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A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

Lina Meruane, Jorge Carrión e Rodrigo Casarin n'A Feira do Livro (Flávio Florido)

A FEIRA DO LIVRO 2025,

Literatura latino-americana, autoritarismo e relatos de memórias são discutidos no sexto dia d’A Feira do Livro

No primeiro dia do feriado, festival literário paulistano reuniu nomes como Lina Meruane, Jorge Carrión, Antonio Prata, Veronica Stigger e Paulo Henriques Britto

20jun2025

No primeiro dia do feriado, A Feira do Livro recebeu discussões sobre literatura latino-americana, autoritarismo e relatos de memórias, e reuniu em mesas autores como a chilena Lina Meruane, o espanhol Jorge Carrión, o canadense Paris Marx, o paulistano Antonio Prata, a gaúcha Veronica Stigger e o carioca Paulo Henriques Britto.

A quinta com cara de sábado foi animada na praça, que teve mais de trinta atividades gratuitas, animando leitores de todos os tipos, principalmente os de literatura. Com a plateia lotada, uma conversa entre Meruane e Carrión sobre o que os levou a afinar suas antenas para escrever sobre o mundo ao redor, em vez de se fecharem na sua própria escrita como alguns autores fazem, encerrou o dia de sol. Para Meruane, autora de obras como Tornar-se Palestina (Relicário, 2019) e Sistema nervoso (Todavia, 2020), esse desejo passa por uma escrita voltada ao corpo; para Carrión, que publicou, entre outros, a distopia Membrana (Relicário, 2024), o que o deixa obcecado é entender como informação e conhecimento circulam. 

Na mesa Membranas e nervos, mediada por Rodrigo Casarin, os dois ainda discutiram os conflitos no Oriente Médio e a ascensão do discurso contra imigrantes nos Estados Unidos e contra turistas na Europa. “A radicalidade dessas fronteiras nos recorda o privilégio que temos como observadores do mundo, mas também a responsabilidade de contar tudo que temos a possibilidade de ver”, disse a chilena, que tem origem palestina.

Ainda em torno da literatura, a escritora gaúcha Veronica Stigger e o autor brasiliense Vinícius Portella discutiram como uma das maiores erupções vulcânicas da história ou uma montanha de lixo do tamanho da França flutuando no Oceano Pacífico se tornaram temas para sua ficção. Os dois falaram como suas pesquisas acadêmicas se misturam a seus processos criativos na mesa Do vulcão ao plástico, mediada por Maria Carvalhosa. 

Paulo Henriques Britto e Glauco Mattoso n’A Feira do Livro (Flávio Florido)

Já a poesia foi tema da mesa Alexandrinos heroicos, que reuniu os poetas Glauco Mattoso e Paulo Henriques Britto e teve mediação de Fernando Luna. Eles conversaram sobre como o soneto ganhou um papel central em suas obras pelas beiradas. Mattoso explicou que métrica e rima foram fundamentais para seu trabalho depois de perder a visão, em 1995. Já para Britto, o interesse veio da percepção de que, para fazer o verso livre, antes teria que dominar a forma clássica. Os dois trataram ainda do papel do humor, em sua faceta mais obscena e escatológica, em sua produção. “Hoje eu me considero um pós-maldito”, encerrou Mattoso.

Britto, que é imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), também participou de outra conversa, dessa vez no Espaço Rebentos, com o poeta Fabrício Corsaletti e o ilustrador e quadrinista Caco Galhardo. O bate-papo, mediado por Sofia Mariutti, escritora e editora da Tinta-da-China Brasil, teve como foco os seus livros mais recentes e os desafios de mergulhar no universo literário das infâncias. 

O palco voltado especialmente para a programação infantil abriu os encontros desta quinta (19) com outro autor mais conhecido por escrever para o público adulto: o escritor e cronista Antonio Prata. Na mesa Criança bem-humorada, mediada pela jornalista Marilia Neustein, o autor divertiu uma plateia lotada de crianças e adultos lendo dois livros de sua autoria: Jacaré, não! e Esconde-esconde, ambos publicados pela editora Ubu. Durante a leitura, os pequenos e os grandes leitores completavam frases lidas pelo escritor paulistano e caíram na risada com os trocadilhos presentes nos livros. 

Antonio Prata e Marilia Neustein n’A Feira do Livro (Camila Almeida)

Os trechos das obras foram intercalados por um bate-papo descontraído com Neustein e o público, no qual Prata revelou a fonte das melhores sacadas dos seus livros: “Meus filhos que me dão as ideias. Vejo o que eles gostam e escrevo como se fosse para eles”.

O Espaço Rebentos ainda recebeu os escritores Maickson Serrão e Ciça Pinto, e finalizou com uma conversa entre o escritor Estevão Azevedo e o ilustrador Vitor Bellicanta.

