Conversas sobre escrita trans e comida de verdade aquecem o público no segundo dia de festival

A Feira do Livro,

Conversas sobre escrita trans e comida de verdade aquecem o público no segundo dia de festival

Público lotou mesas da argentina Camila Sosa Villada e da cozinheira Rita Lobo, além de outras sobre poesia, português e até matemática, no domingo gelado na capital paulista

01jul2024 - 12h57 • 01jul2024 - 16h18
(Filipe Redondo)

O frio que chegou a São Paulo não diminuiu a temperatura dos debates nem espantou o público do segundo dia d’A Feira do Livro 2024, que contou com conversas sobre escrita trans, comida de verdade, mulheres que resistem à violência, política e até matemática.

No início da noite, sob 13ºC, a escritora argentina Camila Sosa Villada aqueceu a plateia que lotava o Palco da Praça e fez o público rir e se emocionar com os relatos sobre sua “Transescrita”, título da mesa que fechou a programação do domingo (30), uma das mais esperadas do evento, que teve como mediadora a jornalista Adriana Ferreira Silva.

Público enfrenta as baixas temperaturas para assistir à argentina Camila Sosa Villada (Matias Maxx)

Em um desses momentos, Ferreira relembrou que Villada diz em A viagem inútil: trans/escrita, coletânea de ensaios lançada pela editora Fósforo, que a literatura alcançou a vida de uma pessoa que não estava destinada a ela. “Não só não estava destinada a escrever, como também não estava destinada a sobreviver”, completou a autora.

“As travestis não podemos escrever porque vamos morrendo pelo caminho. Meus pais me ensinaram a ler e escrever quando eu tinha três ou quatro anos. Eu sabia que tinha esse superpoder comigo, o poder da palavra”, disse.

Após a conversa, a autora, que está lançando também a coletânea de poemas A namorada de Sandro (Planeta) e o romance Tese sobre uma domesticação (Companhia das Letras), reuniu uma das maiores filas de leitores para autografar livros n’A Feira. A longa fila atravessava a praça Charles Miller, mesmo com a temperatura continuando a cair. 

Da literatura à culinária, outro sucesso do dia foi a cozinheira e apresentadora Rita Lobo, autora do projeto editorial Panelinha, que vem resgatando o valor da comida saudável e saborosa na mesa dos brasileiros. No debate “À mesa com Rita Lobo”, que aconteceu à tarde, ela falou sobre o ato de cozinhar em família e disse acreditar que o termo “comida com afeto” é uma abordagem “machista”. 

“Fazer comida tem a ver com afeto, você querer alimentar o outro, mas eu não gosto dessa abordagem de ‘comida afetiva’ porque ninguém questionaria se um homem não ama seu filho porque não cozinha para ele. Cozinhar é sim uma forma de cuidar do outro, mas, primeiramente, é uma maneira de cuidar de si”, disse a cozinheira.

A jornalista Isabelle Moreira Lima durante mesa com Rita Lobo no Palco Praça (Filipe Redondo)

Lobo, que é uma defensora da comida saudável preparada em casa, falou também sobre o Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde, e o consumo de alimentos ultraprocessados. “Uma amiga jurou que não comia alimentos ultraprocessados. Mas certo dia, em um café da manhã na casa dela, tinha pão de forma, suco de caixinha e cereais matinais. Pedi para ela ler os rótulos e a surpresa foi grande: ‘Putz, eu não acredito que estou comendo isso, não sabia’”, contou.

Mulheres, mulheres

Além de Villada e Lobo, outras mesas d’A Feira deram protagonismo às mulheres neste domingo. A mesa “Asma, boca e cova profunda” lotou o Auditório Armando Nogueira ao reunir as poetas Adelaide Ivánova e Mar Becker, cujos livros a mediadora Irene de Hollanda definiu como uma genealogia das mulheres insubordinadas.

Ivánova acaba de lançar Asma, pela editora Nós; seus poemas seguem Vashti Setebestas, uma mulher de 3 mil anos que se volta contra a repressão estatal e as histórias criadas pelos homens. Já Becker publicou cova profunda é a boca das mulheres estranhas pela Círculo de Poemas, em que mostra as resistências silenciosas de mulheres diante de uma forte religiosidade.

