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Primeira mulher negra a receber o Booker Prize, a britânica Bernardine Evaristo fala sobre sua ‘fusion fiction’ e o interesse pela diáspora africana

01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91

Nada passou despercebido ao olhar de Bernardine Evaristo em suas andanças por São Paulo e Rio de Janeiro no final do ano passado. Em sua segunda visita ao país — desta vez, para participar da Flup (Festa Literária das Periferias) —, a autora britânica elogiou os grafites gigantes que cobrem os prédios paulistanos; comemorou o encontro com sua “parenta” e “rainha da literatura brasileira” Conceição Evaristo; comprou roupas coloridas e registrou o passo a passo de suas caminhadas, de botecos a becos e rodas de samba, tudo registrado em seu perfil no Instagram.

Primeira autora negra a ganhar o Booker Prize, em 2019 — e também a primeira a ocupar a presidência da Royal Society of Literature —, Bernardine tinha uma carreira consolidada quando se tornou um “sucesso instantâneo” por Garota, mulher, outras, que dividiu o famoso prêmio literário com Os testamentos (Rocco, 2019), da canadense Margaret Atwood. 

Em Garota, mulher, outras, Bernardine narra doze histórias, num formato que primeiro se assemelha a um livro de contos, com cada capítulo dedicado a uma personagem, até que surpreendentes ligações entre elas vão sendo tecidas, revelando a complexidade de mulheres negras na Londres contemporânea.

As narrativas de Evaristo se desenrolam sob trânsitos entre continentes, cidades e classes sociais

Essa habilidade em criar personagens, cruzar suas tramas e inventar uma linguagem com sintaxe própria a cada uma delas foi desenvolvida por Bernardine nos quarenta e poucos anos de atuação como dramaturga, atriz, diretora, escritora e professora no que ela chama de “cena artística alternativa contracultural de mulheres pretas”. Um cenário fomentado por ela e outras multiartistas nos anos 80, para dar conta de uma produção então desprezada pela indústria.

Os pormenores dessas e de outras aventuras são detalhados em Manifesto: sobre nunca desistir, livro de memórias publicado em 2021 para, segundo ela, dar conta da enormidade de pedidos de entrevistas que passou a receber após o Booker Prize. Na obra, Bernardine analisa sua trajetória e seu processo criativo sob a perspectiva de uma mulher birracial, filha de uma inglesa branca e um nigeriano radicado no Reino Unido, cuja união causou decepção à família materna. 

Sob esses mesmos trânsitos entre continentes — supostamente seu avô paterno migrou do Brasil para a Nigéria logo após a abolição da escravidão, no século 19 —, cidades e classes sociais se desenrolam nas narrativas de Bernardine, cujo interesse é contar histórias sobre o passado, o presente e o futuro da diáspora africana. 

Nesse contexto, cabem personagens tão diversos quanto o adorável Barry, protagonista de Sr. Loverman, lançado no Brasil em 2024. No livro que ela afirma ter amado escrever, Barrington (o Barry) é um migrante caribenho que mantém um casamento de meio século com uma mulher, com quem tem duas filhas adultas, ao mesmo tempo que cultiva um romance secreto com Morris, um amigo de infância. 

Primeira publicação queer de sua bibliografia, Sr. Loverman tornou Bernardine ainda mais popular ao ser adaptado para uma série de televisão bem-sucedida na Inglaterra.

Londres

Londres é onde se passa a maioria das narrativas de Bernardine. A mesma Londres aparece como uma cidade “africanizada” em Blonde Roots (Raízes louras, publicado pela Penguin UK em 2009), narrativa em que os papéis se invertem, com europeus sendo escravizados por africanos, cujo lançamento no Brasil está previsto para o segundo semestre de 2025.

Durante sua passagem por São Paulo, em novembro passado, Bernardine lotou o auditório do Teatro Cultura Artística, em conversa com a escritora e sua ex-aluna Isabela Noronha, promovida pela Companhia das Letras e pela livraria Megafauna. Antes, recebeu a Quatro Cinco Um para um papo rápido, mas revelador.

Como foi revisitar sua carreira para escrever o livro de memórias Manifesto: sobre nunca desistir?
Após tantos romances, esse foi o livro mais fácil de escrever — mesmo que nunca tenha escrito uma não-ficção antes —, o que me leva a crer que estou contando a verdade da minha história. Foi diferente de fazer um romance, em que é preciso considerar muitas coisas para torná-lo autêntico e interessante para o leitor. Nas memórias, falo o que sei sobre minha família e sobre mim mesma, colocando tudo em perspectiva. 

