Camila Sosa Villada: ‘Travestis não podem escrever porque vamos morrendo pelo caminho’

A Feira do Livro, Literatura,

Camila Sosa Villada: ‘Travestis não podem escrever porque vamos morrendo pelo caminho’

Com três lançamentos n’A Feira do Livro, argentina faz público rir e se emocionar ao falar sobre sua transescrita, memórias e affair imaginário com ex-RBD

01jul2024 - 19h12 • 02jul2024 - 10h56
(Fotografias de Matias Maxx)

Nem o frio de 12°C que fez em São Paulo na noite deste domingo (30) impediu o público de lotar a plateia do Palco Praça para ver Camila Sosa Villada. Uma das estrelas d’A Feira do Livro, a argentina, que está lançando três livros no festival literário, fez o público rir e se emocionar com os relatos sobre sua transescrita e a improbabilidade de se tornar escritora.

Em conversa com a jornalista Adriana Ferreira Silva, que citou uma passagem de A viagem inútil: trans/escrita sobre como a literatura alcançou a vida de uma pessoa que não estava destinada a ela, Sosa Villada lembrou de como as estatísticas nunca foram a favor de pessoas como ela. 

“Não só não estava destinada a escrever, como também a sobreviver. As travestis não podem escrever porque vamos morrendo pelo caminho”, disse Sosa Villada. “Meus pais me ensinaram a ler e escrever quando tinha três ou quatro anos. Eu sabia que tinha esse superpoder comigo, o poder da palavra.”

A jornalista Adriana Ferreira Silva e a escritora e atriz argentina Camila Sosa Villada

O ensaio A viagem inútil, lançado pela Fósforo, resgata as dolorosas lembranças da infância em Los Sauces, cidadezinha no interior da Argentina, onde a autora convivia com o vício em álcool do pai, testemunhava o abandono de sua jovem mãe e se emaranhava na devastadora paixão que um sentia pelo outro. 

Em 2018, Villada apresentou o livro em um festival literário e contou que o pai, que estava na plateia, foi embora ofendido e não falou com ela durante meses. “Sentia que estava traindo o meu pai, mostrando ele nu, mas essa foi minha experiência, que tinha me marcado como uma tatuagem”, afirmou. “Precisava falar disso, contar como tinha sido, sobre a ternura para um homem que era muito rígido.”

Encontrando a voz

No ensaio, a autora também conta que escreveu com uma voz feminina antes de sair às ruas vestida como mulher. “A literatura é um pouco profética e me ajudou a tocar o mundo como uma garota, uma travesti”, disse Villada, que explicou seu conceito de transescrita:

“A linguagem travesti nunca é algo comercial — como o inglês, por exemplo —, é uma linguagem completamente perigosa”, disse. “Escrever com essa linguagem faz com que as pessoas te considerem uma má escritora, mas é a disputa que eu estou apresentando e espero que toda travesti que está escrevendo o faça. Não aceitem a linguagem heterrossexual, nem a homossexual. Isso vai enriquecer a linguagem.”

Na conversa, Sosa Villada também falou de seu livro de estreia, que está sendo lançado no Brasil pela Planeta: uma coletânea de poemas que giram em torno do término da relação com seu primeiro namorado. “A juventude é um dos grande valores de A namorada de Sandro. Eu nunca mais vou escrever como quando era jovem”, disse ela, que lembrou que grandes livros foram escritos aos 23 anos, como O coração é um caçador solitário, da norte-americana Carson McCullers.

Alguns poemas da coletânea já tinham sido publicados por Sosa Villada em um blog, e ela contou por que quis reescrever parte deles para o livro: “Fiz um curso de gramática”, brincou, fazendo a plateia rir, e completou: “Foram escritos durante uma separação. As emoções intensas favorecem a literatura, mas também podem prejudicá-la.”

Olhando de cima

Na conversa, Sosa Villada falou ainda da importância de questionar como olhamos e retratamos pessoas que fogem ao padrão heteronormativo. Tese sobre uma domesticação (Companhia das Letras), que disse considerar seu melhor título, foi escrito depois do sucesso de O parque das irmãs magníficas (Planeta), romance que a tornou reconhecida internacionalmente, protagonizado por um grupo de travestis que se prostituem no parque Sarmiento, em Córdoba. 

A protagonista da nova história, chamada apenas de atriz, é uma travesti rica, famosa e invejada, que se submete às convenções sociais, atendendo aos desejos do marido, um advogado gay, do filho e da família. Sosa Villada contou que quis criar uma “ficção científica” porque, por muito tempo, se sentiu órfã, e também para responder às críticas que recebeu ao romance anterior.

“Esses críticos me olhavam com muita comiseração, ‘ah, que pena que acontece isso com as travestis latino-americanas’. Queria uma protagonista que olhasse de cima. O que aconteceria se uma dessas travestis olhasse essas pessoas nos olhos?”, questionou.

O romance foi adaptado para o cinema, num longa que estreia este ano e traz a autora no papel da protagonista e o ex-RBD Alfonso “Poncho” Herrera na pele do marido da atriz. Em mais um momento que arrancou gargalhadas da plateia, Villada disse ter terminado de rodar o filme, do qual também participou do roteiro, “tomando fluoxetina, com ataques de pânico e completamente apaixonada por Herrera”.

“Sonhei que tiravam uma foto nossa saindo de um café e depois vinha a manchete: ‘Quem é a namorada travesti de Poncho Herrera’. Obviamente, ele veio com a namorada e acabou com essa fantasia”, brincou. “Aceitei o papel para dar uns beijos nele.”

‘Higienização’ de travestis

Outro momento no qual a escritora provocou risadas foi ao reagir a uma pergunta da plateia, sobre a possibilidade de fazer um filme ou série inspirado em sua vida. “Aaaaah, não! Eu odeio biopics!” As adaptações, afirma, sempre tentam fazer uma “higienização das travestis”. 

Villada, que contou estar “curtindo seus privilégios”, sem nenhum projeto em vista, disse receber muitos roteiros que se repetem ao retratar personagens trans. “Não se trata de querer fazer uma mulher e uma pessoa ‘normal’, mas de que as personagens trans sejam complexas, interessantes, não que fiquem paradas como um jarro só para ocupar uma cota”, disse.

Sem perder o humor afiado, a argentina também demonstrou cansaço ao ser questionada sobre suas influências literárias. Após citar Marguerite Duras como uma “professora cruel”, Truman Capote e García Lorca, entre outros, disse que essa é uma pergunta muito recorrente. “Não sei se fariam essa pergunta a um autor famoso. Na presença de uma travesti, que é não imaginada na literatura, se faz quase uma autópsia”, criticou. “Minhas influências são minhas tias, as travestis com quem eu me reuni no parque Sarmiento.”Após a conversa, Camila Sosa Villada provocou uma das maiores aglomerações de leitores n’A Feira. A longa fila de autógrafos atravessava a praça Charles Miller.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.