Repertório 451 MHz,
Chile em tempos de Boric
O 451 MHz discute como o ex-líder estudantil de esquerda está desencadeando uma revolução eleitoral no país
25mar2022Ouça mais Episódios
Está no ar o 61º episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros! Filha de chilenos, Bianca Tavolari, colunista da Quatro Cinco Um, foi até Santiago assistir à posse do presidente Gabriel Boric. Com 36 anos, o ex-líder estudantil de esquerda é um marco na política do Chile, criando um ministério formado majoritariamente por mulheres e procurando conciliar um país cindido. A conversa foi conduzida pelo apresentador Paulo Werneck, com participação de Paula Carvalho, editora da revista.
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Duas vezes por mês, trazemos entrevistas, debates e informações sobre os livros mais legais publicados no Brasil. O 451 MHz tem apoio dos Ouvintes Entusiastas. Seja um você também! O podcast tem ainda apoio da Companhia das Letras.
Um país cindido
Gabriel Boric [Reprodução]
Gabriel Boric tomou posse como presidente do Chile em 11 de março, depois de disputar uma eleição acirrada, tanto no primeiro quanto no segundo turno, com José Antonio Kast, do Partido Republicano do Chile, de posição pinochetista e ditatorial. Boric é do partido Convergencia Social, que integra a coalizão política Apruebo Dignidad, que reúne diferentes correntes da esquerda chilena, e ficou com 55,87% dos votos contra 44,13% do seu oponente.
Descendente de chilenos, Bianca Tavolari, professora do Insper e colunista da Quatro Cinco Um, acompanhou de perto as notícias sobre as eleições. Sua vontade de assistir à posse veio no anúncio do resultado eleitoral, mas a decisão de testemunhar esse evento histórico foi selada quando Boric divulgou que Maya Fernández Allende, neta de Salvador Allende, deposto por um golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973, seria a ministra da Defesa. Ou seja, a nova chefe das Forças Armadas é familiar do presidente retirado à força do poder. Uma reviravolta histórica cheia de simbologias fortes em um país politicamente cindido.
Tavolari conta um pouco da sua história familiar e de como a política divide suas famílias. Um lado é de uma esquerda progressista. Seu avô, Antonio Elías Tavolari, foi deputado entre 1969 e 1973, fundador do Partido Socialista de Viña del Mar, era próximo de Salvador Allende e foi torturado pela ditadura militar. Sua avó, Lidia Margarita Cristinich Iratchet, Comité Independiente de Mujeres Allendistas. Já outro lado dos seus parentes são católicos, conservadores e ligados à direita chilena. Ela assistiu à posse de Boric ao lado do seu tio e foi visitar primos que não via há anos. Essa família, diz Tavolari, é um microcosmo das relações familiares do Chile.
Além da participação no podcast, ela compartilhou impressões sobre a posse no texto Democracia como forma de vida, publicado no site da Quatro Cinco Um. Em sua coluna de As Cidades e As Coisas do mês de abril, a professora continua a tratar dos temas dos protestos por democracia que levaram a ocupações urbanas, como no Egito, na Espanha e nos Estudos Unidos, ao resenhar o livro Redes e ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo, do italiano Paolo Gerbaudo (Funilaria, 2022). Na edição 36, Tavolari já havia tratado da importância das manifestações urbanas em resenha do clássico A questão urbana, de Manuel Castells, publicado em 1972, mas que ganhou edição no ano passado pela Paz e Terra.
A mudança chegou
O Chile é um país que passa por revoltas sociais desde 2006, com a Revolta dos Pinguins, que mobilizou mais de 1 milhão de estudantes secundaristas em todo o país, com protestos de rua e ocupações de colégios, exigindo melhoras na educação e mudanças estruturais no país. Outra mobilização importante foram as revoltas de 2011, que reuniu estudantes secundaristas e universitários para protestar contra as estruturas educacionais chilenas.
O ensino universitário no Chile, apesar de público, é pago, e muitos jovens contraem dívidas impagáveis para completar o ensino superior, algo que não é mais garantia de emprego. Os principais porta-vozes do movimento universitário foram Camila Vallejo, presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FEUCH), e Giorgio Jackson, presidente da Federação de Estudantes da Universidade Católica do Chile (FEUC). Foi desse movimento que surgiu também Gabriel Boric, líder estudantil de 36 anos, tatuado, originário da província de Magallanes (fora do eixo político tradicional de Santiago) e que se elegeu por um partido diferente dos tradicionais do cenário político nacional.
Paulo Slachevsky [Divulgação]
Sua eleição também só foi possível com os protestos de 2019 e 2020 a favor da extrema esquerda. Inicialmente organizados contra o aumento da tarifa dos transportes públicos, os protestos foram aumentando e abrangendo outras carências sociais. O então presidente Sebastian Piñera reagiu às manifestações anunciando um estado de emergência, autorizando o envio de forças do Exército chileno, invocando a Ley de Seguridad del Estado contra dezenas de detidos e declarando um toque de recolher (o primeiro desde 1987, no final da ditadura de Pinochet).
