Literatura brasileira,

Interpretando exílios

Com o deslocamento como tema recorrente, Milton Hatoum acompanha adaptações, revisa ensaios e finaliza trilogia de romances de formação

19maio2023 | Edição #70

Milton Hatoum está animado para A Feira do Livro. Já pensa em temas obrigatórios para sua participação (“literatura, O rio do desejo e outros filmes”), e reflete: “Pacaembu significa ‘terra alagada’ em tupi-guarani. Em junho o bairro será inundado de palavras. O que nos resta além do amor e das palavras?”. Em cartaz no momento em que esta entrevista foi realizada, no final de abril, O rio do desejo é o filme de Sérgio Machado baseado no seu conto “O adeus do comandante”, do livro A cidade ilhada. É a adaptação que foi acompanhada mais de perto pelo escritor, entre as várias realizadas: Dois irmãos virou minissérie em 2017 pelas mãos de Luiz Fernando Carvalho, Órfãos do Eldorado foi filme de Guilherme Coelho em 2015 e Relato de um certo Oriente chega à tela grande em breve, com direção de Marcelo Gomes. Ver sua literatura inspirar obras audiovisuais tem sido oportunidade de aprendizado.

Nesta conversa, o autor de setenta anos dá conselhos para jovens escritores, reflete sobre o impacto da ascensão da extrema direita no país e fala da Amazônia de ontem e hoje.

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O rio do desejo, baseado num conto seu, estreou no cinema. Relato de um certo Oriente também está sendo adaptado para tela grande. A que atribui essa boa fase de adaptações?
A primeira conversa sobre adaptação foi em 2000, quando Dois irmãos foi publicado. Fui à Bienal do Livro no Rio e conheci a roteirista Maria Camargo, que se tornou uma grande amiga. Ela quis adaptar o romance e escreveu o roteiro. Anos depois, o Luiz Fernando Carvalho dirigiu a minissérie da Globo. Aí não parou mais. Guilherme Coelho adaptou Órfãos do Eldorado. Agora está sendo exibido o filme do Sérgio Machado. Ainda não assisti ao filme do Marcelo Gomes [Relato de um certo Oriente], mas a sequência exibida no programa do Bial é linda.

Qual é a sua participação em O rio do desejo, dirigido por Sérgio Machado?
Sérgio fez um trabalho notável na abordagem dos sentimentos das personagens, soube combinar esse tratamento subjetivo com cenas de ação. Acho que é um dos melhores filmes brasileiros. Essa é também a opinião de alguns dos nossos grandes cineastas. Walter Salles, Fernando Meirelles e Cacá Diegues adoraram o filme. Não participei diretamente do roteiro. O conto “O adeus do comandante” foi o ponto de partida. É um relato de poucas páginas, não daria um longa-metragem. Quando Sérgio pediu que eu escrevesse outros textos, recorri às anotações sobre aquele conto. Eram esboços de cenas e conflitos que tinham ficado de fora. Então o conto original cresceu por todos os lados, a palmeira virou uma árvore mais ou menos frondosa. Novas personagens foram inventadas, incluindo o terceiro irmão. Foi a primeira vez que desenvolvi um argumento para ser filmado.

Durante a pandemia, escrevi um longo texto para o audiovisual, não sei se será um longa-metragem ou uma série. Nas adaptações de Órfãos do Eldorado, Dois irmãos e Relato de um certo Oriente não interferi no roteiro, mas no filme do Sérgio foi diferente. Desde o início a gente conversou muito e eu acabei me envolvendo em todo o processo de construção das personagens, mas sem participar da escrita do roteiro.

