Literatura brasileira,

Tempos distópicos

Ficção de antropólogo trata das violências contra indígenas e escravizados e da corrosão da linguagem

01fev2023 | Edição #66

Um livro soturno. Assim o antropólogo e escritor Pedro Cesarino classifica A repetição. E é esse o clima que envolve o leitor. Lidas na semana em que testemunhamos a tentativa de golpe de estado, em 8 de janeiro, as novelas que compõem a obra, em especial a segunda, “A dívida”, corroboram a angústia de saber que entre as razões dessa e de outras violências está o fato de o Brasil jamais ter promovido uma verdadeira reparação.


O antropólogo e escritor Pedro Cesarino classifica A repetição como um livro soturno

Mas essa é apenas uma das premissas que inspirou Cesarino a criar a distopia cujo cenário são os escombros de uma cidade devastada por uma pandemia, batizada pelo autor de Evento. Nesse contexto, o senhor M., um velho intelectual amargurado com o fracasso de sua carreira acadêmica, descobre ter o dom de aliviar o sofrimento de vivos e mortos com a ajuda de duas entidades, Vero e Kana. Pelo olhar desses seres fantásticos que atravessam diferentes temporalidades, o senhor M. “entra” no sonho de pessoas que o procuram para pedir um alívio para si e seus parentes mortos, e acaba desvendando “o Fundamento” da epidemia — assentado em camadas de genocídio.

Em meio à tragédia, A repetição também provoca risos (sarcásticos). Cesarino se vale do humor para colocar em perspectiva privilégios da classe dominante, que em seu primeiro livro de ficção, Rio acima (Companhia das Letras, 2016), é personificada pelo protagonista, um antropólogo narcisista em viagem aos confins da Amazônia — baseada em experiências do próprio autor.

Acirramento da violência

Rio acima é uma paródia decolonial. Uma crítica à figura do homem branco pesquisador, que serve como pano de fundo para falar sobre a relação entre indígenas e brancos”, explica Cesarino. “De lá pra cá, as coisas se complicaram do ponto de vista político, ambiental e humanitário. Houve um acirramento da violência colonial com dois componentes a mais: a pandemia e o neofascismo. A repetição pensa qual crime não espiado, qual dívida não paga estão por trás da catástrofe pandêmica”, diz ele.

São surpreendentes e comoventes as razões que Cesarino desvela, valendo-se de suas vivências como antropólogo entre os povos indígenas e de pesquisas sobre a herança escravocrata. Como no livro anterior, ele faz da ficção um potente canal criativo, numa trama bem-amarrada, poética e repleta de revelações.

Autor de estudos sobre cosmologias ameríndias como Oniska: poética do xamanismo na Amazônia (Perspectiva, 2011), que lhe rendeu o prêmio Jabuti, Cesarino estreou carreira internacional em 2022, com o lançamento de Rio acima na França, onde recebeu críticas positivas e grande repercussão na mídia local. “Há um interesse pela Amazônia, mas também por percepções decoloniais e narrativas que falem sobre outras formas de existência num momento em que a região ocupa um papel crucial nesse debate”, acredita.

‘Compreender a função corpórea da palavra é uma das tarefas do pensamento antirracista decolonial’

Ele é também personagem recorrente na efervescente cena de criação e divulgação da arte indígena, assinando roteiros de cinema — é um dos roteirista de A febre (2019), de Maya Da-Rin — e peças de teatro e atuando como consultor em exposições de museus importantes. Professor de antropologia na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, Pedro deve concluir ainda este ano seu terceiro romance, que trata do aliciamento de jovens indígenas pelas redes de criminalidade da Amazônia. Ele também finaliza um livro de contos. Em meio a essa rotina, tomou um café com a Quatro Cinco Um.

