A Feira do Livro, Literatura,

A ideia de pureza é empobrecedora, diz Nara Vidal

Escritora mineira fala sobre eugenia e como a ficção pode preencher as lacunas da História

30jun2024 - 15h55 • 01jul2024 - 12h30
(Matias Maxx)

“A ideia de pureza não é necessariamente boa, ela exclui, além de ser empobrecedora. É consequência de uma narrativa que costumamos ouvir na História”, afirmou a escritora mineira Nara Vidal. “A pureza não existe”, arrematou a escritora carioca Eliana Alves Cruz, que mediou a mesa “Trilha das Letras: Nara Vidal”, que contou com apoio da TV Brasil, nesta manhã de domingo (30) n’A Feira do Livro

“A História tem muita responsabilidade. Nos informamos sobre o nosso país com essa narrativa completamente louca, que é a da eugenia da época do governo de Getúlio Vargas”, continuou a autora, que acaba de lançar Puro pela editora Todavia. O romance é ambientado em uma pequena cidade fictícia de Minas Gerais, chamada de Santa Graça, nos anos 1930, que procura se tornar um exemplo de eugenia no Brasil.

Na conversa, que foi parcialmente gravada para o programa Trilha das Letras, apresentado por Alves Cruz no canal TV Brasil, Vidal destacou seu espanto ao pesquisar sobre o tema, uma vez que as escolas não ensinam que a eugenia foi uma prática do primeiro governo varguista (1930-1945). Conforme o Artigo 138 da Constituição de 1934, “a União, os Estados e os Municípios, nos termos das respectivas leis caberia: a) estimular a educação eugênica”.

Alves Cruz comentou que o embranquecimento da população brasileira foi um projeto de política pública a partir da imigração de europeus para o país e até mesmo a mestiçagem. Segundo os cálculos dos eugenistas daquele período, se a miscigenação continuasse, em 2011 a população negra teria sido erradicada no Brasil. “Bom, continuamos aqui, resistindo”, comentou a autora de Água de barrela.

Vidal ainda contou como o documentário Menino 23: infâncias perdidas no Brasil (2016), de Belisario Franca, foi importante para seu mergulho no assunto. O filme, que está disponível no streaming pela plataforma Amazon Prime, acompanha a investigação do historiador Sidney Aguilar Filho, que descobriu tijolos marcados com suásticas nazistas numa fazenda do interior de São Paulo. A partir daí, desvela-se a história de cinquenta meninos negros que, durante os anos 1930, foram levados à força de um orfanato no Rio de Janeiro para lá, onde foram explorados pelos proprietários simpatizantes do nazismo.

A literatura é um risco

Ao ser perguntada sobre o risco de seu romance ser tachado de “panfletário”, por se debruçar sobre um tema claramente político, Vidal respondeu que tinha consciência do quanto era arriscado publicar Puro. “Fazer esse livro é arriscado. Ao mesmo tempo, tenho essa liberdade da ficção da qual todos os artistas precisam”, disse. Tanto Vidal, uma escritora branca, quanto Alves Cruz, autora negra, comentaram que sabem que a recepção de livros considerados mais “políticos” é diferente dependendo  da raça do escritor. “Tenho otimismo de que isso vai acabar. Ainda estamos em construção, muitos espaços estão sendo preenchidos. E se a literatura não tiver esse espaço de liberdade ela não tem por que existir”, refletiu a autora mineira.

(Filipe Redondo)

Contudo, na visão dela, quem realmente se expõe quando se trata de Puro é menos a escritora que o leitor. “O modo como o leitor lê esse livro diz muito sobre ele mesmo. Se alguns discursos de alguns personagens forem lidos por alguém que representa uma extrema direita, talvez essa pessoa ache que esse livro é para ela. Não vai perceber a ironia, a hipocrisia contidas no livro. Apesar de eu, como escritora, fazer escolhas temáticas e estruturais, é o leitor quem nos diz sobre o que é o livro, a partir das crenças e pensamentos de cada um”, explica.