Algumas pessoas questionam se foi um processo doloroso. Pelo contrário, foi prazeroso. Propus esse livro ao meu editor porque muitas pessoas passaram a se interessar por mim após ganhar o [prêmio] Booker. Achei que fazia sentido usar minhas próprias palavras para contar essa história. Como autora, desde os anos 80 faço turnês falando sobre minha vida, mas isso ganhou outra escala em 2019 [ano da premiação]. 

Quais mudanças importantes descobriu ao compor suas memórias?
Estou mais velha e sábia. Quando tinha vinte anos, trabalhava no teatro e tentava comunicar ao público, em conversas depois dos espetáculos, como me sentia — mas naquela idade ainda estava me descobrindo e buscando quem realmente era. Aos sessenta anos, já vivi bastante, tenho uma compreensão mais profunda sobre mim mesma. No entanto, estou sempre buscando maneiras diferentes de falar sobre minha trajetória, porque me aborreço de mencionar as mesmas coisas todas as vezes que dou uma entrevista. É muito chato falar de si mesma quando você não é obcecada por isso — e eu tento não ser. 

Fez descobertas sobre sua família?
Sim. Quando comecei a escrever sobre meu passado, compreendi em um nível mais profundo o que herdei não só de meus pais — com quem eu cresci —, mas de meus antepassados. Minha história familiar é muito diversa. Envolve migrações entre países e continentes; do campo para a cidade; e de uma classe social à outra. Mesmo que soubesse ser resultado dessas pessoas que vieram antes, não tinha refletido sobre isso. Ao estruturar o livro a partir de relacionamentos, situações que vivi e assim por diante, tive de pensar minha trajetória e criatividade sob esses prismas. Analisar os relacionamentos e como eles moldaram ou até mesmo prejudicaram minha criatividade foi um processo de descoberta e uma experiência de aprendizado. 

Em Manifesto você menciona que seu avô Gregorio Bankole Evaristo era brasileiro. O que sabe sobre ele?
Quase nada, porque ele morreu antes de o meu pai nascer. Além disso, conheço pouco esse lado da família. O que descobri é que, em um determinado momento, ele voltou para a África. Fiz uma pesquisa sobre os africanos emancipados que retornaram ao continente no final do século 19, e meu avô estava entre as pessoas que migraram. Não sei se ele foi escravizado. Pode ser que sim. Fato é que, quando essas pessoas recuperaram sua liberdade [após a abolição, em 1888], não encontraram trabalho. Então, fretaram barco, navegaram de volta e se estabeleceram na costa oeste [da África]. Meu avô tinha uma casa em Lagos [maior cidade da Nigéria] no “quarteirão brasileiro”, bairro repleto de gente que tinha retornado. Ele trabalhava como funcionário da alfândega. Na fotografia que está no livro, Gregorio parece uma pessoa de posses. Alguém com um
pouco de dinheiro e de status naquela sociedade. Mas posso apenas imaginar o que ele era.

Seus livros apresentam um ponto de vista contemporâneo da diáspora africana. O que te interessa a propósito dessas vivências?
A experiência da diáspora africana é muito vasta e está espalhada pelo mundo todo. Ela é uma fonte fértil de pesquisa para a escrita. Nos meus livros, tratei de aspectos do passado e da sociedade contemporânea, mas ainda não escrevi sobre como pode ser o futuro da diáspora africana — me entusiasma tratar desse tema a partir de uma perspectiva britânica, que é a que conheço e entendo.

‘É muito chato falar de si mesma quando você não é obcecada por isso; e tento não ser’

Mas há ainda muitas histórias que não foram contadas, pois não temos autores suficientes, em especial sob o ponto de vista feminino (mas também sob o masculino). A memória de nossas existências não será narrada se não for pelas pessoas pretas. Tudo ainda está por ser explorado. 

O que os dois romances publicados no Brasil representam em sua carreira, começando pelo mais recente, Sr. Loverman?
A maioria dos meus livros está muito distante de quem sou, mas Sr. Loverman me levou a um lugar diferente de tudo o que eu tinha feito antes. É meu primeiro livro queer — e é uma obra queer masculina, algo muito importante. Além disso, é também um livro caribenho, sobre migrantes de Antígua. Como autora, acredito que devo ser capaz de escrever sobre qualquer coisa e qualquer personagem, e acho que todos têm o mesmo direito, mas não significa que o farão da melhor maneira… Amei fazer Sr. Loverman. O protagonista [Barrington Walker, o Barry] era como um espírito que, através de mim, contava sua história. Até hoje, não sei de onde Barry surgiu, mas fiquei entusiasmada com sua voz, pois ele é alguém que guarda um grande segredo. Além disso, ele tem muitas camadas. Descrever uma história familiar dessa forma tornou o projeto estimulante e ambicioso. Sr. Loverman acaba de estrear como série de televisão, sabia?

