

Lançamento, Literatura brasileira,
O ímpeto de partir
Paula Carvalho e Gaía Passarelli falam de desafios e descobertas de desbravar o mundo no lançamento de Mulheres viajantes, de Sónia Serrano
18mar2025Em peregrinação religiosa, Egéria, que viveu no século 4, foi da Península Ibérica a Jerusalém descrevendo o trajeto em cartas. A francesa Jeanne Baret (1740-1807) e a austríaca Ida Pfeiffer (1797-1858) deram a volta ao mundo de barco. A irlandesa Dervla Murphy (1931-2022), que viajou o mundo de bicicleta, teve que se valer de sua pistola para se defender de um homem que tentou atacá-la numa aldeia turca. Todas essas mulheres tinham em comum o ímpeto de partir, em diferentes épocas e contextos em que descobrir a si próprias e o mundo lhes era negado.
“O maior desafio para uma mulher viajar é sempre partir”, disse a jornalista e historiadora Paula Carvalho, citando a velejadora Tamara Klink, no lançamento de Mulheres viajantes, de Sónia Serrano, na noite da última quinta (13) na Livraria da Tarde, em São Paulo. No livro da Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, a autora portuguesa compila histórias de mulheres que, ao longo dos séculos, desafiaram convenções para desbravar o mundo. Ou, como ela prefere, quebrar a “maldição de Ulisses”, referindo-se à tradição literária representada pelo destemido herói da Odisseia, que enfrenta toda sorte de aventuras enquanto sua amada o aguarda em casa.

“Toda mulher viajante ouve a pergunta ‘você vai sozinha?’, independente de situação social, idade, se está indo ao bar ou ao Afeganistão”, completou a também jornalista Gaía Passarelli, ela própria uma das viajantes brasileiras citadas no livro de Serrano. Em 2016, Gaía lançou Mas você vai sozinha? (Globo Livros), em que relatou as muitas viagens que fez pelo mundo, batizado com a pergunta que sempre ouviu. Junto com Paula, que é autora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo, 2022), as duas compartilharam algumas de suas experiências viajando (sozinhas ou não) e das muitas mulheres que as inspiraram.
A suíça Eberhardt (1877-1904), objeto do livro de Paula e também retratada por Serrano, foi uma delas. Ela viveu até o fim de sua curta vida (morreu aos 27 anos), tanto como mulher quanto como Si Mahmoud Saadi, o seu alter ego muçulmano quando estava na Argélia — e com o qual também assinou alguns dos seus textos. Assim como a suíça, que adotou um personagem para viver o que era proibido às mulheres, Paula contou que quando leu On the road: pé na estrada, o clássico de Jack Kerouac, entrou em crise. “Quando comecei a ler, pensei: eu também quero ser homem!”, disse, fazendo a plateia rir.
Ao ler as histórias do livro de Serrano, as jornalistas dizem ter descoberto muitas outras mulheres que, com maior ou menor dificuldade, superaram limitações e estereótipos e deram grande contribuição para a literatura de viagem com os relatos de seus périplos. “Mulheres sempre viajaram, mas ainda hoje as histórias são tratadas como diferentes, algo impetuoso”, afirmou Paula. “No passado, as referências que eu tinha de literatura de viagem eram todas de homens, como o Paul Theroux e o Anthony Bourdain”, lembrou Gaía. “Elas sempre viajaram, mas não tinham espaço para publicar como seus pares homens.”
Bagagem
Um aspecto comum a muitas das personagens de Mulheres viajantes, o tipo de roupa que as aventureiras usam em suas viagens já foi tido como um empecilho e é até hoje uma questão. Foi o caso da britânica Mary Kingsley (1862-1900), “uma das preferidas de Serrano”, segundo Paula, que mesmo viajando pelas úmidas florestas tropicais do Congo, sempre manteve a gola do vestido fechada até o pescoço. Já a arqueóloga francesa Jane Dieulafoy (1851-1916), influenciada pelo marido, passou a usar apenas trajes masculinos. E não só nas suas expedições pela Pérsia, mas também na sua França natal.
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Gaía Passarelli se lembrou de sua primeira viagem sozinha à Índia, na qual recebeu uma orientação importante sobre levar pouca roupa na mala e comprar as vestimentas locais, mais adequadas ao clima e também como uma maneira de ser menos notada. “As roupas eram mais leves e tinha a questão de chamar menos a atenção, mas também fazer mais parte daquele lugar”, disse. Paula lembrou do uso do hijab, véu islâmico que é item obrigatório para mulheres em alguns lugares e objeto de controvérsia em partes do Ocidente. “Se você vai se incomodar com o hijab, não vá a esses lugares. Isso é uma lei e uma forma de respeito, além de ser o menor dos problemas que as mulheres enfrentam nesses países.”
Segurança
As autoras também compartilharam histórias em que se sentiram inseguras viajando. Na passagem em que é citada em Mulheres viajantes, Gaía relata uma experiência na Escócia, em que faria uma trilha por montanhas e questionou uma moradora se não seria perigoso estar sozinha no percurso. “Ela claramente não entendeu que eu estava falando de violência”, brincou. “A Sónia conta isso como a experiência de uma mulher latina, que leva a insegurança para onde vai.”
Paula Carvalho contou sobre um ataque de pânico que sofreu em plena Muralha da China, quando viajava com um amigo e descobriu que tinha fobia de altura. “Sou muito medrosa, mas decidi que não vou deixar de viver coisas por causa desse medo”, disse. A jornalista citou novamente Tamara Klink ao se referir ao medo como um aliado para exploradores de qualquer tipo. “É bom que se tenha medo porque isso significa que você está segura, não vai se colocar em perigo.”
Significado da viagem
E por que se viaja? Questionadas pela plateia, as autoras refletiram sobre os muitos significados de conhecer novos lugares. Paula contou sobre um mochilão pela Ásia, quando passou por países como China e Irã. “Encontrei pessoas que não sabiam quem era Jesus Cristo. A viagem mudou muito minha perspectiva”, admitiu. “Também descobri uma melhor versão de mim, amadureci.”
“Quando estou viajando, eu não faço amizades, gosto de ficar sozinha e mergulhar nos lugares, nos cheiros, me envolver com um ambiente que está muito fora do meu”, contou Gaía, que se recordou novamente de sua viagem à Índia como um divisor. “Não se passa uma semana sem que eu pense em voltar à Índia, com toda sua complexidade. É um país difícil de viajar e onde os clichês sobre o Brasil (futebol, samba, Carnaval) simplesmente não funcionam.”
Num plano geral, as duas acreditam que muitas mulheres ainda percorrem o mundo para viver e relatar suas próprias experiências. “É comum achar que vão encontrar a liberdade nesses lugares. Estão em uma outra posição, são mais donas do próprio nariz”, completou Paula.
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