É preciso voltar ao corpo a corpo senão a gente corre o risco de perder a escuta, a presença física dos outros

Antes dessas experiências, você tinha receio de que as adaptações descaracterizassem suas histórias?
Roteiristas e cineastas sabem que os romancistas do século 19 já usavam recursos formais que depois se tornaram comuns no audiovisual. Cenas e sequências longas, como travelling ou flashbacks, e cortes temporais e espaciais são técnicas literárias que anteciparam a linguagem cinematográfica. Um bom filme e um bom romance enriquecem a visão do cineasta e do escritor. Minha relação mais direta com o audiovisual me possibilitou descobrir novas relações entre a escrita e a imagem. Mas nunca tive medo de que as adaptações descaracterizassem meus textos de ficção. Penso numa adaptação como uma tradução para outra linguagem. Na tradução de uma obra literária você deve captar o ritmo e a essência do original. Acho que isso foi feito em todas as adaptações.

Você já declarou que para escrever precisa ter tempo para ler. Mas ter tempo também é um privilégio. Nesse sentido, o que diria aos jovens que querem se tornar escritores?
Mas só tive mais tempo para escrever quando beirava os cinquenta anos. Foi depois da publicação de Dois irmãos. Era professor na Universidade Federal do Amazonas e na Aliança Francesa de Manaus. Sobrava pouco tempo para ler e escrever o que eu queria. Mas foi assim que escrevi Relato de um certo Oriente, meu primeiro livro. O mais importante para os jovens é não perder muito tempo com as redes sociais. É preciso voltar ao corpo a corpo e observar, ouvir as pessoas, senão a gente corre o risco de perder a escuta, a voz, a presença física dos outros. A experiência no mundo virtual é rala e de outra ordem. Além disso, a leitura de bons livros é essencial na formação dos escritores e uma das mais fecundas experiências da vida, não apenas para quem quer escrever literatura.

Ambientar histórias na Amazônia é uma responsabilidade? Apresentar personagens e cenários que fujam aos estereótipos é um desafio?
Acho que a responsabilidade não está no espaço onde são ambientadas as histórias, mas sim na forma de narrar uma ficção. A linguagem e o modo de narrar configuram o teor de verdade das relações humanas. Acho que esse é o desafio. E vencer esse desafio pressupõe inventar personagens e cenários complexos, sem estereótipos. Isso serve para romances ambientados em qualquer lugar: na metrópole, no sertão, no deserto. Ou até num espaço não nomeado. 

Um exemplo é o romance A maçã no escuro. Clarice [Lispector] não nomeia lugares, o leitor não sabe onde fica aquele hotel onde dorme o personagem, nem a fazenda onde ele trabalha. Mas em algum momento aparece uma frase crucial: “O homem estava no coração do Brasil”. E esse homem, o personagem Martim, interage com a natureza do lugar que, de algum modo, vai fazer parte de uma dupla viagem: a geográfica e a da sondagem psicológica, profundamente subjetiva sobre a existência e o destino.

Fui embora de Manaus muito jovem. Depois da infância, quem não se sente no exílio?

Você está escrevendo sobre a realidade amazônica hoje? Como vê a situação da Amazônia neste período pós-governo Bolsonaro e de início de um governo Lula — que prometeu, na campanha, atenção especial ao meio ambiente?
Estou revisando ensaios sobre a Amazônia e contos ambientados em Manaus. Alguns escritos há dez ou quinze anos e inéditos. Minhas memórias giram por vários lugares, são lembranças difusas das sete cidades onde vivi, no Brasil e no exterior. Mas Manaus e o rio Negro ocupam um lugar proeminente, minha infância e primeira juventude estão lá, no tempo da memória, que repercute no presente.

Como se sabe, uma das obsessões nefastas do governo anterior era destruir a floresta e martirizar os povos originários. Penso que o governo Lula vai penar por algum tempo, mas já há ações concretas dos ministérios da Justiça, da Saúde, dos Povos Indígenas, do Meio Ambiente. O governo federal terá mais problemas com quase todos os governadores do Norte. Nenhum deles tem qualquer compromisso com a preservação do meio ambiente e com uma economia sustentável. O fascismo perdeu as eleições, mas não a adesão de milhões de eleitores e a militância nas redes sociais, que continuam a divulgar mentiras criminosas. Um dos maiores desafios do presidente Lula e do poder judiciário diz respeito a esses crimes em série. Acho que não haverá calmaria diante de uma extrema direita atuante e organizada. Mas o atual governo deve ter serenidade para trabalhar e não aceitar provocações.