“Além de escritores, somos cidadãos, e somos atravessados pelo nosso tempo. É uma escolha escrever sobre temas políticos e complexos”, complementa. “Agora, se o livro trata do tema com didatismo, acaba empobrecendo a literatura. O papel da literatura é de incomodar. Se a literatura nos responde coisas, ela fica empobrecida, tem sempre que nos deixar perguntas.”

(Filipe Redondo)

Como trata de temas pesados e complexos no livro, Vidal deixou claro que não se deixa afetar pelas falas racistas de seus personagens na hora da escrita – algo diferente acontece quando ela ouve alguém recitar em voz alta trechos da obra. “Esse é um outro lugar. Fico até pensando: ‘Eu escrevi isso mesmo?’”, revela.

Agora que começa a ter retorno dos leitores, concluiu que as pessoas escolhem ler um livro com passagens tão duras, sombrias e indigestas pela vontade de descobrir elementos ainda pouco discutidos da história brasileira. Pois, ainda que Vidal reforce em vários momentos que não é um livro histórico, é um livro que fala sobre a história brasileira, disse Alves Cruz.

Ao ser questionada se o projeto de eugenia no Brasil deu errado ou foi apenas adiado, Vidal respondeu que pensa em duas questões: o ciclo da História e o fato de a educação nas escolas ter sido racista por muito tempo. “Os ciclos históricos vêm e vão, são extintos ou simplesmente adormecem. Isso fica evidente quando falamos desse projeto. A segunda questão é que precisamos reconhecer, no Brasil, que tivemos uma educação racista, o que forma cidadãos racistas. Precisamos reconhecer primeiro esse fato para podermos avançar. Se não o compreendemos, não conseguimos ir para frente. Ações antirracistas são essenciais para combatermos o racismo”, defendeu.

Depois de Sorte e Puro, Vidal pretende dar continuidade a temáticas mais político-históricas em um romance futuro — que ainda não tem um assunto fechado, mas pensa bastante sobre a continuidade do genocídio da população negra nas comunidades do Rio de Janeiro e outras localidades periféricas brasileiras.

Shakespeare e Monteiro Lobato

Vidal, grande admiradora da obra de William Shakespeare e autora de Shakespearianas (Relicário, 2023), uma reunião de ensaios sobre algumas das personagens femininas do dramaturgo britânico, não percebeu de modo consciente, mas a obra do Bardo está em Puro, em especial Macbeth.

A chamada “peça maldita” de Shakespeare aparece, principalmente, nas personagens das três velhas que moram em um casarão e que emulam as Três Bruxas de Macbeth. Outra cena importante da peça é a de Lady Macbeth lavando as mãos, que aparece de outra forma nos momentos em que a personagem negra Íris lava incessantemente as mãos para se sentir menos “suja” por causa da sua cor.

A própria estrutura do livro segue a forma da dramaturgia, com rubricas de teatro. A autora diz que isso aconteceu de modo acidental. No começo, ela queria escrever um romance mais linear, mas percebeu que esse formato não estava funcionando. Como tinha muitos personagens, para não se perder, ela passou a fazer anotações sobre o que cada um falava. “Ao ler aquela anotação, eu me dei conta de que era essa a narração do livro”, contou. “A partir daí, o livro se abriu e eu comecei a escrevê-lo. Gosto de propostas estéticas diferentes, dessa variação dentro da literatura.”No que tange Monteiro Lobato, que publicou artigos no Boletim da Eugenia, e já foi tema de muitas polêmicas por causa de passagens racistas de seus livros, inclusive os infantis, em especial na forma da Tia Anastácia, Vidal acredita que seria mais interessante fazer uma leitura guiada do livro acompanhada pelo professor do que simplesmente excluí-lo. Já para Alves Cruz, como há vários outros autores trabalhando com literatura para as infâncias, Lobato poderia ser estudado em disciplinas ligadas aos estudos literários, e não mais fazer parte do currículo escolar. “Está na hora da fila andar”, conclui.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).