Listão da Semana,

A ambiguidade do mau (comportamento)

‘Mau comportamento’, uma biografia de Clarice Lispector, um novo romance de Leonardo Padura, estudos sobre personalidades negras invisibilizadas e mais

15nov2021 | Edição #51

Sexo, drogas, fetiches, mulheres à beira de um ataque de nervos, desajustados de todo tipo em metrópoles americanas nos anos 80. Nos contos de Mau comportamento, Mary Gaitskill passeia pelo lado selvagem dos afetos humanos. Lançado em 1988, e com um de seus contos transformado em filme (A secretária, de 2002), o livro foi considerado um precursor das protagonistas imperfeitas, disfuncionais e cheias de erros — humanas, enfim. Os nove contos do livro de estreia de Gatskill, que em 2018 foi premiada pela Academia Americana de Artes e Letras por "realizações excepcionais na literatura", são lançados agora no Brasil pela Fósforo. 

Completam a seleção da semana uma edição ampliada da biografia de Clarice Lispector por Teresa Montero, um novo romance de Leonardo Padura, uma análise feminista da dívida, estudos sobre personalidades negras invisibilizadas e um livro de contos de Ruth Guimarães. 

Viva o livro brasileiro!

Mau comportamento. Mary Gaitskill.
Trad. Bruna Beber • Fósforo • 256 pp • R$ 74,90

Reúne nove contos publicados em 1988 pela escritora e ensaísta norte-americana, que costuma publicar seus textos na New Yorker, Harper's Magazine, Esquire, Artforum e Granta. O livro traz personagens ásperos e desajustados (viciados em drogas, sadomasoquistas, adúlteros), sobrevivendo um pouco à margem da sociedade ou em empregos maçantes, vivendo em apartamentos minúsculos e com comportamentos quase sempre destrutivos. O conto "Secretária" foi vertido para o cinema em 2002 por Steven Shainberg, com James Spader e Maggie Gyllenhaal nos papéis do advogado e sua secretária que mantêm um relacionamento sadomasoquista.
 
Trecho do livro: “Me admirava que um sujeito como esse advogado, que parecia ter a mente organizada e equilibrada, tivesse um escritório desses. Mas eu me sentia confortável ali. A natureza confusa daquele ambiente era como um ninho de farrapos bem trançados que proporcionavam acolhimento. As primeiras duas 
semanas foram serenas. Eu gostava da monotonia dos dias, da previsibilidade das petições, dos termos, das interações polidas que eu tinha com o advogado”.

Leia também: Em livro autobiográfico, a argentina Camila Sosa Villada conta sobre sua reconstrução e seu processo de ruptura com o mundo dito normal.

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À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Teresa Montero. 
Rocco • 768 pp • R$ 119,90

Montero, que em 1999 publicou sua tese de mestrado sobre a vida de Clarice Lispector no livro Eu sou uma pergunta, lança agora uma edição bastante ampliada da biografia da escritora. Foram incluídos documentos e informações ainda pouco conhecidos e fotos inéditas — há, inclusive, um capítulo especialmente dedicado às imagens da escritora, “Clarice pela lente dos fotógrafos”. Montero publicou também O Rio de Clarice (2018) e organizou vários volumes com textos da escritora: Correspondências (2002), Outros escritos (2005), Clarice na cabeceira: contos (2009) e Clarice na cabeceira: crônicas (2010). 

Leia também: Manuscrito de A hora de estrela lança perguntas sobre o processo criativo de Clarice Lispector.

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Como poeira ao vento. Leonardo Padura.
Trad. Monica Stahel • Boitempo • 544 pp • R$ 83

Romance de suspense concluído durante a pandemia, retrata o processo de dispersão de toda uma geração de cubanos pelo mundo entre o final dos anos 80 e o início do século 21. O livro tem como protagonista Adela, uma moça nova-iorquina de ascendência cubana, que se casa com Marcos, um cubano recém-chegado aos Estados Unidos, contrariando a vontade de sua mãe. Marcos vai lhe contando acontecimentos de sua vida na ilha e lhe mostra uma foto de quando era criança, em 1990, na qual ela reconhece uma figura bastante familiar. E isso muda sua vida.

Leia tambémAutor cubano fala do prazer que sente em ser reconhecido quando viaja ao Brasil.

