
Literatura,
A hora da estrela
Uma conversa com Chimamanda sobre mulheres, homens, política e seu novo livro
01abr2025 | Edição #92Chimamanda não está apresentável. Não para abrir a câmera durante a entrevista. “Desculpe, mas estou parecendo maluca”, diz a escritora, ao final de quase uma hora de conversa.
Difícil imaginar a nigeriana “parecendo maluca”. Chimamanda está sempre impecável. Talvez a bagunça fosse em casa, o que seria compreensível num lar onde vivem dois bebês, gêmeos de dez meses, e uma menina de nove anos. Ainda mais se a mãe desse trio é um ícone pop, a duas semanas de lançar seu livro.

Mesmo que tudo o que ela faça seja um acontecimento, trata-se de um momento especial. A contagem dos sonhos é seu primeiro romance após mais de uma década desde o anterior — período no qual publicou ensaios, manifestos, memórias e histórias infantis. O anterior, Americanah (2013), tornou Chimamanda best-seller mundial, com mais de 2 milhões de cópias vendidas — um milhão apenas nos Estados Unidos.
A contagem dos sonhos segue caminho semelhante. Apenas dois dias depois de chegar às livrarias, em 4 de março, apareceu entre as obras semifinalistas do Women’s Prize. A cobertura do “lançamento do ano” incluiu capas das edições britânica e espanhola da Harper’s Bazaar, entrevistas para programas de TV e jornais (Guardian, The Telegraph e New York Times entre eles), trechos exclusivos na The New Yorker, além de uma turnê por seis cidades estadunidenses, mais um encontro em Toronto, no Canadá, outros dois em Londres e um em Berlim. Na Nigéria, onde ela é uma superstar, a primeira tiragem esgotou em menos de uma semana, inspirando memes que mostram leitoras sentadas na calçada em frente às suas casas, aguardando a chegada do livro pelo correio.
A crítica, por ora, não é unânime. O jornal britânico The Times compara o “magnífico” romance de Chimamanda ao clássico de Leon Tólstoi, chamando-o de “um Guerra e paz feminista”. A agência Associated Press, por sua vez, o descreve como “vibrante”. Para o Guardian, “a autora nigeriana-americana retorna com uma exploração astuta e comovente da experiência feminina”. Na contramão, o portal de entretenimento estadunidense Vulture diz: “Na melhor das hipóteses, o livro apresenta uma imagem das relações de gênero do tipo Os homens são de Marte, as mulheres são de Vênus; na pior, é uma visão suavemente regressiva dos americanos progressistas, que, nessas páginas, são caricaturas bidimensionais esboçadas a partir de pontos de discussão conservadores, em vez de personagens totalmente formados que se espera encontrar na ficção literária”. O texto destaca ainda a centralidade de relações heterossexuais — lembrando que a autora foi acusada de transfobia em passado recente — e a falta de matizes no comportamento masculino.
Chimamanda afirma que ‘A contagem dos sonhos’ é o primeiro romance em que ressalta as conexões entre mulheres
É verdade que Chimamanda enfatiza a hipocrisia do que ela chama de “liberais”, em especial de pessoas brancas. E os homens com quem as personagens têm relacionamentos amorosos são em sua maioria bem babacas. Mas ao afirmar que “deveríamos esperar mais de uma ficção feminista”, a resenha da Vulture toca em algo que Chimamanda reiteradamente diz não estar disposta a fazer.
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Alçada ao estrelato global após a cantora Beyoncé reproduzir na canção “Flawless” um trecho da conferência Sejamos Todos Feministas, realizada numa edição do TEDx (2012), em Londres, Chimamanda costuma expor seu incômodo por ser mais conhecida como ativista do que como romancista. “Quero ser uma contadora de histórias que por acaso é feminista. Não quero ser uma feminista que escreve romances”, disse ela, em uma conversa que tivemos em 2019, num estúdio no subúrbio de Washington.
“Feminista é um rótulo que me deixa feliz, que assumo e amo. Não estou me afastando dele nem nada disso, mas me considero uma artista. Sou uma pessoa criativa e não quero ser limitada por esse lugar-comum”, explica. “Algumas feministas ferozes escrevem e-mails raivosos para mim porque acham que uma história não foi feminista o suficiente, sabe? Mas não posso abordar minha ficção de maneira ideológica. Não posso escrever histórias nas quais todas as mulheres são perfeitas e fortes, porque o mundo não é assim.”
As quatro protagonistas de A contagem dos sonhos são essas tais mulheres comuns. Chimamanda afirma serem variações dela mesma. “Todas as minhas personagens são eu. Incluindo os homens”, diz. Na faixa dos quarenta anos, as nigerianas Chiamaka, Omelogor e Zikora vivem entre o continente africano e os Estados Unidos.
