Arte e fotografia,

Um diante do outro

Cristiano Mascaro estabelece uma precisa distância entre fotógrafo e fotografado, esse lugar virtuoso entre o excesso e a falta

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

Há duas grandes vertentes na história da pintura, pelo menos até o início do século 20: o retrato e a paisagem. Todas as outras temáticas parecem derivadas dessas duas, sendo que às vezes elas se misturam. O homem e a natureza, o ser e o espaço, a figura e o fundo. Campos floridos, reis sobre cavalos, batalhas náuticas, bailarinas de Degas, murais mexicanos, tsunâmis japoneses e madonas italianas são representações visuais do ser, do ambiente ou do ser no ambiente.

Digo isso porque a fotografia é a grande herdeira dessa tradição e muito nos ajuda entendê-la por essa perspectiva. A fotografia, com toda a sua magia técnica e acuidade visual, tomou da pintura a responsabilidade de descrever visualmente o mundo. Esse evento teve duas consequências para a história da arte: a pintura partiu para a experimentação formal (que resultou no cubismo e na abstração) e, por outro, a fotografia prolongou e conservou os fundamentos do retrato e da paisagem. É possível, portanto, entender essa história tanto pela ruptura quanto pela continuidade.

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Cristiano Mascaro é um notável fotógrafo paisagista. Dentre as vertentes da paisagem, escolheu, influenciado pela formação de arquiteto, o espaço urbano como seu principal campo de interesse. Por décadas, retratou edifícios icônicos, esquinas anônimas, paisagens bucólicas e cenas de rua com domínio pleno de ferramentas fundamentais da fotografia: a técnica, a luz, a forma, o quadro e o tempo.

No entanto, nesse livro, ele nos apresenta seus retratos. À primeira vista, causa estranheza, como se Mascaro invadisse um território que não lhe pertencesse. Mas um exame mais detido revela que os retratos e as paisagens de Mascaro têm mais semelhanças do que diferenças. Em ambas, está o mesmo domínio da técnica, da luz, da forma, do quadro e do tempo. Não podemos esquecer que pessoas, assim como objetos, também são feitas de volume, superfície e textura (no texto do livro, o autor compara dois de seus retratados, trabalhadores cobertos de farinha, a “estátuas gregas”). Diante da indiferença mecânica da câmera, pessoas são apenas formas que refletem a luz, produzem sombra e se relacionam com os objetos ao redor. Mascaro sabe disso e se utiliza da presença do corpo humano como elemento composicional de suas fotografias, levando para a arte do retrato os anos de experiência como fotógrafo de arquitetura. O resultado é uma harmonia entre o retratado e o ambiente, superando a relação hierárquica entre figura e fundo e dando lugar a uma imagem que fala ao mesmo tempo daquela pessoa, da profissão que exerce, do ambiente em que vive e da cidade em que habita, perfazendo um arco que termina novamente na paisagem urbana.

Algo mais

Mas, para compor um grande retrato, é preciso algo mais. É necessário animar esse volume inerte, como um gesto mágico que dá vida a um boneco de cera. Diferentemente do edifício que está lá à disposição, o retrato é o produto de uma delicada e sofisticada negociação entre fotógrafo e fotografado. Essas fotografias são testemunha de um encontro e trazem com elas uma pequena história.

É possível imaginar os diálogos, os pedidos de permissão, a escolha dos lugares, os avanços e recuos até chegar ao clique final. Da parte do retratado, é um consentimento baseado na confiança, uma vez que não se oferece a própria imagem a qualquer um. Da parte do retratista, é algo que se conquista com persuasão. Mascaro sabe disso e estabelece uma precisa distância entre fotógrafo e fotografado, que termina por alcançar a “justa medida” aristotélica, esse lugar virtuoso entre o excesso e a falta. Os personagens de Mascaro não estão demasiadamente próximos, a ponto de reagirem abruptamente à câmera, nem tão distantes a ponto de impedir que o fotógrafo se relacione com eles. 

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Com esse distanciamento rigoroso, Mascaro faz uso do método de uma tendência da fotografia contemporânea, que problematiza a “objetividade” fotográfica. Pelo menos em teoria, o método consiste em apresentar aquilo que se fotografa sem nenhuma “opinião” por parte do fotógrafo, como se esses objetos pudessem falar por si sós. Afinal, quem são essas pessoas? Mascaro não “julga” seus retratados. Não sabemos deles nada mais do que essas fotografias mostram.

Essa abordagem não impede, entretanto, que salte aos olhos a evidente empatia entre Mascaro e seus retratados. Há o desejo de uma relação afetuosa, como se o ato fotográfico fosse um acesso à intimidade dessas pessoas, gente “comum”, personagens “anônimos” que, no entanto, fizeram a cidade de São Paulo — grande inspiradora do fotógrafo — ser o que é. Ao penetrar nas casas que fotografara de fora, ao elevar o ambiente à condição de protagonista e ao retratar os cidadãos da metrópole, Mascaro está, da mesma forma que faz com o espaço urbano, investigando as possibilidades de representação da cidade. Está percebendo a indissociabilidade, no contexto da cidade, entre o volume construído e material (a paisagem) e os dramas que se desenrolam nesse cenário (o retrato). Nas palavras de Shakespeare: “What is the city but the people?” (O que é a cidade, senão as pessoas?).

A chave para compreender Mascaro é a curiosidade. Seu trabalho nos lembra que a fotografia, para o fotógrafo, em grande medida, é apenas uma desculpa para conhecer lugares e pessoas, um pretexto para experimentar o inusitado, uma maneira de provocar o olhar. Se não prestarmos atenção, ela nos levará aos espaços mais óbvios e previsíveis, como palácios e monumentos. Mas, se utilizada com sabedoria, como é o caso aqui, ela também pode nos levar a lugares extraordinários, como oficinas mecânicas, salões de sinuca, academias de boxe ou o interior de uma pensão no Brás.

Quem escreveu esse texto

Tuca Vieira

É fotógrafo profissional e já atuou no MIS-SP e no Sesc-SP.

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.