O livro Chile em chamas: a revolta antineoliberal, que a editora Elefante lançou em 2021, procura contextualizar as manifestações dos anos anteriores no país. A obra traz dezoito entrevistas com políticos e militantes chilenos que ajudaram a construir a grande explosão social que eclodiu no país em outubro de 2019, desembocando, dois anos depois, em uma Assembleia Constituinte que deve enterrar a Constituição ainda em vigor no país e que foi escrita pela ditadura de Pinochet. Boric já declarou apoio à Constituinte, devendo aproveitar o momento para fazer uma série de mudanças.
O nosso colunista Paulo Roberto Pires escreveu também sobre os protestos que tomaram conta do Chile em 2019: “Um milhão de chilenos não derrubaram o governo, mas produziram nas ruas uma imagem de pura potência — o que não é pouco. O flagrante de manifestantes escalando um monumento do centro de Santiago correu o mundo por seu simbolismo evidente: entre bandeiras do país e faixas brancas e vermelhas, o quadro é dominado por um homem de braços abertos que, acima da multidão, de pé sobre a estátua equestre do general Baquedano, exibe outra bandeira, a dos Mapuche — povo indígena que lutou por mais de trezentos anos para defender seus territórios em partes do Chile e da Argentina.”
Os ossos dos mortos
Para entender melhor o momento político que levou ao golpe contra Allende, Paulo Werneck comentou do documentário A Batalha do Chile: A Luta de um Povo Desarmado, dirigido pelo chileno Patricio Guzmán. Ele é dividido em três partes: A Insurreição da Burguesia, O Golpe de Estado e Poder Popular, e mostra a tensão política no Chile em 1973 e a contrarrevolução contra o governo de Salvador Allende. Veja aqui um trecho curto do filme:
Perguntada por Werneck se Tavolari está atrás do paradeiro dos seus parentes, ela respondeu que está em uma “escavação” atrás do passado da família. Esse comentário fez com que Paula Carvalho relembrasse outro filme de Guzmán, A Nostalgia da Luz, que compara a busca de mulheres pelos ossos de seus filhos desaparecidos pela ditadura no deserto do Atacama, enquanto uma jovem astrônoma busca resposta nas estrelas do céu. Assista aqui ao trailer:
“Nós continuamos atrás dos ossos dos nossos mortos”, completou Werneck no podcast.
Mais na Quatro Cinco Um
A participação brasileira no golpe chileno e na Guerra Fria na América do Sul é tema do livro O Brasil contra a democracia, de Roberto Simon (Companhia das Letras, 2021), e que foi resenhado na edição 46 da revista dos livros por João Roriz.
María Elena Valdez [Divulgação]
O tema da ditadura chilena também não escapa à literatura infantil, como se vê pelo trabalho da autora María José Ferrada, em Crianças, lançado ano passado pela Pallas Míni, com ilustrações de María Helena Valdez. Após uma pesquisa documental de registros de crianças desaparecidas durante o período, Ferrada criou poemas tentando imaginar a vida que elas levavam antes de serem aprisionadas e mortas. A autora concedeu uma entrevista sobre este e outros livros a Paula Carvalho para a newsletter Rebentos em março de 2021.
O melhor da literatura LGBTI+
Neste episódio, o escritor Marcelino Freire, cujo livro Nossos ossos já foi recomendado nessa seção pela escritora Paula Fábrio, recomenda uma obra de uma autora travesti: Transradioativa: você me conhece porque tem medo ou tem medo porque me conhece?, de Valéria Barcellos (Arole Cultural, 2020), que também é cantora, artista plástica, atriz e DJ. Com prefácio de Jean Willys, é uma reunião de crônicas que abordam o tratamento de um câncer e o epistemicídio da população negra e LGBTI+.
Ao longo de 2021, o quadro contou com o apoio do C6 Bank e reuniu catorze livros e dicas literárias LGBTI+ de colaboradores da Quatro Cinco Um. Veja a lista completa.
Narradores do Brasil
Na coleção de episódios roteirizados Narradores do Brasil, o 451 MHz faz breves incursões no formato narrativo para explorar a vida e a obra de nossos grandes autores. Ouça o último episódio sobre o casal Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop. Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Nelson Rodrigues, Paulo Freire e Caio Fernando Abreu foram os outros autores contemplados nessa coleção.
O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação 451.
Apresentação: Paulo Werneck, Paula Carvalho e Marília Kodic
Coordenação Geral: Évelin Argenta, Paula Scarpin e Vitor Hugo Brandalise
Produção: Gabriela Varella
Edição: Claudia Holanda e Evelin Argenta
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: João Jabace
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Gravado com apoio técnico da Confraria de Sons & Charutos (SP).
Para falar com a equipe: [email protected]
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