Direito,

Vida digital: modo de usar

Jurisprudência do Marco Civil da Internet é comentada em livro por alguns de seus idealizadores

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

Quem deve responder por danos provocados por comentários feitos em artigos publicados na versão eletrônica de um jornal? O veículo é obrigado a fazer um controle dos comentários postados? Quem é responsável pela veiculação de um vídeo que viola direitos autorais em uma rede social? O bloqueio de aplicativos como o Whats-App é medida adequada?

Em junho de 2014, entrou em vigor o Marco Civil da Internet, para estabelecer princípios, garantias e direitos para o uso da rede no país. Essa lei, de nº 12.965, tem enorme relevância para todos os cidadãos e muito especificamente para os usuários da internet. Foi denominada Marco Civil por se contrapor a iniciativas legislativas anteriores, de criminalização de atos praticados na internet. Basicamente, trata-se de uma lei que garante direitos, em vez de restringir liberdades. E, entre os direitos que protege, sobressai a liberdade de expressão.

Dois dos organizadores do livro, os professores da UERJ e diretores do ITS (Instituto Tecnologia e Sociedade), Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos, contribuíram de modo destacado para a ideia de que, antes de criminalizar, fosse promulgada uma lei que fixasse direitos e responsabilidades na utilização dos meios digitais. Os dois também tiveram participação direta na elaboração do projeto de lei enviado pelo Executivo ao Congresso. Daí já advém a relevância da obra, que conta também com a organização de Celina Bottino, mestre em Direito por Harvard e outrora pesquisadora da Human Rights Watch em Nova York. 

Lançado quase quatro anos depois da promulgação da lei — quando já se faz mais madura sua compreensão e aplicação —, o livro analisa o seu impacto nos tribunais. Interessa, evidentemente, a juristas, advogados e magistrados, mas leigos podem compreender muito bem do que se trata. 

É muito interessante a abordagem, no segundo capítulo, sobre o bloqueio de aplicações. São examinados dois pedidos de bloqueio do Facebook (ambos de SC) e quatro do WhatsApp (PI, SP, SE e RS). A peculiaridade dos casos, para além das situações, que em si são até engraçadas, é que as ordens de bloqueio foram gerais, aplicadas no país inteiro, daí terem ficado famosos. O livro assinala o enorme impacto dessas medidas, não apenas para os usuários, mas para a economia, já que os aplicativos também são utilizados no comércio, na indústria e até pelo próprio Judiciário. Os autores citam um estudo que estima em R$ 360 milhões o custo das ordens de bloqueio do WhatsApp. Trata-se do principal serviço de mensagens instantâneas do país, com mais de 100 milhões de usuários em 2015. Daí já se pode imaginar o estrago que um bloqueio pode causar.

As reflexões sobre a extensão de ordens de bloqueio e sua legitimidade desnudam a dificuldade que magistrados enfrentam ao se deparar com assuntos relativos à tecnologia da informação. O que, obviamente, não é privilégio dos magistrados nem do país. Quem assistiu ao cômico depoimento de Mark Zuckerberg no Senado americano bem viu que diversas perguntas não faziam o menor sentido e soavam realmente hilárias.

Também são examinados os contornos da privacidade e da proteção de dados pessoais na era da transmissão instantânea. Os autores chamam a atenção para o fato de que o projeto de lei, no início, não continha dispositivos sobre esse tópico. Somente a partir do caso Snowden, com a revelação dos escândalos de espionagem, foram acrescidas disposições sobre o assunto. Para lembrar, na época foi dito que até mesmo e-mails da então presidente Dilma Rousseff teriam sido violados.

O capítulo relativo à responsabilidade civil de provedores também suscita interesse. Um dos casos citados merece especial atenção por dizer respeito a direitos autorais. Uma empresa que ministra cursos jurídicos on-line moveu processo contra uma rede social, em razão de um de seus vídeos ter sido postado por um usuário. Além de requerer que fossem retirados todos os vídeos e mensagens relacionadas às aulas, a empresa quis responsabilizar a rede social pela divulgação. A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça trouxe estudos comparados da jurisprudência estrangeira, especialmente com os casos Universal Studios vs. Sony;  Napster vs. A&M Records Inc.; MGM vs. Grokster, e o caso Pirate Bay. A leitura é proveitosa. 

É curioso como o Brasil pode produzir uma legislação tão avançada e reconhecida no mundo, como o Marco Civil, e de outro lado proferir julgamentos inusitados e até retrógrados. Uma decisão do Tribunal do Acre é exemplificadora. Um magistrado determinou que todos os blogueiros de Rio Branco registrassem seus blogs em um Cartório de Registros Públicos. A ordem foi motivada por um pedido fundamentado em uma lei de 1973, do governo militar, que obrigava jornais e revistas a obter registro antes de circularem. De acordo com o pedido, todos os blogs da cidade deveriam se registrar, por se equipararem a veículos de comunicação. Para além do fato de que já o requisito geográfico antecipava a dificuldade de aplicação e o absurdo da situação, a decisão ainda dispunha que os blogs que assim não agissem fossem considerados “clandestinos”.

Por muito tempo se discutiu, no Brasil, se conteúdos poderiam ser removidos da internet sem autorização judicial — ou seja, mediante mera notificação de uma pessoa —, e se provedores de aplicações (como Facebook, Google, UOL, Terra, Yahoo!, Waze, WhatsApp) poderiam ser responsabilizados por conteúdo postado por terceiros, caso não o removessem assim que recebessem uma notificação nesse sentido. O assunto foi seguido de perto por advogados e juristas, que entendiam ser perigoso que uma simples notificação pudesse gerar a obrigação de remoção de conteúdo.

A atribuição de tal responsabilidade ao provedor poderia, em primeiro lugar, gerar situações de censura, uma vez que a avaliação de interesses subjetivos, como ofensa ou dano moral, é complexa e exige a análise objetiva do contexto, o que nem sempre é possível. Segundo, nem seria justo que se atribuísse ao provedor a difícil tarefa de decidir o que pode ou não continuar a ser veiculado na rede. Terceiro, diante da ameaça de serem responsabilizados, provedores de aplicações poderiam simplesmente aceitar qualquer pedido de remoção de conteúdo, restringindo o acesso a informações.

A cidadania e a liberdade de expressão prevaleceram e o Marco Civil dispõe que um provedor de aplicação só será responsável por conteúdo de terceiro caso não remova o conteúdo impugnado por uma ordem judicial. O livro dá ênfase a esse tópico — e com razão. Como afirmam os autores, “ao se colocar nas mãos do Poder Judiciário a apreciação do conteúdo, garante-se maior segurança para as relações desenvolvidas na internet, bem como a construção de limites mais razoáveis para a expressão em tal meio”. 

Os autores mostram como a jurisprudência, que caminhava tropegamente para uma responsabilização indiscriminada, acolheu as disposições do Marco Civil que privilegiam a liberdade de expressão. Por essas e por outras, o livro vale a leitura.

Quem escreveu esse texto

Taís Gasparian

É sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian - Advogados.

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.