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Uma leitura feminista da dívida. Luci Cavallero e Verónica Gago. 
Trad. Luísa Acauan Lorentz e Vitória Gonzalez Rodriguez • Criação Humana • 96 pp • R$ 65

Duas pesquisadoras argentinas analisam criticamente a dívida e seus efeitos perversos sobre donas de casa, chefas de família, trabalhadoras formais, trabalhadoras da economia popular, trabalhadoras sexuais, migrantes, moradoras de vilas e favelas, negras, indígenas, travestis, camponesas e estudantes. O livro mostra a conexão do endividamento com a aceleração das agendas econômicas de corte de serviços sociais, encarceramento de mulheres e outras estratégias de aniquilamento de vulneráveis e também aponta as possibilidades de desobediência às políticas neoliberais e suas micropolíticas fascistas.  
 
Trecho do livro: “Veremos em ação isso que Foucault pensava como transcrição permanente entre moralidade e lei ou, dito de outro modo, em que cenas se concretiza a disputa de um conjunto de condicionamentos morais sobre os quais logo opera a penalidade. Por isso é cada vez mais evidente como a recolonização financeira de nosso continente que propõe o neoliberalismo fascista exige simultaneamente a produção de juventudes endividadas e disciplinadas sob o mandato da família hétero-patriarcal”.

Leia também: Ensaio destaca como normas jurídicas neutras discriminam a mulher e aumentam as desigualdades nas relações de trabalho.

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Uma nova História, feita de histórias: personalidades negras invisibilizadas da História do Brasil. Djamila Ribeiro e Maurício Rocha (orgs.).
Jandaíra • 272 pp • R$ 49,90

Dezesseis estudos de pesquisadoras e pesquisadores negros sobre escravizados, recém-libertos, líderes políticos, intelectuais e artistas negros que não receberam a atenção devida na "história oficial". Entre eles estão Gregório Luís, líder da Revolta de Santana, em 1789, capitão Marcolino José Dias, Eduardo Ribeiro, o governador negro do Amazonas, Mãe Pulquéria de Oxóssi, a jornalista Bernardina Maria Elvira Rich, Mestre Badu, Dona Joana de Andrade Pereira, King Nino Brown e Paquinha.
 
Trecho do livro: “Cada texto é construído a partir de referências fragmentadas retiradas de documentos históricos, da imprensa, de pesquisas acadêmicas e de depoimentos pessoais, entremeadas pelo ouro das reflexões e do talento de seus autores e autoras – que, assim como seus biografados e biografadas, também são as estrelas deste volume. Cada texto conta a história de uma pessoa, mas também de uma época da História do Brasil”.

Leia também: Enciclopédia negra faz um trabalho de reparação histórica ao identificar figuras desconhecidas pela maioria dos brasileiros.

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Contos do Céu e da Terra. Ruth Guimarães.
Apres. Marco Haurélio • Faro Editorial  • 144 pp • R$ 39,90

Discípula de Mário de Andrade, que orientou sua pesquisa sobre contos folclóricos, Ruth Guimarães (1920-2014) estreou na literatura em 1946 com o romance Água funda, sobre a vida caipira em Minas Gerais, ao qual se seguiu, em 1950, Os filhos do medo, grande levantamento sobre as manifestações do demônio no imaginário do Vale do Paraíba, e que foi muito elogiado por Antonio Candido e Erico Verissimo. Em depoimento ao Museu Afro Brasil, ela declarou: "Eu conto a história da roça, de gente da roça, do caipira. Eu também sou caipira, modéstia à parte”. Contos do Céu e da Terra traz histórias lendárias inspiradas na tradição oral do Vale do Paraíba, com temas religiosos (a redenção do ladrão, o demônio logrado, o fariseu e o publicano).

Trecho do livro: “Mastrilhas era o ladrão mais malvado do mundo. Homens de barba na cara tremiam só de pensar em atravessar a floresta e dar de encontro com ele, na noite. Mandava chicotear os ricos comerciantes de quem tomava o dinheiro. Queimava carruagens. Fazia correrem nus, para fora do seu reino de terror, os grandes dignitários que, por infelicidade, por ali tinham sido obrigados a passar."

Leia também: Oswaldo de Camargo escreve sobre livros de contos de Ruth Guimarães.

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Listão da Semana: confira os lançamentos de semanas anteriores

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34).

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.