Arquitetura,

As formas do capital

Livro sobre bastidores da verticalização de São Paulo narra história rica, mas simplifica antagonismos entre mercado imobiliário e Estado

13nov2018 | Edição #6 out.2017

Não é muito comum no Brasil que se discuta arquitetura fora dos meios especializados. Estranha constatação, não apenas pelos significados e efeitos estéticos dessa arte cuja recepção desde sempre se dá coletivamente. Mas sobretudo porque, queiramos ou não, estamos fadados a viver em meio a estruturas edificadas, nossa vida cotidiana permanentemente misturando-se a elas. Nada mais razoável que se debatesse regularmente, na imprensa e entre o público leigo, as transformações no ambiente em que vivemos, as velhas e novas edificações e demolições que despontam na paisagem, suas qualidades visuais, táteis, práticas, os planos urbanos e programas de obras públicas em pauta, suas prioridades, benefícios, transtornos e disfunções. 

O trabalho jornalístico de Raul Juste Lores acerca de arquitetura é nos últimos tempos um ponto fora da curva. Afinal, salvo raras exceções, as típicas colunas e colunistas especializados em “coisas da cidade” ou “para quem quer construir”, comuns nos jornais brasileiros do passado, entraram em extinção. É espantoso, aliás, o contraste atual entre o Brasil e países como a Argentina, Portugal ou os Estados Unidos, onde cadernos inteiros e mesmo iniciativas editoriais dedicados a arquitetura são produtos ainda correntes na grande imprensa. 

De fato, desde o período em que trabalhava para a Veja em Buenos Aires, e principalmente depois de sua instalação em Pequim, como correspondente da Folha de S.Paulo no final dos anos 2000, o jornalista especializado em economia, negócios e relações internacionais começou a enveredar pelo setor e, em meio à Olimpíada de 2008, o público brasileiro começou a receber em primeira mão notícias do fenômeno arquitetônico chinês, que vinha seduzindo praticamente todas as estrelas internacionais da arquitetura. Até então esporádico, o trabalho de Lores ganhou corpo quando de sua transferência pelo jornal para os EUA.

Lá, enquanto discutia a inauguração do parque High Line em Nova York ou as estratégias de contenção do automóvel particular, o pendor pela arquitetura repercutiu em uma série de crônicas sobre a fisionomia de São Paulo, recentes, como a reforma da praça Roosevelt, e mais antigas, como os edifícios projetados por Oscar Niemeyer na cidade. Desde então, demarcando posições quanto à arquitetura erudita, ao mercado imobiliário, ao urbanismo ou às políticas urbanas, sua contribuição a favor de uma opinião pública de arquitetura tornou-se cada vez mais apreciada. 

São Paulo nas alturas coroa, portanto, um dos mais dedicados percursos de jornalista pela seara da arquitetura e do urbanismo entre nós. Se sua gênese pode ser entrevista na militância do autor na imprensa, ele é também fruto do seu crescente envolvimento com a pesquisa especializada. E eis que à narrativa envolvente do livro, com todas as emoções da descoberta e da revelação, juntam-se empréstimos à produção acadêmica e uma pletora de fontes originais, garimpadas na imprensa comercial e na memória dos sobreviventes do período. O resultado é uma nova paisagem da cidade, apresentada de forma consistente, com critérios claros de avaliação, notável força retórica e muito senso de atualidade.

Naturalmente, como de praxe em esforços dessa dimensão, há aqui e ali lacunas, precipitações e análises do processo urbano e arquitetônico paulistano discutíveis. Em todo caso, o leitor — arquiteto, jornalista, estudante, empresário da construção ou cidadão interessado nos caminhos e descaminhos da cidade que habita — tem agora a seu alcance um dos mais primorosos retratos do processo de verticalização paulistano no segundo terço do século 20.