Qual pano de fundo conecta “O mentiroso” e “A dívida”, novelas que compõem seu novo livro?
Eu estava preparando uma coletânea de contos e uma das histórias, “O mentiroso”, era quase uma novela. Também percebi afinidades entre ela e “A dívida”, narrativa que eu tinha começado a escrever e que se impôs. Ambas tratam do mesmo dilema, vivido por essa figura meio “cassândrica” [na mitologia grega, Cassandra é a profetisa cujas previsões eram desacreditadas]. Os relatos se complementam, pois revelam o aspecto ambíguo e perigoso das palavras. Nos dois, os personagens anunciam uma verdade que não resulta de sua própria capacidade de reflexão ou crítica. Eles são apenas porta-vozes e, quando a transmitem, ela se choca com a capacidade de compreensão das pessoas ao redor. Eles não só não são ouvidos como podem ser rechaçados e expulsos da comunidade.

Isso me faz lembrar a rede de fake news que se sobrepôs ao jornalismo e à comunidade científica nos últimos quatro anos. Essa foi também uma questão para você?
É curioso fazer um paralelo com o que jornalistas, intelectuais, artistas viveram. De alguma maneira, todos nós anunciamos uma catástrofe e as razões pelas quais chegamos a ela, mas fomos perseguidos e incompreendidos. Os personagens de “O mentiroso” e “A dívida” orbitam em torno de dilemas contemporâneos, que tem a ver com o esfacelamento da certeza e da credibilidade, mas também com a construção do processo colonial, que desvalida a palavra dos que são invadidos, dominados, escravizados. Há uma dobra adicional que é a corrosão geral da linguagem pelas fake news e o uso disso pelos fascismos mais diversos.

Em uma nota do livro, você menciona que “O mentiroso” foi inspirado em uma história real, narrada nos anos 50. Pode falar sobre ela?
É um relato sobre um indígena piro, uma etnia da Amazônia peruana, que teria sido o primeiro a aprender a ler. Na verdade, ele estabelecia com o papel uma relação próxima à ligação xamânica, ou seja, ele acessava o espírito do papel, que era uma mulher com o corpo coberto de letras, em vez de padrões gráficos, como a gente costuma conhecer nas pinturas corporais indígenas. Ele conversava com essa mulher e fazia performances de leitura através dessa voz. Esse relato é importante aos estudos sobre populações amazônicas, porque fala da associação entre a escrita e uma percepção da comunicação ligada ao corpo. Nossa relação com a escrita é descorporificada. A gente estabelece um elo com um objeto externo: o texto no papel. Essa separação entre palavra e corpo é um dos grandes divórcios coloniais. Interessante é que a tradição filosófica ocidental surge com uma desconfiança em relação à escrita. Sócrates achava que ela atrofia a capacidade de produção de conhecimento da verdade. É curioso encontrar paralelos com isso na Amazônia.

Como se deu conta disso?
Além da formação em filosofia, duas experiências me levaram a consolidar esse entendimento: os terreiros de candomblé, onde a gente aprende o que é a força do trabalho numa situação ritual, e, sobretudo, meu trabalho com os marubos no Vale do Javari. Ali, entendi como funciona uma civilização da oralidade, um regime de conhecimento baseado na palavra não mediada pela escrita. Compreender a função corpórea da palavra é uma das tarefas do pensamento antirracista decolonial. Se as pessoas não entenderem que existe um outro registro do corpo e da palavra, nunca vamos compreender uma das principais violências coloniais: o silenciamento desse tipo de verdade.

Nesse contexto, qual o seu papel como escritor?
As culturas da oralidade trazem seus respectivos mundos e formas de existência, que foram e são negados, violentados, emudecidos. A literatura brasileira ainda não conseguiu estabelecer uma relação simétrica com essas formas de existência e de criatividades. Ela ainda é voltada aos cânones europeus e estadunidenses e a uma certa invenção do outro, que é modernista.