Hoje há projetos de jornalismo focados na Amazônia, como o Amazônia Real e o Sumaúma. Mas a desinformação segue ocupando espaço importante na disputa de narrativas. Como diminuir a incompreensão em relação à Amazônia?
O Amazônia Real e o Sumaúma são notáveis. Leio também as reportagens de Lúcio Flavio Pinto, grande jornalista paraense que foi e ainda é perseguido em Belém. Ele, Eliane Brum, Francisco Foot-Hardman, João Moreira Salles e outros escreveram livros importantes sobre a ocupação predadora do Norte, que envolve várias modalidades de extrativismo e a construção de estradas e hidroelétricas. Essas ações foram intensificadas durante a ditadura e atingiram o ápice no governo anterior. Mas o saque, a exploração e a escravização e matança de indígenas já ocorriam na época da colônia e do Império. E sempre houve resistência de indígenas e caboclos. A Cabanagem [1835-40] foi, no fundo, uma revolta popular por melhores condições de vida e resultou numa das maiores tragédias da nossa história. A repressão do aparato militar do Império dizimou uma parte considerável da população da então província do Grão-Pará. Os jovens deveriam conhecer essa e outras tragédias da região.

Para entender a complexidade da Amazônia, a gente precisa ouvir as vozes indígenas, ler os livros de Ailton Krenak, de Davi Kopenawa… Sei que eles são lidos em algumas escolas privadas, mas deveriam ser lidos também nas públicas, onde estudam 80% dos jovens brasileiros.

Sobre seus livros mais recentes: a trilogia O lugar mais sombrio já tem A noite da espera e Pontos de fuga. Brasília, São Paulo e Paris são cenários. Foi desafiador pensar nessa história passando por tantos lugares?
Comecei a trilogia pelo fim. É uma mania talvez um pouco neurótica saber onde vai terminar, embora o final não seja exatamente um desfecho. Quem termina um livro é o leitor. Ou nem termina. Mas eu tinha o esboço do início. O que dá mais prazer é escrever na travessia, elaborar as passagens no tempo e no espaço, movidas pelos conflitos. É o prazer da complicação, porque só o difícil é estimulante. Na literatura não há desafios fáceis. A vantagem é que morei nessas cidades — e em Santos, que é um dos centros simbólicos dos dois volumes. O terceiro ainda não tem título.

Como a literatura ajuda a enfrentar os tempos sombrios?
Até certo ponto, a literatura nos ajuda a entender o passado e, de algum modo, o tempo presente. No fundo, ela é fundamental em tempos sombrios e em qualquer tempo. Porque não há época nem lugar sem contradições, violência, sofrimento, amor, encantos e tragédias. Os romances contêm tudo isso, ou parte disso. Por isso nos humanizam.

Suas histórias têm identificação com deslocamentos, com a figura do imigrante, com a adaptação ao exílio. Por que esse tema é recorrente?
Meus avós e meu pai migraram do Líbano para o Acre e para o Amazonas. Daí surgiu o tema da imigração em dois romances e alguns contos. O exílio não é apenas um deslocamento, mas também um sentimento. No ensaio “Reflexões sobre o exílio”, Edward Said assinala que qualquer pessoa pode se sentir exilada sem deixar seu país. São os exilados em sua própria pátria, como disse Euclides da Cunha, referindo-se aos seringueiros nordestinos na Amazônia. O que me fez pensar no exílio foi a vida na década de 70, quando vários amigos e conhecidos foram obrigados a partir. Mas acho que há algo mais profundo. Fui embora de Manaus quando era muito jovem. Essa viagem sem volta foi uma ruptura com o lugar da infância. Depois da infância, quem não se sente no exílio?

Quem escreveu esse texto

Helena Aragão

É jornalista e mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.