Festival literário,
Flica 2023 começa destacando mulheres e ancestralidade voltada para o futuro
Em seu primeiro dia, festa literária em Cachoeira homenageia matriarcas e reúne autoras que propõem mais diálogo com o Brasil afro-indígena
27out2023 | Edição #75Sob um calor quase inimaginável até para os cachoeirenses, a 11ª Flica, Festa Literária Internacional de Cachoeira, começou na manhã desta quinta-feira (26) com o tema “Poéticas afro-indígenas no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia”.
Na abertura oficial, além dos discursos de praxe, foram destacados o protagonismo tanto de Cachoeira nas lutas pela independência quanto o de mulheres nessas e outras lutas. E a programação das mesas do primeiro dia da festa, com curadoria das professoras Luciana Brito e Mírian Sumica, foi basicamente das mulheres.
Para abrir os trabalhos, uma mesa-homenagem às matriarcas reuniu Berenice Borges dos Santos, a Dona Biu, mãe de santo, marisqueira e sambadeira de São Francisco do Conde (BA), Dalva Damiana de Freitas, a Dona Dalva, matriarca do samba de roda de Cachoeira, e Yakuy Tupinambá, ativista, pensadora e liderança do povo tupinambá de Olivença (BA).
“Temos que falar do passado e da gente”, disse Dona Dalva, 96, que também cantou e sambou, assim como Dona Biu, que lembrou de suas raízes de sambadeira e mãe de santo e de seus dez filhos “criados no mangue”. “Sou a mulher que pisa na lama”, resumiu.
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Yakuy Tupinambá lembrou da resiliência das mães e avós na mesa, intitulada “Caminhos de luta, estradas de fé: poéticas da resistência afro-indígena”. A pensadora indígena ainda falou da escrita como forma de cura, da importância histórica da oralidade, do exercício da escuta e de sua luta pelo reconhecimento do povo tupinambá do sul da Bahia.
A cara e a cor da justiça
Na mesa 2, com o tema “Escritos de liberdade: independências por direitos e pela vida”, o encarceramento de pessoas negras no Brasil e a luta de povos originários por sua existência foram analisados por Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias Nascimento e diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), pela professora e crítica de arte e cultura Denise Carrascosa e pelo antropólogo e advogado Felipe Tuxá.
O encontro partiu de um paralelo entre a coletânea Submundo: cadernos de um penitenciário, que reúne manuscritos de Abdias Nascimento durante sua prisão no Carandiru, e Firminas em fuga, produzido a partir de escritos de detentas da penitenciária feminina de Salvador, com a coordenação de Carrascosa.
Elisa Larkin Nascimento, Denise Carrascosa e Felipe Tuxá falaram sobre escritos produzidos no cárcere [Diego Silva/Divulgação]
“Uma das instituições que estabelecem o estado brasileiro é o encarceramento”, afirmou a professora. Para Larkin Nascimento, as reflexões contidas em Submundo oferecem uma rota para contestar o racismo ainda presente no Judiciário e no sistema carcerário. “Os escritos do cárcere de Abdias e de outros escritores são maneiras de contrariar e ocupar um espaço de poder em oposição a essa brancura cuja luz infernal ainda nos oprime”, declarou.
Ainda sobre a relação dos povos negros e originários com o estado brasileiro, Tuxá associou a morosidade na demarcação de terras indígenas a uma ferramenta para facilitar o genocídio de comunidades originárias. “A justiça tem berço, cara e cor, e ela não queria que a gente tivesse aqui.”
Construção de futuros
Mais tarde, a mesa “Contos, histórias para escrever o futuro: quem constrói a nação?” reuniu as escritoras Luciany Aparecida, Auritha Tabajara e Marilene Felinto.
“Todo trabalho literário é a tentativa de construir quem pode narrar a nação”, disse a baiana Aparecida, que escreve em diálogo com documentos históricos e acaba de publicar o romance Mata doce pela Companhia das Letras. “Minha literatura fala de um futuro de liberdade pensado no século 19. Um futuro ancestral, não linear”.
Para Auritha Tabajara, a ancestralidade ajuda a nos manter vivos e permite trazer para o presente as vozes das mulheres que vieram antes de nós. E não só delas: “Nós, mulheres indígenas, escrevemos com várias vozes: da água, do vento, da mãe Terra, que se unem na voz da ancestralidade. É preciso saber de onde você veio para ver aonde você vai.”
Felinto relatou a dificuldade de falar de sua própria literatura: “Os textos só me pertencem na hora em que estou escrevendo”, explicou. Ela ainda falou sobre sua construção identitária, consequência do choque cultural da diáspora nordestina. Nascida em Recife e com origem sertaneja — a mãe é do sertão da Paraíba — a autora se mudou na infância para São Paulo. Segundo a escritora, o trauma da perda da terra natal a fez buscar uma linguagem para a experiência do exílio. “O que me espanta a ponto de escrever é o estranhamento causado pela diferença: a cidade pequena e a grande, o branco e o preto, pobre e rico, as diferentes línguas.”
O primeiro dia da programação da Flica foi encerrado pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí e a escritora guarani Geni Núñez. Em uma mesa sobre as perspectivas para as mulheres num mundo descolonizado, a autora de A invenção das mulheres falou da gênese de seu livro, que escreveu em 1997 depois de concluir que a sociedade iorubá não classifica o mundo com base em divisões binárias de gênero. “Me disseram que em todos os lugares as mulheres eram subordinadas aos homens, eu não tinha certeza que isso acontecia de onde eu vinha”, contou Oyěwùmí.
A socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, ao centro, conversa com a escritora guarani Geni Núñez, à direita [Diego Silva/Divulgação]
Núñez, que também é psicóloga e ativista, traçou um paralelo entre as conclusões da professora nigeriana e a sua própria cultura guarani. “Na língua guarani não temos pronomes possessivos nem pronomes binários”, disse. “Nem todos os seres têm mãe e pai, a vida não começa e nem termina em homem ou mulher.”
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.