Repertório 451 MHz,

Duas faces

Parceiros de longa data, Silviano Santiago e Ivan Angelo falam da efervescência artística da Belo Horizonte nos anos 60 e de seus novos livros

08fev2024

Está no ar 451 MHz, o podcast da revista dos livros. Neste 105º episódio, o editor-sênior da Quatro Cinco Um, Humberto Werneck, participa da conversa com os escritores Silviano Santiago e Ivan Angelo. Os dois começaram a escrever juntos, em 1961, e fizeram parte da chamada geração Complemento, um importante movimento artístico na Belo Horizonte dos anos 60. Em 2023, os dois lançaram títulos que estiveram nas listas de melhores do ano. Dois craques, quase aos noventa anos, que continuam escrevendo e criando projetos literários. O episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura.

Santiago é poeta, escritor e tem uma produção vasta e premiada. Em 2022, ele recebeu o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, pelo conjunto da obra. No final do ano passado lançou Grafias de vida — a morte, pela Companhia das Letras, antologia de ensaios em que o também professor e crítico literário vincula biografia ao seu trabalho intelectual. 

Já Angelo é jornalista e um grande romancista brasileiro conhecido sobretudo pelo livro A festa, publicado pela Vertente, que recebeu em 1976 o prêmio Jabuti. Vida ao vivo, seu romance publicado no ano passado também pela Companhia das Letras, traz um retrato da cena jornalística e literária de São Paulo nos anos 70 e 80, numa história que fala muito dos dias de hoje. Não por acaso, a palavra “vida” aparece nos títulos tanto de Santiago quanto de Angelo.

    
Grafias de vida — a morte, de Silviano Santiago e Vida ao vivo, de Ivan Angelo

Ao descrever seu novo livro, Angelo afirma que Vida ao vivo é um romance sobre impunidade. “Ele abre com um protagonista e aos poucos vai dominando a ação uma mulher que foi vítima e não aceita anistia nem prescrição de pena. E vai em busca da sua verdade. O que ela acha que tem de ser feito com ela, por ela e pelo país.”

Já Santiago afirma que a pandemia e o desejo de reparação histórica são os temas dominantes do seu Grafias de vida — a morte: “É um livro basicamente sobre duas grandes questões: a pandemia e suas consequências sobre a sociedade brasileira, em particular sobre as artes. Além da pandemia, me interessa muito o que representa para as elites intelectuais brasileiras a necessidade de reparação histórica das atrocidades que foram cometidas no nosso passado.”

Geração Complemento

A agitada cena literária e artística da qual os dois autores fizeram parte é objeto de um livro de Humberto Werneck, O desatino da rapaziada (Companhia das Letras, 2012), que conta a trajetória de sucessivas gerações de escritores mineiros desde Carlos Drummond de Andrade, nos anos 20, que criavam revistas, suplementos, jornais e livros e acabavam saindo de Belo Horizonte e indo para o Rio de Janeiro ou São Paulo. 

Marco da parceria dos autores, a coletânea de contos Duas faces, publicada pela editora mineira Itatiaia em 1961, foi assinada pelos dois e, segundo Santiago, financiada pelo grupo de amigos intelectuais da época.

“Esse livro é o resultado de um grupo extraordinário de jovens intelectuais que se reuniam no Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais. Era um grupo de cinéfilos, a literatura chegou tarde, mas também de pessoas do teatro, da dança”, conta. “Havia uma lista de amigos que se comprometeram a comprar o livro. E aí eles tiveram a coragem de publicar dois jovens estreantes.”

“Não foi bem uma generosidade”, discorda, bem humorado, Ivan Angelo. “Eles toparam desde que nós vendêssemos com antecedência duzentos exemplares. Então editaram o livro sem risco.” O autor também lembrou que alguns contos já haviam sido publicados num dos números da revista Complemento, publicação do grupo de intelectuais mineiros.