‘A estrutura de poder faz com que a reparação jamais tenha sido considerada um problema partilhado’

Diferentemente das ciências humanas, que partem de uma construção do conhecimento atrelado a uma história específica da ciência, a literatura tem algumas vantagens para integrar esses repertórios à interlocução criativa. Espero que meu trabalho contribua para ampliar esse diálogo que, especialmente no Brasil, ainda é restrito.

Por que escolheu fazer isso por meio da ficção?
Minha escrita literária era voltada à poesia e, por causa dela, optei por estudar poéticas não ocidentais, em especial ameríndias. Foi o que me levou à antropologia e à linguística. Aos poucos, eu me tornei um poeta da tradução. A ficção vem depois, com Rio acima, quando entendi que, por meio de uma narrativa ficcional, poderia fazer a ponte com questões que eu me colocava como antropólogo e no universo de explorações afetivas. Gosto cada vez mais de me dedicar à ficção como um registro de investigação criativa e intelectual.

Seu avô também foi uma inspiração para escrever “A dívida”…
Meu avô, [o jurista] Antônio Ferreira Cesarino Júnior, foi o primeiro professor negro da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ele era filho de pai negro e mãe descendente de indígenas, mas não tinha muita ligação com o conhecimento dessas tradições. Sabia falar muitas línguas estrangeiras, mas nenhuma de seus antepassados — por motivos que desconheço. Comecei a compreender isso quando iniciei meu trabalho de pesquisa e optei por uma língua indígena, uma poética silenciada. “A dívida” é um diálogo com minha história pessoal e outros estudos.

Quais estudos?
Escrevi o livro durante a pandemia. Eu estava retirado na região de Maranduba, em Ubatuba [litoral de São Paulo], onde há ruínas de fazendas com um histórico relacionado à escravidão, mas eu não sabia o que tinha acontecido lá. Comecei a vasculhar documentos, conversei com pessoas e descobri um estudo revelando que ali existia uma vasta rede de tráfico clandestino de escravizados [após a proibição do tráfico, no século 19]. Era uma cadeia de produção altamente rentável, que movimentava todas as autoridades. Aquilo me deixou em choque porque eu cresci ali. Nossa relação com o território, com os lugares que visitamos, é apagada. Ela esconde uma memória de camadas de genocídio vergonhosamente ignoradas. Estamos falando dos escravizados mas, antes deles, houve o extermínio dos povos indígenas. “A dívida” parte dessa revolta. Ela se associa ao problema da verdade da linguagem, ao meu conhecimento pessoal da região e a pesquisas arqueológicas sobre as ocupações indígenas e paleoindígenas, anteriores aos tupinambás.

Em “A dívida”, você condiciona a tragédia da pandemia à falta de reparação, algo que jamais ocorreu no Brasil. Por que temos tanta dificuldade em lidar com o tema?
É curioso falar sobre isso após assistir ao emocionante discurso de posse de Anielle Franco [Ministra da Igualdade Racial]. A estrutura de poder faz com que a reparação jamais tenha sido considerada um problema partilhado. Ela é concebida como algo que diz respeito somente às pessoas negras, mas é uma falha na fundação da sociedade como um todo. A ausência de percepção sobre isso gera patologia.

Há um cenário efervescente da cultura, produção intelectual e divulgação da arte indígena. Que momento é esse que vivemos?
De reparação e de construção de espaços de reparação. É surpreendente que a cultura tenha continuado a se fortalecer mesmo durante os anos Temer e Bolsonaro. Estamos agora em um momento de transformação do imaginário cultural brasileiro. É uma virada antirracista. Uma mudança no protagonismo, na forma de enunciação e nos repertórios que vai ao encontro de uma reforma das estruturas institucionais. Não é mais possível passar ao largo ou se abster desse processo, que não diz respeito apenas à chamada pauta identitária. Essa é uma abertura para pessoas interessantes, universos de pensamentos fascinantes e poéticas extremamente potentes.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #66 em dezembro de 2022.