As poetas Mar Becker e Adelaide Ivánova durante a mesa Asma, boca e cova profunda”

Já na mesa “Violências familiares”, as escritoras Tatiana Salem Levy e Claudia Piñeiro falaram sobre a representação literária da violência contra a mulher, seja dentro da família, seja a do Estado, e a força e a importância das narrativas feitas por mulheres. Levy acaba de lançar Melhor não contar (Todavia), que trata dos assédios que sofreu do padrasto; a argentina Piñeiro está lançando no Brasil o romance policial Catedrais (Primavera Editorial), uma trama que envolve aborto e feminicídio.

“A violência faz parte de nossa vida”, disse Levy, que sustenta que escrever é nomear essa violência. A luta pela legalização do aborto na Argentina e no Brasil, assim como a importância de mais mulheres serem publicadas e o alcance coletivo e político da literatura, foram alguns outros assuntos abordados na mesa, mediada por Paula Sacchetta, documentarista especializada em temas ligados a direitos humanos e diretora do documentário Precisamos falar do assédio.

As escritoras Nara Vidal e Eliane Alves Cruz no auditório Armando Nogueira (Matias Maxx)

A experiência racial sob diferentes perspectivas também foi discutida n’A Feira do Livro. Na mesa “Trilha das Letras: Nara Vidal”, a escritora mineira falou sobre Puro (Todavia), romance ambientado em uma pequena cidade fictícia de Minas Gerais que procura se tornar um exemplo de eugenia no Brasil. 

“A ideia de pureza não é necessariamente boa, ela exclui, além de ser empobrecedora. É consequência de uma narrativa que costumamos ouvir na História”, afirmou a escritora. “A pureza não existe”, arrematou a mediadora Eliana Alves Cruz, também escritora.

Vidal contou ainda sobre seu espanto ao pesquisar o tema do livro, uma vez que as escolas não ensinam que a eugenia foi uma prática do primeiro governo varguista (1930-1945).

A editora Beatriz Bracher e a atriz Alice Carvalho na mesa falaram sobre audiolivros na mesa “Palavra contada” (Matias Maxx)

Partindo da perspectiva europeia, a mesa “Palavra contada” trouxe a experiência da atriz Alice Carvalho ao narrar o audiolivro Coração apertado, de Marie NDiaye, autora francesa de ascendência senegalesa, que tem traços autobiográficos e trata do racismo sutil que a protagonista começa a perceber a sua volta. 

Provocadas pela mediadora, a jornalista Luciana Araujo, a atriz e a editora Beatriz Bracher comentaram sobre como o fato de Carvalho ser uma mulher negra trouxe uma carga maior de indignação ao romance. Ela disse acreditar que, se tivesse sido escolhida uma atriz branca, talvez não houvesse essa interpretação com vísceras e raiva. “Já uma atriz preta retinta ou indígena teria outra camada de interpretação diferente da minha. Imagina a Elisa Lucinda lendo esse livro, Zezé Motta, Larissa Luz, Luedji Luna”, disse Carvalho. 

Política e literatura

Na mesa “Agora, agora e mais agora”, o historiador e político português Rui Tavares voltou ao palco d’A Feira do Livro e envolveu a plateia com seu jeito informal de falar, tornando temas complexos mais compreensíveis. Ele criticou o que chamou de “disputa pelo pessimismo”. Segundo ele, essa equivalência pessimista é “assassina para a esquerda”.

O historiador Rui Tavares em conversa com Sofia Nestrovski (Filipe Redondo)

“Sempre entre intelectuais de esquerda tem um — em geral, é mais um ele do que ela — que fala: ‘estou muito pessimista com o euro, com o clima’, e isso se tornou sinônimo de ser sério. A esquerda diz que o futuro vai ser péssimo, então só falta dizer que precisam desistir”, disse.

“Na Europa, dizem que os filhos vão viver pior do que os pais. Acredito que temos que ser otimistas em relação a isso. Se acreditarmos que é possível regular a tecnologia de uma maneira que ela nos ajude, que viveremos com a família e brincaremos no campo, isso nos faz acreditar no futuro. O otimismo é uma obrigação política”, afirmou.

