Repertório 451 MHz,

Camões, fogo ardente

Nos 500 anos do poeta, episódio especial do 451 MHz resgata a biografia e decifra as múltiplas facetas de um homem apaixonado

24ago2024 • Atualizado em: 23ago2024

Luís Vaz de Camões (1524-80) reinventou o soneto, viajou pelos sete mares, foi preso, deportado, exilado, perdeu um olho durante uma batalha, salvou seus manuscritos de um naufrágio e se entregou sem pudor aos amores e à boemia.

Hoje é cantado na música pop, dá nome a um bife no Rio de Janeiro e virou até comercial de carro. Acima disso tudo, porém, está uma poesia que chega até nós em pleno vigor e beleza, inseminando a produção brasileira contemporânea.

Nos 500 anos do poeta, este episódio narrativo do 451 MHz resgata a biografia e decifra as múltiplas facetas desse homem apaixonado. Uma história contada em prosa e verso por Gregório Duvivier, Paulo Henriques Britto, Maria Bochicchio, Sabrina Sedlmayer, Luiz Antonio Simas e Rui Tavares, com textos lidos pela atriz Maria Manoella.

O episódio especial foi realizado com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura e do Instituto Camões-CCP Brasília.

O nome de Camões acabou se misturando à própria língua portuguesa — uma espécie de sinônimo. Ele não só transformou o idioma com sua obra, mas também se entrelaçou com a própria essência do Estado português. Vindo da baixa aristocracia portuguesa e tendo servido em grandes casas fidalgas de Portugal, o poeta passou a maior parte da vida no exílio, desterrado e na condição de estrangeiro.

Inspirado pelo poeta italiano Francesco Petrarca, Camões dedicou-se com afinco à arte do soneto — uma forma poética fixa composta por quatro estrofes. “O soneto, assim como um cubo mágico, tem a particularidade de que, se você ajeitar um verso, é provável que você estrague o seguinte. E, se você ajustar o seguinte, talvez você estrague o verso anterior”, conta Gregório Duvivier. 

Poesia, mar e safadeza

Duvivier é ator, comediante e poeta. Dos quatro livros de poesia que ele já publicou, dois são só de sonetos: Sonetos de amor e sacanagem (Companhia das Letras, 2021) e Sonetos (2017), publicado em Portugal pela editora Tinta-da-China. Ele completa dizendo que o soneto é “um cubo que precisa ser montado com certa paciência e quando funciona é uma delícia! É um gozo gigante você olhar para aquilo e falar: ‘encaixou!’”. 

Por também ter sido marinheiro, igual aos heróis d’Os Lusíadas, Camões não foi um poeta de gabinete. Ele passou pela costa da Mauritânia e pela ilha da Madeira; pelo Senegal, pelas ilhas Canárias, e por todo o arquipélago de Cabo Verde. Sem falar no golfo da Guiné, o Congo e Goa  —  além de também ter dobrado o cabo da Boa Esperança, na África do Sul.

A professora do Centro de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra Maria Bochicchio o descreve como “um homem que botou tudo a perder vivendo de amor e desamor, além de ter sido completamente humano”. E completa: “um poeta incógnito, vadio e encurralado no pouco espaço de tempo e de vida em que viveu, sobretudo nas temáticas de que ele trata na sua obra”.

Reza a lenda que foi em Macau, território colonizado por Portugal que hoje faz parte da China, onde o poeta escreveu sua grande obra: Os Lusíadas.

“Não é um livro tão colonialista como imaginam. Camões também coloca em xeque a empreitada colonial portuguesa”, diz Sabrina Sedlmayer, professora de literatura portuguesa na UFMG, que acredita ser importante “quebrar essa ideia mítica de quem é Camões”. Ela é uma das autoras de Travessias imaginárias: literaturas de língua portuguesa em nova perspectiva (Edições Sesc, 2020), panorama crítico sobre a literatura de língua portuguesa, e vice-presidente da Associação Internacional dos Lusitanistas. 

Epopeia própria

Em meio a tantas aventuras, a grande obra do poeta quase se perdeu. Publicado pela primeira vez em 1556, Os Lusíadas celebra as viagens de Vasco da Gama e a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Velejando pelo mundo afora, o navio de Camões um dia naufragou durante uma tempestade. De acordo com a lenda imortalizada por Severim de Faria, o manuscrito d’Os Lusíadas estava com o poeta, que conseguiu se salvar boiando em uma tábua e escapou nadando. Com uma das mãos ele dava braçadas e cortava as águas, com a outra segurava o manuscrito de seu livro.

A obra é composta por 1.102 estrofes divididas em 10 cantos e apresenta um total de 8.816 versos — que combinam elementos históricos, mitológicos e literários para exaltar as conquistas dos portugueses durante o período das grandes navegações. Sobre Os Lusíadas, o tradutor e poeta Paulo Henriques Britto diz que “é o grande momento de Camões, quando ele realmente se destaca. É uma epopeia diferente das outras epopeias. Mais tardia, com consciência de estar vivendo em um tempo diferente. Não tem nenhuma ingenuidade”.

Apesar de ter publicado uma obra monumental, Camões morreu em relativa pobreza e solidão. Segundo Henriques Britto — que é também professor da PUC-Rio e autor de Fim de Verão (2022) e Macau (2003), ambos editados pela Companhia das Letras — a verdadeira glória do poeta veio somente após sua morte, quando sua contribuição à literatura foi devidamente reconhecida.

“O sucesso dele é basicamente póstumo. Em vida, ele foi uma pessoa com uma vida muito difícil, o tempo todo. Ele não teve todas as glórias que ele imaginava que teria, não ganhou dinheiro”, diz o professor. 

Para Sedlmayer, a perspectiva contemporânea permite diferentes leituras dos escritos de Camões, a depender do tempo e do espaço histórico em que se dá a leitura. Apesar de ter sido amplamente celebrado e apropriado pelo Estado português, que lhe conferiu honras e prestígios, Camões permanece uma figura politicamente disputada. Todo 10 de junho, data que se acredita ser o aniversário do poeta, comemora-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

“Camões não é o que o romantismo vendeu como se fosse Camões. Não é o que o Salazar vendeu. Precisamos lembrar que Salazar, em um ato de censura, tirou ‘A Ilha dos Amores’ d’Os Lusíadas e vendeu o livro como uma mitologia de um país que vai além-mar, que não é pequeno, que é um desbravador e leva a fé católica e a língua portuguesa para o mundo”, diz a professora. “Esse não é o Camões que me interessa.”

Autor de milhares de versos, seus textos escritos no século 16 continuam a ressoar em Portugal, no Brasil e em outros países, sejam de língua portuguesa ou não. “Ler Camões hoje porque ele retrata o teatro do mundo, e o teatro do mundo não tem espaço, tempo, língua, geografia”, diz Maria Bochicchio.

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.
Direção-geral e apresentação: Paulo Werneck
Coordenação-geral: Mariana Shiraiwa
Produção: Mauricio Abbade
Roteiro e entrevistas: Clara de Alencar e João Gabriel Passos
Edição do roteiro: Amauri Arrais e Beatriz Muylaert
Edição e sonorização: Cláudia Holanda
Finalização e mixagem: Ana Sucha
Narração de trechos: Maria Manoella
Gravação de locução: Estúdio Tyranosom
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]

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