Trechos,

Amara Moira assina prefácio da edição comemorativa de ‘Elvis & Madona’

Romance de Luiz Biajoni sobre relacionamento entre lésbica e travesti ganha edição comemorativa de dez anos

28jun2021 | Edição #46

A edição comemorativa dos dez anos de lançamento da novela sobre o relacionamento entre a motoboy lésbica Elvis e a travesti Madona em Copacabana chega às livrarias essa semana. Tudo começou quando o escritor Luiz Biajoni publicou na internet Sexo anal – uma novela marrom em 2004, que teria uma edição impressa lançada em 2005.


 

Em 2008, durante as filmagens do seu filme Elvis & Madona, o direitor Marcelo Laffite baixou o livro na internet e viu que os personagens do romance eram muito parecidos com os de seu filme. Ele trocou e-mails com Biajoni e lhe mandou a primeira versão do filme. E fez uma proposta: “Biajoni, será que essa história não cabe num livro?” O escritor ficou em dúvida, mas aceitou: “Não podia perder a oportunidade de trazer esses dois personagens maravilhosos para o meu universo. A história de amor está ali, mas as tramas policiais foram ampliadas. E eu também imaginei uma infância e uma juventude para Elvis e Madona. E mudei o final, vingando todos os autores que tiveram seus livros modificados por cineastas”.

No final de 2019, o autor e o diretor conversavam sobre um relançamento do romance publicado em 2010 e marcaram um encontro que não aconteceu — Marcelo Laffitte morreu em dezembro daquele ano. A edição comemorativa é dedicada a sua memória.

No prefácio deesta edição, Amara Moira, travesti, crítica literária, autora de E se eu fosse puta e colaboradora da Quatro Cinco Um, analisa a obra à luz de 2021.

Prefácio: Travesti com Amapôa, que babado é esse?

Já não me lembro exatamente o contexto em que vi pela primeira vez o filme Elvis & Madona (2010), do diretor Marcelo Laffitte, mas sei que a impressão que ficou foi babado. À época do lançamento eu ainda não havia evoluído para travesti e, muito por medo, mas muito também para passar batida no meio de uma sociedade LGBTfóbica uó, eu evitava contato com produções LGBTQIA+, motivo de só ter me permitido assistir ao filme anos depois, possivelmente pouco antes da minha transição, em 2014. Discreta fora do meio, pode?

Os preconceitos que eu nutria contra comédias românticas devem ter contribuído com essa demora em assistir ao filme, mas foram também determinantes para o impacto que a obra deixaria em mim: saí simplesmente extasiada com a alegria e leveza da trama. De lá para cá, passaram-se anos sem que eu tenha voltado a me deparar com o Elvis & Madona, até que um belo dia recebo uma mensagem de Luiz Biajoni me convidando para escrever o prefácio da reedição do livro, que tinha sido escrito a partir do filme e lançado junto com ele em 2010.

Aceitei prontamente o convite, mesmo sem nunca tê-lo lido, e aproveitei a folguinha antes de o livro chegar para assistir outra vez ao filme e confrontá-lo com as minhas impressões atuais, já moldadas por seis anos de transição e militância. Que surpresa boa esse reencontro. Vi-o junto com a minha namorada, relação que em muitos pontos espelha a da própria trama, e nós duas rimos pencas, nos emocionamos pencas e saímos com a impressão de que, a despeito de uma ou outra questão problematizável aos olhos de hoje, o filme continuava boca de se fuder.

Um dos pontos que, nessa segunda vez, mais me chamaram a atenção foi justamente o fato de um filme de 2010 ter tido o cuidado de buscar uma atriz trans para o papel da protagonista, reivindicação que só recentemente vem ganhando sentido nos meios artísticos. Oras, se por conta da transfobia e da exclusão, pessoas trans já não são contratadas para nenhum papel, é importante que pelo menos quando personagens forem trans sejamos nós as escolhidas. É isso ou que pelo menos estejamos diretamente envolvidas na construção da obra, o célebre “nada sobre nós sem nós”.

Eu não conhecia a atriz, no entanto, ao procurar seu nome, o balde de água fria: Igor Cotrim. Nada contra o ator, ocó belíssimo e talentosíssimo, capaz inclusive de me fazer acreditar que ele seria efetivamente uma travesti, mas era mais uma vez um ocó fazendo o papel de uma mona. Acho importante pontuar suas habilidades para que não caiamos na armadilha de acreditar que uma travesti, por ser travesti, encarnaria muito melhor uma personagem travesti do que um homem cis… até porque nós não somos apenas travestis, temos muitíssimos outros atributos (como as personagens na telinha também têm) e, se aplicássemos com rigor essa lógica, atores e atrizes não poderiam encarnar senão eles mesmos numa produção.

Sim, eu acreditei que estava diante de uma travesti e, se não tivesse ido buscar nos créditos o nome de quem fez Madona, jamais teria feito essa descoberta. A crítica, perceba-se então, tem a ver com a politização das produções artísticas, um chamado na chincha para que elas comecem a atuar ativamente na transformação das desigualdades que concordamos que existem. Se não for no papel de Madona, que seja como roteirista, cenografista, figurinista ou em algum outro lugar de importância na produção da obra. Para que possamos também colher os louros que uma narrativa que se vale das nossas histórias produziu. O aqüé das bonitas, né, meu bem?

