Trechos,
A infância reinventada de Chico Buarque
Em ‘Bambino a Roma’, autor mistura imaginação e lembranças do tempo em que viveu na Itália; leia trecho
29jul2024Aos 80 anos, Francisco Buarque de Hollanda, o Chico Buarque, é um dos nomes mais importantes na literatura em língua portuguesa. Vencedor do Prêmio Camões em 2019, ele agora mistura imaginação e lembranças da infância vivida na Itália no novo romance Bambino a Roma, recém-lançado pela Companhia das Letras.
Chico viveu na Itália com sua mãe, seus irmãos e seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, que esteve à frente da cátedra de estudos brasileiros da Universidade de Roma entre 1953 e 1955.
Entre passeios de bicicleta pela cidade e as memórias da relação com a família, o autor de livros como Anos de chumbo e outros contos (2021), Essa gente (2019) e O irmão alemão (2014), todos pela Companhia das Letras, cria uma ficção modelada pelas memórias desse recorte da infância. Leia um trecho a seguir.
Trecho de ‘Bambino a Roma’
Agarrado à bola de futebol, olhei para trás ao sair de casa na Rua Haddock Lobo 1625, São Paulo, assim que partiu o caminhão de mudança. Vendo a casa tão vazia, com manchas de mobília no chão e de quadros na parede, entendi que a ausência seria longa, talvez para sempre. Zarpamos do Rio, e no convés do Giulio Cesare passageiros se abraçavam e brindavam vendo a cidade se afastar na baía de Guanabara. Eu não olhava a baía, mas sim a espuma que o transatlântico fazia no mar, como que desarranjando o caminho de volta. Durante duas semanas num oceano sem fim, havia muita festa a bordo e jogos no tombadilho, mas se me perguntarem do que mais me lembro, direi francamente que só me lembro de um mar de vômito. Vomitei no mar, no tombadilho, na piscina, no camarote de segunda classe, vomitei amarelo na toalha do restaurante, vomitei no sapato do garçom, eu vomitava os remédios e vomitava em cima do meu vômito com nojo de mim.
Vomitei do Rio a Gênova com escalas nauseantes em portos que mal vi, na certeza de que aquele gosto nunca mais ia sair da minha boca. Devia ser ansiedade, pois quando me mostraram ao longe o porto de Gênova, meio que adormeci em pé. Sonâmbulo, não me lembro do cais, do trem, das luzes de Roma, era como se o navio tivesse atracado feito um táxi na porta de casa, Via San Marino 12.
Ao rés do chão de um prédio amarelo de quatro andares, o apartamento 2 era antiquado, sombrio, e estava gelado porque tinham se esquecido de ligar a calefação. Minha mãe explicou que o país saíra empobrecido da guerra, terminada poucos anos antes. Ela relutava em matricular os filhos nas escolas italianas, onde havia muita greve e o ensino era atrasado em relação ao nosso. Não era por isso que meu pai vinha dar aulas na Itália, mas na verdade nunca me explicaram direito o motivo da nossa viagem. Estava tudo confuso na minha cabeça, endereços se misturavam nos meus sonhos, e mesmo acordado permaneci num ambiente de sonho por um bom tempo. Estranhos entravam e saíam de casa carregando malas, arrastando baús, consertando torneiras, trocando lâmpadas e resmungando palavras que me soavam a xingamentos. Todos os cômodos eram revestidos com papel de parede, o telefone era de parede, móveis e quadros não eram os nossos, havia famílias de desconhecidos nos porta‑retratos, minha cama parecia a de um velho, de madeira pesada, escura, e cabeceira alta quase até o teto. Porque no estrangeiro é tudo estranho, assim falou uma das crianças, e o dito lá em casa virou mote. Eu não estranhava a língua nova ou a cidade antiga, para tudo isso já estava ensinado. Estranho, estranho mesmo era alguma coisa que eu não via, uma coisa que faltava em toda parte, e de noite eu perdia o sono matutando nisso; era dessas adivinhas difíceis de decifrar e que quando decifra a gente exclama: é claro!
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Era estranho ver no bonde tantos homens de muletas? Sim, mas não era a isso que eu me referia. Era estranho ver na feira tantas mulheres de luto fechado? Sim, mas não era disso que se tratava. Era um pouco estranho não ter feijão com arroz, mas logo tomei gosto pelas massas que a cozinheira servia todo dia no almoço.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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