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O (não) diário de viagem de Mário

Organizadora da nova edição de ‘O turista aprendiz’, Flora Thomson-DeVeaux fala das muitas facetas do modernista, com fama de péssimo viajante, em sua incursão pelo Norte e Nordeste

14out2024 • Atualizado em: 23out2024

Mário de Andrade tinha 33 anos quando, em 1927, embarcou em uma viagem de 69 dias pela Amazônia. A ideia era, como muitos de seus colegas modernistas, desbravar o Brasil profundo, conhecer a verdadeira identidade nacional. Ao chegar ao local de embarque, no entanto, o escritor paulista logo descobriria que suas companhias na expedição — a mecenas Olívia Guedes Penteado e duas adolescentes — não eram exatamente o que esperava, para além de sua reiterada fama de péssimo viajante. 

O resultado das muitas notas de um dos fundadores do modernismo brasileiro nessa e em outras incursões pelo Brasil deram origem a mais que um diário de viagem como os muitos que povoam a literatura, da Odisseia de Homero à carta de Pero Vaz de Caminha. “Não é um diário de viagem, é um diário”, define Flora Thomson-DeVeaux, organizadora e autora do prefácio de O turista aprendiz, volume que reúne os relatos de Mário e acaba de sair em nova edição pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. “Tem muitas fugas dele mesmo, da viagem, da paisagem, muita fantasia. É um terreno irregular.”

A pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux no lançamento do livro O turista aprendiz em Paraty (Yolanda Frutuoso)

A tradutora e podcaster contou, em conversa com o jornalista e colunista da Quatro Cinco Um Fernando Luna, um pouco da sua relação com a obra de Mário e de sua própria experiência de viajante em lançamento na Livraria das Marés durante a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. 

Nascida em Charlottesville, no estado norte-americano da Virgínia, e formada em espanhol e português pela universidade Princeton, DeVeaux teve o primeiro contato com o modernista no quinto período da faculdade, quando leu Macunaíma. Entre idas e vindas ao Brasil, onde vive desde 2017, a tradutora e pesquisadora contou que, coincidentemente, conheceu O turista aprendiz durante outra Flip, em 2015, na edição em que Mário foi o escritor homenageado, e se identificou completamente. “Foi uma leitura tocante e desconfortável”, lembra. “Sou uma péssima viajante e o livro entrou na minha vida.”

Capturada pelo olhar único do escritor, DeVeaux se tornou a responsável pela tradução de O turista aprendiz para o inglês, pela editora Penguin. Na nova edição brasileira dos relatos das viagens de Mário, estão os diários das expedições pelos rios Amazonas até o Peru e Madeira até a fronteira boliviana — além de uma viagem pelo Nordeste em 1928, na qual, mais bem sucedido, coletou dados sobre muitas manifestações culturais. 

Escrito depois de Macunaíma, mas publicado postumamente apenas nos anos 70, o livro revela muito do processo criativo do escritor, seu olhar singular sobre a paisagem e as pessoas e outras facetas menos conhecidas de um sujeito muito pouco afeito a viagens. “Sinto uma verdade profunda no que Mário relata”, diz a organizadora ao ser questionada por Luna sobre o quanto há de fabulação nos relatos. “Não é charme, ele exagera pouquíssimo.”

Memórias póstumas

Flora Thomson-DeVeaux também é autora da tradução para o inglês de Memórias póstumas de Brás Cubas, outro romance canônico da literatura brasileira que viralizou recentemente nas redes sociais com o vídeo da produtora de conteúdo norte-americana Courtney Henning Novak, impressionada com a prosa de Machado de Assis. 

“Queria fazer algo diferente do Machado e tive que jogar minha caixa de ferramentas fora”, brincou DeVeaux ao falar sobre as diferenças de traduzir os dois autores. No caso de Mário, a maior dificuldade é a maneira como o autor dialoga com a língua portuguesa e muitas expressões indígenas que foram incorporadas, observou a tradutora.

Flora Thomson-DeVeaux, organizadora da nova edição, e o jornalista Fernando Luna no lançamento do livro O turista aprendiz na Livraria das Marés, em Paraty (Yolanda Frutuoso)

A oralidade onipresente nos escritos de Mário e as diferentes vozes que o escritor adota a cada nova anotação, entre a etnografia e a fantasia, foram outras dificuldades. “Fui inventando, tentando dar a entender, mas não replicar. Sempre que dava, inseria um errinho, principalmente no jeito de falar”, afirma. “Mário muda o tom o tempo inteiro, finge ser um antropólogo, um documentarista, tem muitas conversas entreouvidas.”

A tradutora também lembrou de uma viagem que fez em 2018, antes de pensar em traduzir O turista aprendiz, de Santarém a Belém de barco — uma viagem “que só turista faz”, como brincou — e do quanto a experiência amazônica foi importante para interpretar os diários do modernista. 

“Eu lembrava muito daquele balanço do barco, que faz você entrar numa outra temporalidade”, contou. “Mario fala em sublime monotonia, parece que os relógios estão girando em falso.” A experiência se repetiria quando estava terminando a tradução e recebeu um convite para ir a São Gabriel da Cachoeira, cidade na região amazônica do alto rio Negro.

Encontro com João do Rio

A sexualidade de Mário, um tema pouco explorado pelo autor e objeto de muitos de seus estudiosos, também se deixa entrever em alguns dos escritos, como mostra um dos trechos lidos por Fernando Luna em que o paulista elogia a figura de belo viajante. 

Instada pelo jornalista, DeVeaux imaginou como seria um encontro entre o criador de Pauliceia desvairada (1922) e João do Rio, o cronista que adotou sua cidade até no pseudônimo, homenageado da Flip deste ano. Ambos, como observou o mediador, homens mulatos e, se não assumidamente homossexuais, mais próximos do que hoje seria uma identidade queer. “O julgamento mútuo seria uma coisa incrível. Não se dariam bem, mas seria um grande encontro”, disse DeVeaux. 

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.