Memórias

Relatos de memórias foram temas de duas mesas d’A Feira: O primeiro leitor, com o editor paulista Luiz Schwarcz, e O dono da palavra, com Yamaluí Kuikuro Mehinaku. O editor e fundador da Companhia das Letras Luiz Schwarcz reviu suas mais de quatro décadas de trabalho com livros em uma conversa com o jornalista, editor e escritor Paulo Roberto Pires nesta quinta (19).

Na ocasião, Schwarcz admitiu que penou ao deixar o posto de editor para assumir o de escritor em seu livro de memórias recém-lançado, O primeiro leitor. “Faço exatamente tudo que um autor inseguro faz”, disse. Também falou de sua trajetória antes da Companhia das Letras e comentou as maneiras como busca adaptar a empreitada aos novos ventos sem abandonar sua premissa básica: trazer ao público livros de qualidade, mas com conteúdo acessível.

Mais tarde, o Auditório Armando Nogueira foi preenchido com os ritmos do Xingu na voz de Yamaluí Kuikuro Mehinaku, que entoou um canto de proteção e boa saúde no início e no fim da conversa com a escritora Rita Carelli. Yamaluí falou sobre Dono das palavras: a história do meu avô (Todavia), biografia de seu avô Nahu Kuikuro, um dos primeiros indígenas do Alto Xingu a aprender português. “Esperei muito o branco contar a história dele, mas ninguém contou”, disse o autor.

Yamaluí Kuikuro Mehinaku n’A Feira do Livro (Nilton Fukuda)

“Os índios precisam que os brancos ouçam e respeitem a nossa história, respeitem a nossa história”, afirmou Yamaluí, que fez ainda um alerta sobre os efeitos das mudanças climáticas que já estão alterando a vida no Xingu. “O mato está acabando, o rio está secando. A situação no momento está muito preocupante. Uma equipe da Fiocruz que fez pesquisa no rio Culuene descobriu que alguns peixes estão contaminados. As fazendas estão se aproximando do nosso território, o veneno que eles jogam na soja a chuva leva para o rio. Outra coisa que preocupa é a venda de madeira ilegal.”

Yamaluí, que se apresenta como pesquisador, historiador e cantor, contou que escreveu o livro pensando nos jovens indígenas “que estão caminhando na universidade, para eles conhecerem a história do meu avô e a história do Xingu. Para eles respeitarem nosso território e lutarmos todos juntos como eles [geração do avô] lutaram. Isso é o que eu espero dos mais jovens daqui para a frente.”

Autoritarismo

A quinta-feira teve ainda várias mesas que trouxeram a política para o centro do debate — tanto sobre o crescente autoritarismo no Brasil quanto o passado ditatorial do país e o silenciamento em torno de grandes figuras históricas que combateram a repressão.

As pesquisadoras do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) Mariana Celano de Souza Amaral, Luciana Silva Reis e Ana Silva Rosa discutiram como três dos principais eixos representativos do novo conservadorismo brasileiro, os grupos “da bala, do boi e da Bíblia”, construíram nos últimos anos uma aliança que tem em sua base uma crescente homogeneidade no discurso. 

Coautoras de A lei da bala, do boi e da Bíblia: cultura democrática em crise na disputa por direitos (Tinta-da-China Brasil, 2024), Amaral, Reis e Rosa apontaram que esse ativismo coordenado vem se sobrepondo a divergências internas no campo da direita extremista, que defende pautas restritivas de direitos.  

Em uma conversa que girou em torno dos silêncios impostos pela violência da ditadura civil-militar no Brasil e como a literatura tenta dar conta desses temas espinhosos, a socióloga e escritora Ana Cristina Braga Martes trouxe o assunto para um contexto muito contemporâneo. 

“Uma coisa que fiquei pensando é como a gente pode deixar a bandeira da liberdade de expressão na mão de pessoas que não têm nenhum compromisso com ela. Essa bandeira é nossa. Como podemos deixar essa bandeira na mão de pessoas de direita?”, questionou a autora do romance Sobre o que não falamos (Editora 34, 2023), que deu nome à mesa compartilhada com Ana Kiffer e Cadão Volpato, mediada pelo jornalista Eugênio Bucci. Os três escritores publicaram recentemente livros que retratam a ditadura e debatem as representações literárias do autoritarismo e da resistência ao regime.

Uma figura pouco lembrada, mas central para a resistência à ditadura civil-militar brasileira, liga a dramaturga Silvia Gomez e o jornalista Samarone Lima, convidados da mesa que abriu A Feira do Livro nesta quinta (19): a advogada Mércia Albuquerque, que defendeu centenas de perseguidos do regime.