Duas faces, de Ivan Angelo e Silviano Santiago, publicado em 1961

Ivan Angelo relembrou a importância do grupo de artistas como modernizadores da capital mineira naqueles anos 60. “Belo Horizonte teve de suportar aqueles meninos atrevidos do Complemento. Foi uma turma contra a caretice belorizontina. A gente tinha muita ousadia naquela sociedade e atraíamos quem também procurava essas ousadias.”

Um processo de modernização pelo comportamento que, segundo Santiago, não era livre de preconceito. O escritor contou como o grupo enfrentava com humor as críticas de uma sociedade conservadora. “Era uma ousadia intempestiva, não era uma ousadia agressiva. A gente desmontava essa entourage que poderia reagir negativamente pela piada, pelo riso, pela graça.”

Glauber Rocha

Santiago recorda a visita a Belo Horizonte em 1957 do cineasta Glauber Rocha. O ícone do Cinema Novo fez uma palestra no Centro de Estudos Cinematográficos sobre Os sertões de Euclides da Cunha e Seara vermelha, de Jorge Amado — o que, para o autor, demonstra que já tinha em mente o filme que seria Deus e o diabo na terra do sol

    
Os sertões de Euclides da Cunha e Seara vermelha, de Jorge Amado

“Isso entrou em choque com o pessoal do CEC porque nossa revolução era menos partidária e mais comportamental. O Glauber vai dizer numa carta que nós éramos todos homossexuais, o que é uma simplificação meio ridícula. Mas não compartilhávamos já naquela época daquele machismo glauberiano, embora ele fosse genial”, diz.

Mais na Quatro Cinco Um

Grafias de vida — a morte, de Silviano Santiago, foi tema de resenha escrita por Gabriel Martins da Silva para a Quatro Cinco Um em dezembro de 2023: “Santiago emoldura os ensaios reunidos no livro, como se indicasse o vínculo biográfico irresistível que se instaura no trabalho intelectual, aproximando produções antigas e recentes, num empenho de avaliação de sua própria obra como ficcionista.”

Santiago também já colaborou na revista dos livros, com um ensaio sobre as viagens do poeta Mário de Andrade por Minas Gerais e pelo Rio de Janeiro: “No caso de Mário de Andrade, as finalizações de vida e de livro são sempre não conclusivas. Vida e obra literária estão à espera do momento de escapulir da monotonia ambiente. Às vezes, pela viagem.”


Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade

Vida ao vivo, romance de Ivan Angelo, foi resenhado pelo jornalista Mauricio Stycer em janeiro deste ano. “O protagonista de Vida ao vivo tem nome e sobrenome tanto de quatrocentão paulista quanto de gente que batiza rua na zona sul do Rio. Não se precipite, porém. Dando uma pista aqui, outra ali, o autor construiu um tipo que parece um amálgama dos donos das grandes empresas de comunicação do Brasil”, escreve no texto.

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma sugestão do escritor Leonardo Piana, autor do romance Sismógrafo, que foi publicado pelas Edições Macondo em 2023. Piana indica Autobiografia do vermelho: um romance em versos da escritora Anne Carson, publicado pela Editora 34 em 2021, com tradução de Ismar Tirelli Neto. 


Autobiografia do vermelho: um romance em versos, de Anne Carson  

“É um romance escrito em versos em que a autora recria o mito grego de Gerião, o monstro vermelho derrotado por Héracles em uma de suas doze tarefas. Anne Carson conta a história de Gerião como um menino gay apaixonado por Héracles, que a gente também conhece como Hércules, o nome latino do herói. Foi um livro que mexeu muito comigo não só pela beleza da história, mas também pelo modo como a autora resolveu contar, numa linguagem surpreendente, simples e ao mesmo tempo com uma carga de imagens poderosa”, diz o escritor.

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+.

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta e Paula Scarpin
Produção: Ashiley Calvo
Edição: Luiza Silvestrini
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: Pipoca Sound
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Bia Ribeiro
Para falar com a equipe: [email protected]