Sim, mas infelizmente ainda não está disponível no Brasil. Você gostou do resultado?
Sim, ficou maravilhoso. É uma série de oito episódios, e eles foram fiéis ao romance, usando inclusive alguns diálogos do livro. Além disso, os atores são fenomenais. Foi tudo brilhante. Essa é a primeira vez que uma obra minha ganha uma adaptação, então estou feliz que tenham feito um grande trabalho. A série está indo bem no Reino Unido, em especial nas comunidades negras, porque Sr. Loverman não trata apenas de dois idosos gays, mas de relacionamentos familiares, entre mães, filhas, irmãs, netos. Enfim, esse tipo de coisa.

Você criou um personagem muito charmoso, porque Barry engana a mulher, Carmel, a vida inteira…
O capítulo sobre Carmel veio depois. Durante meu processo criativo, não pensei que ela precisasse de mais espaço, até meu editor ler o manuscrito e me dizer que devia trabalhar mais em Carmel, pois o livro não lhe fazia justiça — Barry a vê de uma maneira muito negativa. Carmel deu muitas camadas ao texto, ao descobrirmos como cinquenta anos de traição do marido afetaram sua vida. Ela não é uma vítima. Não gosto de vítimas. Carmel é alguém que aproveita ao máximo o que tem e, num determinado momento, sabemos que ela também se divertiu. Como escritora, gosto de me transformar em outras pessoas, especialmente numa narrativa em primeira pessoa, como é a de Barrington. Passei dois anos escrevendo-o de dentro para fora.

Como você costuma se relacionar com suas personagens?
Eles meio que se revelam para mim, como no processo de Sr. Loverman: começo o texto e, então, o personagem passa a escrever por si mesmo. É estranho. As pessoas não conseguem compreender que não o planejei. A única coisa que sabia sobre Barrington era que se tratava de um homem velho de origem caribenha. Então, ele mostrou ser gay, casado, pai, avô, entre outras coisas. É como uma alquimia que, de repente, acontece. Todas as pessoas que conheci são fonte de material, pois escrevo baseada em minha compreensão da humanidade. Além disso, as personagens precisam ser complicadas, convincentes, imperfeitas, e atravessarem uma jornada cheia de obstáculos ao longo do livro.

Nesse sentido, quão desafiador foi escrever Garota, mulher, outras, uma obra com tantas personagens?
No início, simplesmente fluiu. Não todas as personagens, mas fluiu. Escrever uma protagonista e depois a próxima era um prazer. Mas tentar fazer com que se unissem como num romance foi muito, muito difícil. Para dar sentido a isso, era preciso uma técnica quase matemática, para encaixar no roteiro os pontos de conexão entre as diferentes personagens — que aparecem na linha do tempo umas das outras —, método que eu não tenho. Os primeiros dois, três rascunhos ficaram confusos. Em especial porque não usei frases tradicionais. Precisei de alguns leitores para ver o que tinha feito. Por fim, tive de cortar, editar, esculpir e acrescentar até que ficasse completo. 

Foi difícil criar a voz de cada uma das personagens desse romance?
Quando tinha uns dezenove, vinte anos, comecei a fazer teatro, escrevendo e atuando em meus próprios espetáculos e desenvolvendo diferentes vozes para minhas personagens. A maioria dos meus livros é escrita em primeira pessoa, então estou acostumada a criar narradoras e narradores que não são eu mesma. Tenho uma ideia para a personagem, que surge já com sua voz. A única mulher que tive dificuldade de inventar [em Garota, mulher, outras] foi Grace, porque ela viveu no fim do século 19, início do 20, e era uma figura histórica. Mas, no geral, tenho facilidade.

‘Há ainda muitas histórias que não foram contadas, em especial sob o ponto de vista feminino’

Sou consciente de que cada intérprete tem sua própria maneira de falar, seu modo de se expressar, sua própria sintaxe e seu vocabulário. Quando escrevi sobre Bummi, que é nigeriana, acrescentei os ritmos e as cadências de uma pessoa nigeriana iorubá falando, pois cresci com um pai nigeriano. Então, imaginava como ela se expressaria na Grã-Bretanha, fazendo algumas pesquisas sobre certas palavras, e mandei esse capítulo a um amigo nigeriano para que ele me ajudasse a checar algumas frases e o uso do inglês pidgin [língua criada a partir da mistura de duas ou mais línguas que facilita a comunicação entre populações heterogêneas].  

