

Jornalismo, Literatura,
O ruído do passado desvelado
À procura da alma de um país, Juan Gabriel Vásquez compõe retrato fascinante de como a política invade a vida privada dos colombianos
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Pelas páginas dos romances de Juan Gabriel Vásquez caminham homens e mulheres comuns à primeira vista. Um exame mais detido, porém, revela pessoas que tiveram a vida esmagada pelo rolo compressor da história, como escreve o autor colombiano obcecado com a história do seu país. Excetuando-se seus dois primeiros romances — experimentais e de certa forma desconsiderados pelo autor —, os sete seguintes carregam o peso de tentar chegar, por meio da literatura, aonde o jornalismo e a historiografia não chegam.
Na superfície de Olhar para trás, a morte do pai leva o protagonista Sergio Cabrera, um cineasta, a lidar com um fluxo de memórias entremeadas de culpa e ressentimento, enquanto seu casamento desmorona. Mas suas lembranças desvelam um passado que, como escreveu Faulkner, nunca está morto, nem sequer passou. Da ebulição na China durante a Revolução Cultural aos dias de guerrilha na selva colombiana, os caminhos percorridos pela família Cabrera se confundem com a história do século 20. A começar pela Guerra Civil Espanhola, razão pela qual o pai, o espanhol Fausto Cabrera, acabou aportando na Colômbia, onde construiu uma carreira no teatro e trabalhou na implantação da televisão. O vínculo com a militância comunista o levou a aceitar um emprego no Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, em meados dos anos 60.

Sergio e sua irmã, Marianella, passaram os intensos anos da adolescência em um mundo distante de tudo que conheciam até então. Parecia Marte, como escreveu Barthes — e Sergio toma emprestada a analogia para tentar explicar ao filho como era viver na China de Mao Tsé-tung. Ao regressarem à Colômbia, seguindo instruções dos pais, os irmãos se embrenham na selva para ajudar a guerrilha a fazer a revolução. Enquanto Sergio repassa esses episódios, quase cinquenta anos depois, o país acabava de realizar o plebiscito sobre o acordo de paz entre o governo e as Farc. Em outra das reviravoltas que consomem a sanidade dos colombianos, a proposta que poderia colocar um ponto-final no conflito foi rejeitada.
Em entrevista por vídeo de Paris, onde vive atualmente, o autor explica que ao longo do tempo se cristalizou um método de escrita que começa pelo papel de jornalista, se desdobra no de historiador quando pesquisa em acervos e desemboca no de romancista, criando uma narrativa a partir da história.
Vásquez é um pensador do romance enquanto plataforma de expressão, seus limites e potencialidades. Em 2022, foi convidado pela Universidade de Oxford a dar conferências na prestigiosa cátedra Weidenfeld de Literatura Europeia Comparada, pela qual passaram nomes do quilate de Mario Vargas Llosa e Umberto Eco. Em uma delas, ao relembrar a escrita de Olhar para trás, dois anos antes, afirmou que escrevê-lo “foi também me perguntar todos os dias por que, se não estava inventando nada, tinha a sensação irrefutável de estar escrevendo uma obra de ficção”.
Os livros tentam chegar, pela literatura, aonde o jornalismo e a historiografia não chegam
Você já disse que tentou, nos últimos anos, investigar vidas reais por meio da ficção. São vidas que contam uma história maior. Isso sempre foi uma preocupação ao escrever literatura?
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Sempre. Esses dois últimos romances [Olhar para trás e Los nombres de Feliza, recém-lançado na Colômbia e sem edição em português] giram em torno dessa novidade — ou novidade relativa — que é usar a ficção para investigar a vida de pessoas reais. No caso de Olhar para trás, além disso, envolve um amigo. Mas meu interesse, minha obsessão ao fazer isso, é exatamente a mesma que me acompanha desde Os informantes (2004).
Trata-se de usar a ficção para explorar esse espaço, essa encruzilhada onde as forças da história pública afetam a vida privada de um grupo de cidadãos comuns — a vida íntima de um amigo, como em O ruído das coisas ao cair (2011), de um filho, como em Os informantes, ou como em La forma de las ruinas (2015, sem edição em português), de um pai angustiado com o modo como suas filhas herdarão os fatos violentos do país. No caso de todos esses personagens fictícios, era sempre a mesma investigação: como nossa vida privada é modificada por forças que não controlamos e que acontecem na vida pública. Olhar para trás funciona da mesma maneira.
Este romance marca um aprofundamento do seu projeto literário ao envolver entrevistas com pessoas reais para construir seus contrapontos ficcionais?
Descobri, com o tempo, que no meu método de escrita sempre está presente esse momento jornalístico no qual uma entrevista se torna minha maneira de começar a relação romanesca com um personagem. No caso de Olhar para trás, fiz uma entrevista de sete anos, trinta ou quarenta horas gravadas — muitas outras que não gravei — com Sergio Cabrera. Então há essa entrevista muito deliberada com o personagem central do romance.
Nos outros livros também, o ponto de partida é uma experiência real, alguém que conheço. No caso de Os informantes, foi uma conversa de três dias com uma judia alemã que chegou à Colômbia em 1938 e me contou sua história. No caso de As reputações (2013), o caricaturista político, que é o personagem principal, foi construído com uma pesquisa que envolveu entrevistas — com El Roto, cartunista do El País, com o caricaturista colombiano Vladdo e com Antonio Caballero, também da Colômbia.