Maria Carvalhosa media debate com os estreantes Iara Biderman e Odorico Leal (Filipe Redondo)

Se Tavares olhou para o futuro, Iara Biderman e Odorico Leal analisaram como o presente e o passado recente impactaram seus livros de estreia na ficção. Na mesa “Tantras e canibais”, eles comentaram sobre como a realidade recente – e turbulenta – do país acabou se infiltrando em sua escrita. Com obras que transparecem certa inquietação, os autores falaram sobre como lidaram com os “fatos desesperadores” que batiam à porta a todo momento enquanto escreviam, como a morte da vereadora Marielle Franco, que aparece em um dos contos de Biderman. Esse conto em que aparece a Marielle foi escrito muito a quente. Eu uso muito o DSM, o manual de diagnósticos de transtornos mentais, tentando enquadrar os sintomas do que a gente estava vivendo. Mas na realidade a doença é o país”, disse Biderman. 

Leal também vê uma conexão muito direta entre a realidade do país e dois de seus contos, que têm como personagens os “getulinhos”, um grupo político que o autor define como “ao mesmo tempo uma velha esquerda, meio Ariano Suassuna, que tem um elemento sebastianista, mas também é um pouco conservadora”. “Esses dois contos dialogam muito com a situação política, que se agravou nos últimos anos, com o tecido social que vai se desfazendo. Parte disso foi escrito ainda durante a pandemia, em que pessoas estavam morrendo e a gente via esses embates de ideologias.”

Dose dupla

Quem marcou presença em duas mesas d’A Feira do Livro neste domingo foi o tradutor, romancista e ensaísta curitibano Caetano W. Galindo. No início da tarde, ele participou da “Trilha de Letras: Caetano W. Galindo”, gravação do programa literário apresentado por Eliana Alves Cruz na TV Brasil onde falou sobre se escritores, roteiristas, compositores e artistas em geral devem se preocupar com a capacidade criadora da inteligência artificial, entre outros temas.

Galindo afirmou que a arte que segue fórmulas é a única que corre o risco de ser dominada pelos algoritmos. “Elon Musk e Mark Zuckerberg não estão pensando em uma máquina de escrever sonetos”, brincou o autor do romance Lia: cem vistas do monte Fuji (Companhia das Letras).

Caetano W. Galindo fala sobre seu romance de estreia com Eliane Alves Cruz (Matias Maxx)

Já no fim da tarde, ele voltou ao palco do Auditório Armando Nogueira ao lado do também linguista, tradutor e ficcionista Marcos Bagno, na mesa “Palavras, palavras, palavras”. Os dois falaram da paixão que sentem por elas desde a juventude, das múltiplas formas como isso se manifesta em suas vidas — no estudo da linguística, na tradução e na escrita de ficção — e sobre as origens, o presente e o futuro do português brasileiro.

Tanto Bagno quanto Galindo lembraram da enorme influência africana na formatação do nosso idioma e destacaram que o debate sobre formas supostamente certas ou erradas de falar o português, inclusive a adoção da linguagem neutra, é reflexo da exclusão social e do racismo.

Exatas vs. humanas

Em meio a tantas conversas sobre diferentes formas e aspectos da escrita, o encontro que abriu o dia poderia parecer um estranho no ninho, mas foi justamente essa impressão que o matemático Marcelo Viana buscou desfazer na mesa “Matemática para quem é de humanas”, mediada pelo jornalista Bernardo Esteves.

O matemático Marcelo Viana e o jornalista Bernardo Esteves no Palco Praça (Filipe Redondo)

Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, Viana lançou seu Histórias da matemática: da contagem nos dedos à inteligência artificial n’A Feira e defendeu que não deveria existir uma separação entre as ciências humanas e as exatas. “Acho um erro acreditar que, porque eu sou de exatas, não preciso entender Picasso; ou que, porque sou de humanas, a Segunda Lei da Termodinâmica não me diz respeito. Isso tolhe e empobrece aquilo que a gente pode fazer e aquilo que a gente é como ser humano.”

Viana também falou sobre o desafio de comunicar a matemática ao público mais amplo e de inspirar jovens a se interessarem por um campo normalmente visto como árido, que é o objetivo de uma das iniciativas do IMPA, a Olimpíada Brasileira de Matemática.

A Feira do Livro acontece até o próximo domingo (7), na praça Charles Miller, no bairro do Pacaembu.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.