Mas esse é um debate de 2021, não de 2010, e julgar o filme apenas pelo olhar de hoje seria injusto e também apagaria seus evidentes méritos. O objeto deste prefácio, porém, é o livro e, embora ele e o filme dividam o título e quase a mesma história, é nítido que possuem diferenças. Uma notável, por exemplo, tem a ver com o suporte: em comparação com filmes, livros podem facilmente receber alterações, e esse será um dos diferenciais da reedição que chega agora até vocês.

Muita coisa mudou de 2010 para cá e, dentre elas, a visibilidade conquistada pelas lindezas que somos nós, pessoas trans. Sem essa visibilidade, eu não estaria aqui hoje, sendo convidada a refletir sobre a obra, nem teria as minhas considerações levadas em conta em sua reedição. Mas sem essa visibilidade eu também, muito provavelmente, nem tivesse condição de imaginar essas considerações. A minha leitura tanto do filme quanto do livro seria outra, muito mais refém da transfobia que nos formou a todos. Ser travesti não é o suficiente seja para vislumbrarmos essa estrutura que nos oprime seja para imaginarmos formas de superá-la… Mas há coisas que a intimidade com as questões trans acaba nos ajudando a perceber.

Um exemplo: meu primeiro incômodo, ao pegar a edição de 2010, foi perceber a naturalidade com que o narrador se referia à Madona no masculino e expunha seu nome de registro. Foi somente em 2014 que me assumi, mas desde meus primeiros contatos com travestis (lá atrazão, nos idos de 2003) eu já havia intuído que o certo era tratá-las no feminino e pelo nome com que se identificavam. Demorou para que a sociedade passasse a levar a sério reivindicações como essas, então entendo que o ocó, à época, não imaginasse o peso dessas questões, mas o que me encucou era que o filme não tinha nada disso.

No filme, é Madona quem pergunta a Elvis se esse era seu nome “verdadeiro” (pergunta terrível mas que, ainda hoje, é recorrente mesmo entre pessoas trans) e, na sequência, recebe de Elvis a mesmíssima pergunta, o troco. A própria Madona então, por livre e espontânea vontade, nos diz o nome com que foi registrada e ela o faz depois de ter provocado Elvis com essa mesma pergunta que não deve ser feita. No livro não, é o narrador quem assume o papel de disponibilizar já de cara a informação, com direito ainda a xoxar com a nossa cara (“Madona — aliás, Adaílton”). Para que serve essa informação?

Uma explicação para isso pode ser encontrada no fato de o filme não possuir a figura de um narrador, alguém que traduzisse em palavras o que estava vendo na cena, mas que, se houvesse, muito provavelmente tudo ocorreria da mesma forma. Prova disso é que o diretor não bateu o pé exigindo essa correção para a publicação do livro. O “aliás” foi agora mudado para “antes”, mas o nome do falecido segue lá, feliz e sorridente, disponibilizado por um narrador nitidamente cisgênero e nos lembrando o que a sociedade cisgênera deseja saber a nosso respeito. Não é um problema do autor ou do livro apenas, mas da sociedade, por isso acho importante continuar na reedição, tanto para não descaracterizar a obra, quanto para testarmos se hoje isso já é percebido de forma distinta. E essa questão do nome é apenas um exemplo.

Hoje, felizmente, é outra a situação em que as travestis se encontram. Pessoas trans já conseguem fazer com que suas reflexões e questionamentos circulem pela sociedade e, por sorte, o livro é muito mais fácil de ser alterado que o filme. Por sorte, também, temos um autor que se preocupou em entender a nossa perspectiva para, nessa reedição, lançar uma obra com a cara de 2021, bem mais afinada com a estética LGBTQIA+ (e a nota da Heloisa de Paula no fim desta edição é primorosa em mostrar essa consciência).

Há coisas que eu faria diferente? Sem dúvida, mas aí seria meu livro e não do Biajoni. Isso, porém, não apaga a importância que tanto filme quanto livro tiveram em ajudar a reinventar o imaginário do que é ser LGBTQIA+ no Brasil. Uma travesti até então heterossexual que cai de amores por uma mulher cis lésbica que jamais tinha imaginado a possibilidade de se relacionar com uma travesti? Um sentimento recíproco, com direito a [alerta spoiler!] final feliz, rompendo com a fixação de nos retratarem sempre em meio a tragédias, como se nem na ficção pudéssemos desfrutar de um pouquinho de esperança e paz? Isso tudo tendo sido lançado em 2010? Bicha, deixa de equê!

E pior que não é equê, mona. 

Saúdo então esse relançamento como um dos acontecimentos que precisamos celebrar em 2021. Que a história de Elvis e Madona, relançada em plena pandemia do Coronavírus, nos ajude a acreditar que ainda há muita vida para se viver. Axé! 

Amara Moira

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.