O livro é composto por duas partes básicas: “O capital segue a forma” e “A forma segue as finanças”. Os títulos não são apenas bons slogans. Assinalam o foco do autor nas relações entre arquitetura e mercado. O enquadramento econômico repercute uma tendência entre os pesquisadores nos últimos anos a se debruçarem sobre a carreira de tal ou qual arquiteto ou a enfrentarem a produção material da arquitetura e da cidade para além da ênfase tradicional da historiografia nas obras acabadas, exemplares ou autorais. 

Os livros de Nadia Somekh, A cidade vertical e o urbanismo modernizador: São Paulo, 1920-1939 (Edusp/Nobel/Fapesp, 1997), e Joana Mello, O arquiteto e a produção da cidade: a experiência de Jacques Pilon, 1930-1960 (Annablume/Fapesp, 2012), são exemplares desse novo prisma para observar o processo de verticalização urbana em São Paulo: num caso, contrapondo-o aos desenvolvimentos do planejamento, da regulação estatal e da renda da terra; no outro, examinando-o na pequena escala do métier do arquiteto vis-à-vis as clientelas emergentes e as mudanças nos negócios imobiliários. 

Nessa leva, um dos trabalhos mais próximos ao de Lores é o livro de Carol Willis, Form Follows Finance (Princeton Architectural Press, 1995). Fundadora do Museu do Arranha-Céu, em Nova York, Willis esmiuçou a história dos prédios de escritórios naquela cidade e em Chicago à procura de um vernáculo arquitetônico peculiar do capitalismo. Se não foi esse exatamente o propósito de Lores, a referência à profissão de fé coletivista e ascética da arquitetura funcionalista do entre guerras visa também o seu inconfessável reverso mercantil. 

Sabe-se que o bordão “a forma segue a função”, glosado em ambos os trabalhos, não foi cunhado exatamente por um arquiteto modernista, mas por Louis Sullivan, um dos patriarcas da “escola” arquitetônica e do mercado de arranha-céus de Chicago ainda no século 19. Mas o que está em causa na paródia ao lema de vanguarda não é mero jogo de palavras. Trata-se de desafiar as próprias pretensões de ruptura e autonomia do movimento moderno.

Paisagem em ebulição

Assim, já na primeira parte de São Paulo nas alturas somos arrebatados por uma paisagem paulistana em ebulição, animada pelo movimento desenfreado de construções que toma conta da cidade, com suas novas figurações metropolitanas, propostas e demandas espaciais e maneiras de morar até então inusitadas: o apartamento, às vezes na escala do palacete, a quitinete, os altos edifícios de escritório e multifuncionais, as galerias comerciais em altura, as novas silhuetas da cidade. 

Entre seus protagonistas, poucos são os que circulam pelo campo da consagração em arquitetura e urbanismo. À exceção de Niemeyer — que aliás virá a renegar suas obras paulistanas do período —, o que domina são as parcerias entre arquitetos quase nunca ilustres e um setor do empresariado emergente: entre arquitetos e engenheiros construtores, alguns de renome, a maioria até então — ou até aqui — anônimos; entre profissionais treinados no exterior e uma nova geração de atores locais; entre arquitetos e amadores tornados peças-chave nos negócios imobiliários; de imigrantes entre si, muitos dos quais judeus, poloneses, húngaros, romenos, lituanos, italianos; de arquitetos e engenheiros com (ou convertidos em) jovens investidores, publicitários, especuladores, financistas e proprietários tradicionais. 

São muitas as parcerias analisadas: de Niemeyer, Abelardo de Souza e Carlos Lemos com Orozimbo Roxo Loureiro e Octavio Frias de Oliveira; de Franz Heep com Jacques Pilon, Otto Meinberg, Leon Gorenstein e Aizik e Elias Helcer; de Luciano Korngold, Alfredo Duntuch e Leon Feffer com Germaine Burchard; de Marcos Botkowski com Marjan Fromer; de David Libeskind com José Tjurs e Simão Schaimberg; de Victor Reif com David Stuhlberger; de Giancarlo Palanti com Alfredo Mathias; de Ermanno Siffredi e Maria Bardelli com Benjamin Citron, Jacob Lerner e o mesmo Alfredo Mathias; de João Artacho Jurado, arquiteto e publicitário autodidata, com sua audaciosa Construtora Monções. 

