscar o exercício do governo em um Estado livre. Não era o Palmares, eram “os Palmares”.

A Revolta da Cachaça foi a primeira rebelião de colonos na América Portuguesa. Não merece perder-se da memória dos brasileiros

O republicanismo estava por trás da investida dos fazendeiros armados que atracaram na praia da Piaçaba, em frente ao largo do Carmo, no velho Rio de Janeiro, hoje praça Quinze. Era a Revolta da Cachaça tomando as ruas da cidade. Sua inspiração? A mesma que provocou a Revolta do Chá nas colônias inglesas e deu origem à Revolução Americana, o excesso de tributos. No caso, além do imposto, um decreto da Coroa, assinado pelo governador Sá e Benevides, em 1660, que proibia a produção de cachaça para favorecer o consumo de vinhos. Uma revolta contra um protecionismo às avessas, do produto metropolitano contra o produto local.

A Revolta da Cachaça foi a primeira rebelião de colonos na América Portuguesa de que se tem notícia, nos informa Heloisa. Não merece perder-se da memória dos brasileiros e, menos ainda, dos cariocas. Depois dela, o único levante a também contestar a autoridade da coroa seria a chamada Guerra dos Mascates, que começou com a sedição de 1710, em Olinda, e que levaria à sublevação de Pernambuco e à posterior decretação da República de Pernambuco, em 1817. Ela a considera nossa primeira verdadeira conjuração, no sentido de movimento de contestação à força do poder do rei. Entre uma e outra revolta, houve muitas outras, em Sergipe, Pernambuco, Maranhão, Minas e Bahia, porém sem confrontar diretamente a autoridade da Coroa. 

Em 1710, manifestou-se, ostensivamente, pela primeira vez, a disposição de romper com Portugal. Começava a crescer a insidiosa semente da independência, elemento essencial para a construção da nação. Em outras palavras, a semente que, germinando, transforma a noção da terra em nação. A sedição acabou sufocada pela repressão de 1712-15, após a rebelião dos mascates ocupar Recife, eclodindo combates pela capitania afora. Deixou-nos uma penca de fundadores, entre eles José Tavares de Holanda e Bernardo Vieira de Melo, que protagonizaram a ideia de autonomia de Pernambuco e criação de uma república aos moldes da República de Veneza. 

Minas

Eles e outros, para escapar à repressão, dispersaram-se pelo Caminho Geral do Sertão, o caminho dos currais do São Francisco. Suas ideias tomaram de Minas a estrada.

Minas não era uma terra de gente acomodada. Era terra de sediciosos. As revoltas pipocavam: Catas Altas, Pitangui, Vila Rica e os Motins do Sertão. Os caminhos de Minas eram insurgentes. E foi nos serões letrados daquela Vila Rica acostumada a amotinar-se, naquelas Gerais insubordinadas, que Tomás Antonio Gonzaga juntou-se a outros homens de letras, para elaborar mais uma noção de república. No vocabulário do republicanismo de 1789, de Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa e Alvarenga Peixoto, definia-se um significado que unia bom governo, justiça, pátria e América. 

A república das letras, sociedade literária para hospedar os serões rebeldes, ia se confundindo com a suspeita de uma possível república na América, livre dos laços de Portugal. Era o berço da Conjuração Mineira. Uma revolta embrulhada em ideias renascentistas que nos legou pelo menos dois outros fundadores. O mais celebrado deles foi Tiradentes, homem de muitas habilidades e atributos, que podia ter muitos defeitos, mas certamente foi um notável propagandista das ideias libertárias de seu tempo. A outra foi a destemida Hipólita Jacinta Teixeira de Mello. Mulher extraordinária, que abriu sua fazenda para os conjurados, dando-lhes não só abrigo, mas um ponto estratégico para a logística do movimento. Destituída de suas posses como punição pelo ato de traição à Coroa, usou de astúcia e malícia para, em alguns anos, tudo recuperar.

Esmagada a Conjuração Mineira, diz Heloisa evocando Cecília Meirelles, “sobraram só as ideias e a estranha potência das palavras”. As palavras voam e viajam e sublevam outras partes inquietas da colônia Brasil, no Rio de Janeiro e na Bahia. O Rio de Janeiro iria demonstrar essa potência das palavras, reunindo-se na Sociedade Literária, criada por Silva Alvarenga, que merece ser objeto de orgulho nacional. Foi um grande movimento subversivo, usando ideias no lugar de armas que espalhou os ideais republicanos pela cidade. O poeta Manoel Inácio da Silva Alvarenga é outro fundador da noção/nação Brasil que merece celebração. No Rio, houve uma conjuração de ideias que circulavam entre a Sociedade Literária e as boticas, incendiando as mentes e consolidando as convicções republicanas e democráticas. Ali se combinam, com destemor, até no palco da Devassa, República e democracia. A poesia e a política se entraçavam naquele remoto Brasil de modo emocionante, nas penas e na ação de Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manoel da Costa e Silva Alvarenga. “Em todos eles a poesia se confunde e importa para a compreensão de um projeto político.” No caso de Silva Alvarenga, poesia e política desenhavam a utopia, o “louco desejo de liberdade”, o sonho da República do Togahy. 

Em Salvador, seriam os panfletos a principal fonte de ideias para a Conjuração Bahiense. A censura, como sempre, atiçava o desejo de ler e alimentava sua circulação de mão em mão. É notável a presença dos livros manuscritos descrita pela autora, uma espécie de samizdat avant la lettre

Os fundadores dessa tradição republicana democrática e igualitária nos inspiram a continuar a construção de nossa República inacabada

Heloisa vai nos contando estes e outros episódios de revolta colonial de inspiração republicana, com maestria e paixão, para nos dizer que o Brasil tem uma longa tradição república, associada à aspiração democrática e igualitária. Não são ideias ao vento. Elas circulam nas mãos e nas cabeças de gente concreta, homens e mulheres, e ceifam as vidas dos mais destemidos. Nesse percurso, elas vão sendo apropriadas pelas elites mais conservadoras e esvaziadas de seu conteúdo verdadeiramente transformador. 

A República de 15 de novembro nasce oca dessas ideias e oligárquica. Os fundadores dessa tradição republicana democrática e igualitária nos inspiram a continuar a construção de nossa República inacabada. 

A caminhar da noção que temos de República para sermos uma Nação verdadeiramente republicana. Das páginas de Ser republicano no Brasil Colônia sai a potência das ideias e das palavras para nos consolar e dar esperanças em tempos de tanto desencanto.   

Quem escreveu esse texto

Sérgio Abranches

Escreveu Presidencialismo de coalizão (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.