Direito,

Os dilemas do colaborador

Socióloga italiana publica entrevistas com chefão da Cosa Nostra e expõe as complexidades do jogo da delação premiada

26nov2018 | Edição #15 set.2018

As angústias de um colaborador da Justiça são sentimentos personalíssimos, impossíveis de captar em um livro, artigo ou tese. A mistura de um senso de alta traição com o alívio do acerto de contas final envolve o delator em uma sutil esquizofrenia, revelada em comportamentos e discursos complexos e contraditórios. Em Ronda da noite, Patrick Modiano descreve o estado de espírito de um colaborador na Paris ocupada, tentando traçar seus anseios, culpas e alívios em uma atmosfera de desconfiança perene. É esse mesmo pano de fundo que ambienta a obra Conversando com Gaspare Spatuzza, na qual a socióloga Alessandra Dino entrevista um dos mais controversos personagens da Itália contemporânea.

Trata-se de um homem da máfia: figura central da Cosa Nostra nos anos 80 e 90, a princípio como carrasco e executor de ordens, depois como líder de uma organização responsável por crimes e atentados que ainda afetam a vida social e política italiana.

Em 1997, Spatuzza foi preso. Decidiu colaborar com as autoridades quase uma década depois, trazendo à tona histórias surpreendentes, como a do envolvimento de políticos importantes no planejamento do atentado de Via D’Amelio, em Palermo, que em 1992 tirou a vida do juiz Paolo Borsellino, responsável pelos processos contra a Cosa Nostra.  

Em 2012, Dino teve autorização para entrevistar o mafioso dentro do cárcere. Após um ano de conversas e anotações, e mais um largo tempo de revisão e organização, a autora emerge com uma obra na qual se propõe a contar a história do carrasco de Brancaccio — apelido que se deve ao bairro palermitano de onde provém. 

Introdutoriamente, discorre sobre a negociação da entrevista com Spatuzza. Combina com ele regras, premissas e limites, e ao mesmo tempo busca métodos e caminhos na literatura especializada para validar, filtrar e usar da melhor forma possível o depoimento pessoal de um personagem contraditório, sem liberdade plena de fala e interessado em defender a sua versão dos fatos — mesmo que ele tenha dificuldades em saber qual é.

A partir daí, inicia-se uma tentativa tortuosa de contar a sua história. O início de seu envolvimento com a máfia, o sentimento de pertencimento a uma família — o que facilitava o cometimento de atos cruéis e embotava qualquer emoção que ameaçasse dificultar o cumprimento das mais variadas ordens. A banalidade do mal — que Hannah Arendt usa para Eichmann — é perfeitamente aplicável a Spatuzza, que não identifica desvalor em suas ações, mas as concebe como um mero ato de reforço de confiança para com os chefes. A cena do protagonista comendo um sanduíche enquanto dissolve o corpo de uma vítima em ácido ilustra sua visão de mundo.

Spatuzza decide colaborar ao perceber que nunca teria a chave do cofre; mesmo chefe, sempre seria apenas um carrasco

Mas essa não é a parte mais interessante das entrevistas conduzidas por Dino. O que desperta atenção é como, com o passar do tempo, uma sombra começa a pairar sobre a certeza militante de Spatuzza. Uma leve desconfiança de que algo estava errado toma conta de seus pensamentos. A obediência cega é substituída por uma dúvida sobre os métodos e os rumos da organização criminosa.

Não se trata de uma guinada moral ou uma súbita tomada de consciência ética. As incertezas de Spatuzza decorrem da percepção de ter sido explorado economicamente por aqueles pelos quais tinha adoração. E são consolidadas quando descobre que a confiança que nele depositavam por sua lealdade e dedicação, suficiente para torná-lo chefe do clã quando seus padrinhos foram presos, não foi grande o bastante para lhe conceder a chave do cofre, o poder sobre as finanças do grupo. Percebeu que sempre seria o carrasco, o capanga, jamais o líder efetivo do grupo.

Preso, Spatuzza levou dez anos para se convencer da utilidade da colaboração. A descrição desse processo é o momento mais cativante do livro, onde são relatadas suas angústias e sentimentos contraditórios. A vontade de falar e o medo de trair. A resistência férrea de sua esposa e filhos, contrários à delação. A forma miúda e sutil de dar recados aos antigos companheiros, avisando que passaria ao outro lado.

Forma demais

Tomar essa decisão não é fácil. No Brasil, onde a colaboração premiada ganhou fôlego a partir de 2014, com a Operação Lava Jato, nota-se que a estratégia de auxílio à Justiça raramente é a primeira opção do investigado. A relutância inicial é justificada pela dificuldade em assumir a culpa — muitas vezes esmaecida por um sentimento de normalidade do mal tão bem descrito pelo protagonista do livro; por um desconforto em expor a  sua participação em crimes; e pela falta de disposição de trair amigos e companheiros com os quais compartilhou anos de vida.

Mas, uma vez tomada a decisão, é surpreendente a capacidade do colaborador de passar para o outro lado. A recalcitrância inicial muitas vezes se torna obstinação por juntar provas, corroborar narrativas e mostrar ao mundo que se é uma nova pessoa. Seja um sentimento sincero, seja uma estratégia para obter mais benefícios, tais atitudes são recorrentes em colaboradores. E com Spatuzza não parece ter sido diferente.

Ele sacode a Itália com sua narrativa. Discorre com detalhes sobre atentados, participação de políticos no crime organizado, acordos para obstruir a Justiça, os métodos usados para induzir a erro juízes e promotores, informa locais de encontros, dá nome aos bois. Segundo Dino, ao contrário de delações sem base — muito discutidas após o célebre caso Enzo Tortora, apresentador de TV injustamente acusado de envolvimento com a Camorra —, as declarações de Spatuzza foram corroboradas por provas e documentos contundentes.

O livro, portanto, se propõe recontar essa história pela ótica de seu personagem principal. Sob uma perspectiva crítica, promete mais do que apresenta. Cria-se uma expectativa de ler uma biografia de um mafioso, de conhecer o funcionamento da Cosa Nostra, de atentados, prisões e delações, reviravoltas processuais e desfechos inusitados. Mas a obra acaba por oferecer, ao contrário, uma extensa descrição dos cenários e contextos das entrevistas, do método utilizado, e dos sentimentos da autora sobre seu personagem. Muito da forma, pouco do conteúdo.

Num país surpreendido pela novidade da delação, merece atenção uma obra que descreve a condição emocional dos que optam por esse duro caminho

Há um estilo próprio na substituição da narrativa linear por uma descrição mais subjetiva do entrevistado. Existe uma beleza sutil em apresentar suas palavras, suas contradições, e deixar a critério do leitor a valoração sobre seu caráter e suas justificativas. Mas a autora exagera ao interromper com frequência essa exposição com considerações sobre suas sensações e emoções durante a entrevista. Há uma quebra constante de ritmo, um amparo permanente em reminiscências, questões filosóficas e psicológicas de Dino, o que afetam a cadência da narrativa.

Ainda assim, o livro vale. Em um país surpreendido pela novidade do instituto da delação, merece atenção uma obra que expõe algo mais do que seus contornos jurídicos ou sua aplicação judicial. Que descreve a difícil condição emocional daquele que opta por esse duro caminho, e toda a carga de vantagens e desvantagens que acompanham a decisão pelo jogo complexo — e nem sempre seguro — da colaboração premiada. 

Quem escreveu esse texto

Pierpaolo Cruz Bottini

É advogado criminalista e professor livre docente da Faculdade de Direito da USP.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.