‘Não escrevo romances para denunciar nada, mas estou consciente de que meus romances são políticos’
Com essas entrevistas, construí uma realidade fictícia. Mas é uma estratégia jornalística que sempre está no primeiro momento da minha relação com os materiais. Primeiro, sou jornalista. Depois, como meus romances frequentemente falam do passado colombiano, viro historiador: pesquiso documentos, arquivos. E no fim de tudo isso chega o romancista. E a única tarefa do romancista, como sempre digo, é dizer algo que nem o jornalista nem o historiador puderam dizer — aquilo que só o romance pode dizer.
Ter nascido na Colômbia, tão marcada pelo realismo mágico, o induziu a seguir outro caminho literário?
Suponho que sim. Nunca senti a presença de García Márquez e da estética do realismo mágico como uma sombra. Muitos colegas meus na Colômbia sentiram isso. Para mim, escrever na tradição que produziu Cem anos de solidão ou Crônica de uma morte anunciada — que já não é realismo mágico — é um privilégio.
É um privilégio que a minha língua seja essa, que minha caixa de ferramentas tenha sido enriquecida com essas maravilhas da tradição em língua espanhola. Então, nunca foi uma ameaça. No entanto, creio que a literatura é um esporte de contato. Ela precisa se confrontar com as presenças mais fortes de sua tradição para encontrar seu próprio caminho. Acho que parte da natureza do escritor de ficção está em não trilhar os caminhos que sua tradição já percorreu.
A leitura de Cem anos de solidão, aos dezesseis anos, foi definitiva em minha vocação. Mas, quando comecei a escrever romances, percebi que me eram mais úteis os de Vargas Llosa, de Juan Carlos Onetti e romances de outras tradições de que gosto muito, como a inglesa e a francesa. Os contos de Dublinenses, de Joyce, a literatura de Flaubert e Camus têm mais presença nos meus romances do que o realismo mágico. Um romancista, entre outras coisas, precisa escolher quais mestres vão permitir que ele transforme seu imaginário em literatura. E o meu era muito diferente, claro, daquele que formou García Márquez, que nasceu numa cidadezinha de 5 mil habitantes na costa caribenha no começo do século, enquanto eu nasci numa capital de 8 milhões, nas montanhas, no final do século. É natural que García Márquez e o realismo mágico fossem algo com o qual eu tinha que negociar — mas também é lógico que eu tenha tentado me afastar disso.
Olhar para trás foi escrito em parte durante a pandemia. Você disse que “ordenar o passado de outra pessoa foi a maneira mais eficaz de lidar com a desordem do presente”. Como foi a escrita desse romance em comparação com os outros?
Me pareceu que essa era a situação ideal para me dedicar por inteiro a esse romance — e também pensá-lo como uma espécie de reivindicação da vida contra a morte. Escrevi durante aqueles meses de confinamento obrigatório, num estado emocional intenso. Só pensava nisso, escrevia até dezoito horas por dia. E o ato de dar ordem ao caos da vida de outra pessoa me permitiu lidar melhor com meu próprio caos emocional, naquele momento em que, pelas telas e pelas notícias, nos chegava todo o sofrimento do mundo. Para mim, foi um nível de relação com meu trabalho, uma concentração intelectual e emocional, que nunca tinha alcançado. Hoje não me surpreende que tenha escrito, em sete meses, um romance de 450 páginas que normalmente me tomaria dois anos ou mais.
A palavra “narrativa” é usada hoje por movimentos políticos, sobretudo da extrema direita, para desacreditar o jornalismo, a ciência e o conhecimento mais amplo. Acredita que uma literatura como a sua pode resgatar o sentido dessa palavra?
Isso me preocupa. Parte do problema é que o passado se tornou uma arma muito útil. Movimentos como o Make America Great Again, ou o chamado libertarianismo de Javier Milei, e os de extrema direita na Europa, coincidem em tentar voltar ao passado de seus países — inventando um muito melhor, que deve ser recuperado. Para isso, é preciso contar uma narrativa sobre esse passado, e é muito incômodo para esses regimes que existam narrativas dissidentes — que jornalistas, romancistas, historiadores levantem a mão e digam: “isso não foi assim”. Isso coloca uma enorme responsabilidade nas mãos de quem conta o passado, seja o romancista, como eu, o jornalista ou o historiador. Tento fazer com que essas obrigações, que são cívicas, não determinem minha agenda literária, porque não escrevo romances para denunciar nada, nem para cumprir uma função política. Mas estou consciente de que meus romances são políticos, e que, por meio deles, também quero abrir um espaço onde os cidadãos possam recuperar o direito de contar nossa própria história, diante das versões tendenciosas ou falsas que vêm do poder ou da história oficial.
Como enxerga sua ficção em relação à história da Colômbia: um ato de otimismo ou de pessimismo?
Acho que seguir escrevendo os romances que escrevi não pode ser considerado otimismo. São romances desencantados, que buscam explorar os lados obscuros do temperamento do meu país — ou nossa incapacidade de romper os ciclos de violência e escapar deles. Mas, como já me disseram, também é ato otimista o simples fato de que, desde que escrevi a primeira página de Os informantes, lá por 2002, eu nunca tenha escrito uma só página de ficção que não seja obsessivamente colombiana. É acreditar na possibilidade de compreender esse país tão estranho, de iluminar sua história. Acho que isso não seria possível se, na alma, não acreditasse que há uma saída para esse labirinto. Nesse sentido, pode-se vislumbrar uma pequena luz de otimismo no fundo da dedicação obsessiva que meus romances têm para com a história do país.
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025.
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