Samarone Lima, Silvia Gomez e Iara Biderman n’A Feira do Livro (Flávio Florido)

Ela inspirou a peça escrita por Gomez, Lady Tempestade, atualmente em cartaz no Sesc Consolação, na capital paulista. Protagonizada por Andréa Beltrão e dirigida por Yara de Novaes, ela teve o seu texto integral publicado pela editora Cobogó. O título da peça foi retirado de um trecho do diário da advogada, que serviu de base para o texto dramatúrgico, publicado em 2023 pela editora Potiguariana. Nesse texto, Albuquerque compara sua mãe à “bonança”, em contraste com a “tempestade”, que era como ela se via.

Durante a conversa, mediada pela editora da Quatro Cinco Um Iara Biderman, Gomez afirmou que, quando travou contato com a história de Albuquerque pela primeira vez, o que sentiu foi vergonha. “À medida que eu lia sobre ela, mais tinha noção da importância de fazê-la viva de novo”, disse.

Matemática e tecnologia

O matemático Marcelo Viana colocou a disciplina ao rés do chão e divertiu o público na mesa Da contagem nos dedos à inteligência artificial, que aconteceu no Auditório Armando Nogueira com mediação do jornalista Eduardo Sombini. Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), com sede no Rio de Janeiro, Viana afirmou não acreditar que a matemática seja para gênios. “Fazer o conhecimento matemático chegar a toda a sociedade é questão de justiça”, disse o autor do best-seller Histórias da matemática: da contagem nos dedos à inteligência artificial, lançado em 2024 pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um.

Viana narrou anedotas saborosas para mostrar que a matemática pode estar no cotidiano de forma bastante direta e defendeu que o Estado precisa assumir sua responsabilidade na educação. “Assim como aceitamos hoje em dia, em sociedades civilizadas, que o Estado tem a obrigação de alfabetizar seus cidadãos, eu coloco no mesmo nível a alfabetização matemática, para que as pessoas possam utilizar esse conhecimento no dia a dia. Isso está sendo privado à nossa sociedade.”

Marcelo Viana autografando n’A Feira do Livro (Nilton Fukuda)

A tecnologia apareceu em duas mesas: Estrada para lugar nenhum e Adolescência. Paris Marx é autor de Estrada para lugar nenhum (Ubu), uma crítica à visão das empresas de tecnologia sobre as soluções para a mobilidade urbana. Ele conversou com Bianca Tavolari, colunista da Quatro Cinco Um, sobre o futuro dos transportes urbanos que as empresas de tecnologia querem oferecer, os mitos da inteligência artificial e como as soluções reais aos problemas urbanos e ecológicos devem ser buscadas nos movimentos coletivos e nas políticas públicas. “O Vale do Silício é um lugar de homens brancos milionários que fingem ajudar a todos, mas só favorecem a si mesmos”, disse o jornalista canadense. 

Já a outra mesa debateu como as tecnologias e as redes sociais estão afetando a população mais jovem a partir do sucesso da série Adolescência (Netflix, 2025). Com mediação da jornalista Luka Franca, a professora Lola Aronovich, a advogada e presidente do Instituto Liberta Luciana Temer e a escritora Juliana Borges, colunista da Quatro Cinco Um, debateram os riscos que o ambiente digital oferece para crianças e adolescentes e o que pode ser feito para proteger meninos e meninas. 

Na série inglesa, um garoto de treze anos é acusado de assassinar uma colega de classe, e a investigação revela seu envolvimento com comunidades digitais misóginas. “Depois da série, comecei a achar que meu trabalho era muito ingênuo. Não tem família boa e escola boa que deem conta. A gente tem que falar de regulação, de classificação etária, de retomar o controle dessa historia”, afirmou Temer.

Além disso, A Feira do Livro também realizou várias oficinas e outras treze mesas movimentaram os três Tablados Literários nesta quinta (19), em um dia marcado por conversas sobre formação de leitores, preconceito, acessibilidade, arquitetura, para citar alguns exemplos. Da literatura feita com inteligência artificial à poesia de Cazuza, passando por literatura infantojuvenil, narrativas indígenas e disputas em torno do prazer e do corpo, a programação trouxe debates importantes para o Tablado Literário Mário de Andrade, o Tablado Literário das Bancadas e o Espaço Motiva Tablado Literário.

A quarta edição d’A Feira do Livro 2025 acontece de 14 a 22 de junho, na praça Charles Miller, no Pacaembu. Realizado pela Associação Quatro Cinco Um, pela Maré Produções e pelo Ministério da Cultura, o festival literário paulistano, a céu aberto e gratuito, reúne mais de duzentos autores e autoras do Brasil e do exterior em uma programação com mais de 250 atividades, entre debates, oficinas, contações de histórias e encontros literários. Confira a programação e outras notícias do festival.

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.