A Feira do Livro,

Aline Motta e Felipe Charbel apostam em formas experimentais para reunir fragmentos da memória

Escritores comentam falta de dissenso e receio das editoras em investir em obras não convencionais

11jun2023 | Edição #70

Dois autores que trabalham com a memória e suas lacunas – misturando escrita, artes visuais, documentos e fotos – se encontraram na mesa com curadoria e mediação de Paulo Roberto Pires, colunista da Quatro Cinco Um, para falar de seus livros: A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta, e Saia da frente de meu sol, de Felipe Charbel.

Além do mergulho em memórias familiares, os dois livros conversam entre si por inovarem na forma, dando, segundo Pires, um sentido interessante ao termo experimental. “Há pouco dissenso na cultura”, disse Motta, que gostaria que as editoras apostassem mais em obras não convencionais para dar espaço a mais vozes, mais alteridade.


O escritor Felipe Charbel [Sean Vadaru/Divulgação]

O receio de correr riscos pode ser o motivo dessa pouca aposta, “talvez por um entendimento, ao meu ver equivocado, de que existe um gosto comum”, segundo Charbel. Mas ele também tem notado a circulação de livros mais experimentais, uma prova de que, em alguma medida, as editoras também apostam nesse campo. “Se não, não estaríamos aqui”, disse Charbel.

Além de tratarem questões íntimas da vida dos autores, os dois livros têm força política: uma impactante discussão sobre o racismo, em A água é uma máquina do tempo, e sobre moralismo e homofobia, em Saia da frente de meu sol.

Motta, que é artista visual, se interessa pelo “campo expandido” da criação, unido às experimentações gráficas e à poesia no livro, no qual trata de assuntos dolorosos – a morte da mãe – e que também se abre ao acervo intergeracional de famílias negras.


A escritora Aline Motta [Sean Vadaru/Divulgação]

“Estamos nadando ou sendo arrastadas pelas sombras?” é um trecho de A água é uma máquina do tempo que Motta leu para a plateia. Ela tem feito leituras do livro acompanhadas de projeções de video mapping. Além disso, criou, a partir da obra, um documentário de trinta minutos que será exibido na Bienal de Arte de São Paulo, que começa em setembro.

Charbel partiu de uma lembrança da infância de um tio sobre o qual pouco se falava por não corresponder às expectativas de normalidade. O livro tomou forma após o escritor encontrar uma caixa de fotos do tio quando jovem e afinal entender por que a história desse parente, e a sua orientação sexual, era contada aos sussurros. “É um livro escrito a partir da memória, de fotos e de lacunas”, diz Charbel, que é historiador.

Os autores falaram da forma com que lidam com a própria história e com a história dos outros em seus livros. Motta disse ter evitado a autocomplacência e escrito de forma crua e sem adjetivos. “Uma técnica literária em que você coloca os ossos e deixa a realidade emergir. Para evitar o lugar-comum, fugir da armadilha do espelhamento narcísico”, disse Motta.

Já Charbel procurou uma maneira de escrever que fosse ao mesmo tempo biográfica e autobiográfica. “Um pouco para fugir do perigo narcísico, mas também para me encontrar. As transformações do narrador estão no livro”, disse ele.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.