Direito,

Grandes crimes, poucas emoções

Desigual, coletânea escrita por juristas e advogados repassa casos célebres da Justiça criminal brasileira

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

Nas décadas de 60 e 70, o livro de um psiquiatra e sociólogo cubano publicado em 1947 fez a cabeça de muitos criminalistas brasileiros que atuavam em casos julgados pelos tribunais do júri. Em Quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o amor, o dever, Emilio Mira y López descreveu, à luz da ciência da época, o poder e o impacto das emoções em alta voltagem.

O pavor que antecede ou sucede a um ato de violência. O encadeamento desgovernado dos atos de vingança. A sublime comunhão de um casal apaixonado. A aprisionante obediência a um opressor. “Não é exagerado empregar o termo ‘gigante’ para designar esses quatro núcleos energéticos que, como os quatro pontos cardeais, orientam, propulsionam e, às vezes, limitam o universo mental, individual e específico do Homem”, escreveu o autor. 

Os estudos de Mira y López subsidiaram inflamados discursos em julgamentos de homicídio acerca da motivação de réus confessos. A reflexão dos advogados sobre a visceralidade das emoções dos clientes era um chamado à empatia dos jurados — afinal, quem nunca se viu subjugado por um dos quatro gigantes? 

Evidentemente, a via era explorada em duas mãos, porque, em plenário, a missão dos promotores também era tentar despertar empatia nos jurados, mas em relação às vítimas. Ao tratar de sentimentos, portanto, as discussões sobre crimes contra pessoas são experiências que nos conectam como seres humanos, apesar de todas as nossas diferenças.

O criminalista Arnaldo Malheiros Filho, expoente da advocacia paulista falecido no ano passado, era mestre em criar essas conexões. Ele expressava o talento de contar histórias não apenas em peças escritas e sustentações orais, mas também em rodas de conversas com amigos, captando a atenção dos presentes com os mais variados causos. 

Malheiros assina “Doutor Smith”, o primeiro capítulo de Grandes crimes, organizado pelo advogado Pierre Moreau, que chega às livrarias neste mês. De tão simples e fluido, é como se o texto desse assento ao leitor numa das rodas de conversa do advogado.

Malheiros assina “Doutor Smith”, o primeiro capítulo. Simples e fluido, é como se o texto desse assento ao leitor numa das rodas de conversa do advogado

Conhecido pela memória fabulosa, Malheiros explica, logo de início, que se propôs a escrever uma crônica — e não o mais preciso relato dos fatos. “Não pedi o desarquivamento dos autos, não olhei velhos documentos. Escrevi sobre o que me lembro, fatos ocorridos há mais de quarenta anos. E, naquilo em que a memória falha (e como falha!), a imaginação, ainda que a consciência não o perceba, preenche o vazio.”

O capítulo narra a trajetória de “seu Joaquim, jovem portuguesinho”, que “começou a vida numa tecelagem”, em São Paulo, como caixeiro-viajante. Malheiros conta que, trabalhador dedicado e dono de uma “educação impecável”, o portuguesinho galgou importantes degraus na empresa onde fez carreira, até que, diante do que considerou um insuportável revés, viu-se dominado por um dos gigantes. O desfecho é memorável.

Grandes crimes não é um livro uniforme. Há textos coloquiais e textos técnicos, uns com intensa pesquisa, outros com pouca pesquisa. Alguns abordam os crimes como se fossem familiares aos leitores, sem explicar detalhes e contexto, outros narram as histórias de forma bem didática.

Dois capítulos fazem apanhados de casos diferentes que se relacionam pelo tema comum: “Imigrações, mortes e malas”, do advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, e “O caso dos três canibais”, do também advogado José Paulo Cavalcanti Filho. A fórmula não foi feliz. Há três histórias narradas em cada capítulo — duas pequenas e uma mais extensa. Os casos menores são relatados tão de passagem que melhor seria se não estivessem ali.

Por outro lado, é notável o mergulho do advogado Eduardo Muylaert em sua “Investigação sobre o atentado do Riocentro”. Ele resume o demorado avanço no esclarecimento dos detalhes do caso: “O atentado de 30 de abril de 1981 é um enorme quebra-cabeça, cujas peças foram se encaixando ao longo de 35 anos. Fizeram de tudo para esconder a verdade e poupar os responsáveis, mas as circunstâncias foram despontando, especialmente a partir de 2010”.

Ao longo de, aproximadamente, cinquenta páginas, Muylaert descreve o cenário político pós-AI-5, a reação dos militares ao início do declínio do regime e o engajamento de artistas famosos na luta contra a ditadura, com a organização de shows no 1º de Maio, a partir de 1979. Assim, chega à descrição do plano de um grupo de militares para explodir uma bomba no Riocentro, que sediava as maiores convenções do Rio de Janeiro, durante o show de maio de 1981.

Como parte do trabalho de reconstrução histórica, o autor cita documentos que se tornaram públicos nos últimos anos e uma série de reportagens que jogaram luz sobre os fatos relacionados ao atentado. Mais do que isso, usa sua densa pesquisa para tratar da participação no episódio de cada um dos agentes, nominalmente.

Crimes famosos

Entre os crimes famosos abordados no livro, estão os assassinatos da atriz Daniella Perez, da socialite Ângela Diniz, do deputado Rubens Paiva, do escritor Euclides da Cunha e de seu filho e as mortes misteriosas do empresário PC Farias e sua namorada, Suzana Marcolino, entre outros.

O jurista Celso Lafer assina um capítulo que destoa dos demais, de tão técnico. Trata-se de uma sofisticada reflexão jurídica sobre o caso do editor e autor Siegfried Ellwanger, de Porto Alegre, acusado de racismo por se dedicar, nas palavras de Lafer, “de forma sistemática a editar e reeditar obras de estridente antissemitismo”. No centro da discussão, a pergunta: deve uma prática antissemita ser considerada racista? Ellwanger acabou condenado pelo Supremo Tribunal Federal.

Quem escreveu esse texto

Laura Diniz

É jornalista, sócia do portal jurídico JOTA e vice-presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.