Você sempre faz experimentações com a linguagem em seus livros?
Sim, acho que sempre fiz isso. Quando comecei a escrever poesia fazia o que chamo de “fusion fiction”, mas ainda era poesia. Acho que o modo como escrevi em Garota, mulher, outras é apenas uma progressão do que fiz no passado, numa escala maior, porque há doze personagens num grande livro, com 120 mil palavras. Poderiam ter sido doze contos, mas a forma permite que a história de cada personagem flua, tornando a obra coesa.

Ainda falando deste livro, impossível não fazer conexões de algumas personagens com sua própria biografia depois de ler Manifesto
Uma das personagens, a Amma, é vagamente inspirada no meu eu jovem; Penelope é baseada em uma pessoa que conheci; mas são todas ficção. Elas não são minhas extensões. Claro, você é a criadora, é Deus, dá vida a essas intérpretes, mas depois permite que elas sejam quem são. Elas são distintas de mim, mas vêm da minha imaginação, da minha experiência de vida e de como observo o mundo. Não acho que um homem branco poderia ter escrito Garota, mulher, outras, a menos que ele tenha vivido cercado de mulheres negras o tempo todo. Talvez eu tenha informações privilegiadas por ter conhecido e convivido com muitas mulheres negras. 

Neste livro, Londres é uma personagem que pulsa como as outras. Qual sua relação com a cidade? 
Londres é minha musa, mas também a modifico. Mesmo em Garota, mulher, outras, um livro mais realista, em que a cidade tem papel central, levo as personagens para outros lugares, fora da metrópole. O romance Blonde Roots [escrito em 2008], por exemplo, é sobre uma garota vivendo num mundo onde pessoas africanas escravizam europeus e se passa numa versão africanizada de Londres. Já em The Emperor’s Babe [O bebê do imperador, 2001], falo de uma garota negra que cresceu na Londres romana de 2 mil anos atrás, de modo que vivenciamos a cidade romana através dos olhos dela. 

Voltando ao seu convívio com as mulheres, você fez parte de uma cena cultural protagonizada por criadoras negras em Londres. Como esse cenário se transformou?
Nos anos 80, fazia parte de uma cena artística alternativa contracultural
de mulheres pretas criando em diferentes formatos. Ninguém tinha interesse por nós, por isso nos encontramos e formamos uma ampla comunidade para nos apoiarmos mutuamente. Essa decisão foi fundamental para meu desenvolvimento porque, quando você cresce numa cultura onde ninguém se interessa pelo que você está fazendo ou nas histórias que quer contar, você se volta às suas iguais e se valida, uma a outra. Conhecia Audre Lorde mas, de
resto, ninguém mais. Elas [outras artistas negras] estavam muito longe, e isso foi muito antes das redes sociais — hoje, você pode mandar e-mails ou seguir as pessoas no Instagram. Então, nós demos apoio umas às outras. Muitas dessas pessoas têm carreiras de sucesso, especialmente nas artes visuais. 

‘Hoje, todo mundo quer ouvir histórias de mulheres negras, que estão na televisão e no cinema’

Acredito que haja uma propensão natural às mulheres de auxiliar outras mulheres. Eu, por exemplo, ajudo escritoras de diferentes maneiras. Mas há uma cultura muito diferente na Grã-Bretanha hoje. Tudo é mais aberto e acessível. Elas [autoras] podem fechar grandes contratos de publicação. Todo mundo quer ouvir histórias de mulheres negras, que estão na televisão e no cinema.  

E o que você pensa sobre esse frenesi do mercado em torno das escritoras negras?
Temos sempre de ser cautelosas, jamais complacentes, e nunca ter grandes expectativas, especialmente diante dos eventos recentes. Não podemos esperar que o progresso sempre venha seguido de mais progresso, porque há forças que tentarão nos arrastar de volta. Esse retrocesso é o que chamamos de backlash [reação negativa a mudanças sociais ou políticas]. É o backlash do progresso. Sou positiva, mas, ao mesmo tempo, sei que não podemos ter isso como garantido. Especialmente alguém como eu, que escreve há muito tempo.
Testemunhei pequenas aberturas acontecendo no passado que depois
se fecharam.

Agora, parece que as pessoas de cor estão mais inseridas na cultura britânica. Mas isso pode mudar. Quando a mulher se torna poderosa, o patriarcado masculino branco sente como se estivesse sendo discriminado, o que não é verdade. Eles continuam no comando de todas as grandes corporações e instituições, além de seguirem controlando a sociedade. Quando as mulheres têm muito poder e visibilidade, eles sentem que é demais…

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #91 em março de 2025. Com o título “Em trânsito”

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