Mais impressionante que o elenco de trajetórias profissionais e empresariais convocado por Lores é sua localização precisa na rede de agentes e mecanismos de produção da cidade. Associados em uma miríade de iniciativas, oportunidades, promessas, contratos, às vezes de risco, cabedais, relações de influência, de prestígio, de interesse, os personagens constituem um circuito pleno de peculiaridades econômicas, devidamente esclarecidas: a escala ainda reduzida da promoção imobiliária, em grande parte apoiada na pequena construtora, na forma condominial ou na arregimentação de capitais com base em redes pessoais ou familiares de relacionamento; o estágio ainda embrionário das práticas de incorporação, quase sempre dependentes da venda e administração dos empreendimentos; o peso das pequenas construtoras, fruto muitas vezes da associação entre profissionais, amigos e parentes; o amadorismo e o desembaraço nas estratégias de comercialização; a concentração dos investimentos em áreas da cidade já valorizadas em termos fundiários e em estratos privilegiados da clientela. Mas, a despeito de todas as restrições, foi com base nessa estrutura produtiva que se configuraram não somente novas práticas e fronteiras no setor, como partes expressivas da paisagem vertical paulistana, prolífica em soluções arquitetônicas de grande qualidade.

Muitas vezes temos a impressão de que o Estado e as vanguardas só entram nessa história para atravancar a revolução arquitetônica paulistana

É este, salvo engano, um dos pontos fortes do argumento do autor, expresso em suas primeiras páginas: “O grande capital e a arquitetura de qualidade não eram, na década de 1950, como água e óleo, incapazes de se misturar”. A despeito do caráter incipiente do mercado e das limitações de projeto apontadas em algumas das obras em questão, inclusive em seus melhores exemplares, a arquitetura que emerge do circuito de mercado em foco tem qualidades incontestáveis: programas de uso inovadores, inclusive multifuncionais; variedade tipológica, formal, ornamental e de acabamentos, ao mesmo tempo atenta e relaxada em face dos cânones contemporâneos; inventividade, generosidade e praticidade nas soluções de planta e espaços internos; áreas comuns elegantemente desenhadas, ricas em jardins, rampas, marquises, salões, galerias, pátios e terraços-jardins; soluções de implantação que valorizam o conforto, a fruição visual e a permeabilidade dos terrenos ao entorno, e tudo isso, quase sempre, sem o sacrifício da economia e da simplicidade. 

Qualidades visíveis em alguns dos grandes marcos do modernismo arquitetônico em São Paulo, como a sede do jornal O Estado de S. Paulo/ Hotel Jaraguá, o CBI-Esplanada, a Galeria Califórnia e o Copan, o Conjunto Nacional, o Jardim Ana Rosa, o Três Marias, o Cícero Prado, a Galeria do Rock, o Itália, a Galeria Metrópole, o Paulicéia/São Carlos do Pinhal, o Lausanne, o Parque das Hortênsias e dezenas de imóveis na República, Bela Vista, Paulista, Paraíso, Vila Buarque e quase toda Higienópolis.

Crise

É a crise desse circuito de produção que está no centro da segunda parte do livro. E é nela talvez que o principal obstáculo interpretativo do trabalho ganha nitidez. Ao avançar na periodização, à procura das razões de seu declínio ao final dos anos 1960, ou antes, à procura das razões do divórcio entre a arquitetura e o mercado, com a derrocada dos modelos de densidade e centralidade que haviam sustentado a marcha da verticalização, as críticas de Lores miram basicamente os supostos malefícios da ação estatal e os equívocos da alta cultura arquitetônica e urbanística. 

Muitas vezes temos a impressão de que o Estado e as vanguardas só entram nessa história para atravancar a verdadeira revolução arquitetônica paulistana no segundo pós-Guerra, afrontando seus dois grandes heróis: de um lado, o arquiteto liberal, dotado daquele éthos objetivo e desamarrado tão característico do estrangeiro, e suficientemente treinado para se projetar no mercado de talentos e oportunidades disponíveis; de outro, o empresário self-made, suficientemente ambicioso, aventureiro, móvel e polivalente para capitalizar o surto de metropolização em curso. 

Pois a gênese do declínio é talvez demasiado insistentemente associada às políticas nacional-desenvolvimentistas a partir de Vargas e, de modo ainda mais brutal, após Brasília, com JK, que produziram imensa onda inflacionária, gerando inadimplência e minando o sistema de prestações fixas, a preço de custo, típico do período. O resultado teria sido uma sucessão de obras atrasadas e paralisadas, iniciativas canceladas, falência de empresas, liquidações judiciais, quedas sucessivas nas encomendas, mudanças de ramo ou de cidade, infartos, mortes, aposentadorias e muita frustração. Ao lado dos atropelos públicos, a euforia desenvolvimentista da corporação com a intervenção do Estado na economia, o planejamento e os programas de obras que viriam a consagrar o grupo de arquitetos comunistas em torno de Vilanova Artigas, só viriam, segundo Lores, a embotar o brilho e a legitimidade da produção para o mercado. 

Os dados apresentados são eloquentes, e as hipóteses do autor merecem ser levadas em conta, inclusive para compreender a imensa perda de qualidade na arquitetura e na construção civil com a criação do BNH (Banco Nacional da Habitação) e de novos perfis de financiamento, incorporação e produção imobiliária no país.

Mas não seria exagerada essa ênfase no divórcio e mesmo no antagonismo entre arquitetura liberal e certa arquitetura social, de esquerda, paulista? Entre iniciativa privada e legislação urbana, planejamento, obras públicas e toda sorte de supostos entraves criados pelo Estado? Não seria proveitoso salientar não apenas as variações de escala e de estilo, mas também as rivalidades e disputas internas no setor da construção? Internas à geração de 1950, assim como com seus sucessores, a exemplo dos mencionados no livro — Anuar Hindi, Romeu Chap Chap, Yojiro Takaoka, Adolpho Lindenberg? 

Talvez tivesse sido produtivo insistir na complexidade e nas contradições patentes em tantas carreiras individuais, senão nas trajetórias híbridas de profissionais e empresários entre o mercado e o Estado, a academia ou a militância partidária, à direita e à esquerda? Biografias norte-americanas, aliás, como as de Daniel Burham em Chicago, Robert Moses em Nova York ou James Rouse em Baltimore, vêm justamente mostrando a imensa porosidade entre promoção pública e privada, tanto quanto entre o profissional e o político, o  arquitetônico e o urbano. Mesmo em São Paulo, como tantos pesquisadores vêm revelando, a multiplicidade de atitudes em presença nas repartições de urbanismo e o grau de interferência do setor privado nas práticas de planejamento e zoneamento viriam inclusive a repercutir na modelagem da primeira lei de zoneamento urbano de São Paulo, em 1972, das mais procrastinadas do país. 

Tenho a impressão de que considerações dessa natureza só viriam a enriquecer as discussões em torno desse quadro, magnificamente reconstituído, do meio arquitetônico e imobiliário paulistano naqueles anos. Afinal, ao propor como mote da pesquisa uma preocupação com respeito à qualidade da arquitetura e dos espaços urbanos, ou antes, com respeito ao problema do declínio da qualidade na produção local com o progressivo abandono dos bairros mais centrais e dos paradigmas urbanísticos de alta densidade, é de um assunto de máximo interesse público de que trata o livro de Raul Juste Lores. 

Porque é da cidade que se trata. Entre o passado e o futuro. E porque as perdas nessa direção não cessam de se ampliar. Vide as novas fronteiras, nada civilizadas, do mercado imobiliário e da verticalização no eixo Faria Lima, Berrini, Marginal Pinheiros, essa nova centralidade dos negócios globais na metrópole que tem o Estado como sócio fiel! E minoritário! 

Quem escreveu esse texto

José Lira

É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac & Naify).

Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.