A primeira, Chia, é uma aspirante a escritora mimada e rica, que se desloca pelo mundo compondo narrativas de viagem, sob a perspectiva de uma africana, enquanto busca pelo homem ideal. Sua melhor amiga, Zikora, divide-se entre o desejo de ter a família perfeita e a bem-sucedida carreira como advogada. Prima de Chia, Omelogor é a única que mora na Nigéria, onde enriqueceu trabalhando no sistema financeiro e coordenando esquemas de corrupção.
A única não nigeriana, e tampouco de classe privilegiada, é Kadiatou. Nascida na Guiné Conacri, ela trabalha como faxineira na casa de Chia, em Maryland (EUA), e limpando quartos em um hotel de luxo. Nesta função, será vítima de uma violência, com consequências sentidas pelo quarteto.
Kadi é também a única cujas bases não partem de experiências pessoais de Chimamanda. Em uma nota ao final do livro, a autora explica que se trata de uma personagem livremente inspirada em Nafissatou Diallo. Em 2011, a guineense, que atuava como camareira no Sofitel de Nova York, acusou o então chefe do FMI, o francês Dominique Strauss-Kahn, de tentativa de estupro numa suíte.
O romance, diz Chimamanda, é o primeiro em que ressalta as conexões entre mulheres. Por meio dessas ligações, ela trata de temáticas recorrentes em sua trajetória — como imigração, religião, diferenças geracionais e culturais, racismo, política, corrupção e pan-africanismo —, tendo como pano de fundo a pandemia de Covid-19 e um interesse pela indústria da pornografia. Ao fim da escrita, diz ter se dado conta também da ênfase nas interações entre mães e filhas, algo que revela ter sido “nada consciente”.
Não à toa, Chimamanda dedica o romance à sua mãe, Grace Ifeoma Adichie, que morreu em 2021. A morte inesperada da mãe ocorreu poucos meses depois de perder o pai, James Adichie, experiência detalhada no ensaio “Notas sobre o luto”. “Menininha do papai” e “filha da minha mãe” são algumas das frases que Chimamanda costuma utilizar para se referir a intensa convivência e herança familiar.
‘Todas as minhas personagens são eu mesma. Incluindo os homens. Amo todas elas’
Primeiro professor de estatística do país, James atuou na Universidade da Nigéria, em Nsukka, onde Grace foi a primeira mulher a trabalhar como administradora. Quinta de seis filhos, Chimamanda cresceu no ambiente protegido do campus, onde morou até se mudar para os Estados Unidos, após abandonar o curso de medicina, aos dezenove anos.
Era Grace quem cobrava da filha a boa aparência. “Minha mãe dizia para eu sempre olhar no espelho antes de sair, para me certificar de que estava apresentável”, contou Chimamanda em 2016, nos bastidores de um evento do jornal Le Monde no museu do Quai Branly, em Paris. Na ocasião, falávamos sobre o apreço da protagonista de Americanah por moda, reflexo de um gosto que a própria Chimamanda assumiu somente após atingir “um certo nível de sucesso”.
“Na Nigéria, as pessoas não criticam tanto a aparência das mulheres quanto no Ocidente”, afirma. “Lá, se você é uma intelectual e usa salto alto, não é tão ruim quanto nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde existe esse ideal de ter que ser uma coisa só. Quando tinha uns trinta anos, cansei de fingir. Acho que isso surge com a autoconfiança de envelhecer.”
Leia a seguir a conversa realizada em março, as vésperas de Chimamanda lançar A contagem dos sonhos.
Fiquei com a impressão de que A contagem dos sonhos explora as dificuldades de dialogar, por diferenças de idioma, culturais, geracionais. A comunicação instantânea dificultou ainda mais as conexões?
É uma questão interessante. Para mim, se trata mais de uma falha em se conectar do que de se comunicar, embora as duas coisas estejam ligadas. Não criamos conexões se não nos comunicamos bem. Fico ansiosa com as muitas mensagens de WhatsApp que recebo da família e de amigos, porque as pessoas esperam que você responda imediatamente e, em geral, não faço isso. Me sinto mal por não responder. Essa pressão me faz desejar voltar ao tempo em que escrevíamos cartas e tínhamos telefones fixos. Havia algo mais profundo na conexão entre as pessoas naquela época. Talvez porque exigisse mais esforço.
É por essa falta de conexão que os relacionamentos amorosos das personagens do livro fracassam?
Não. As relações terminam por diferentes razões. Não são falhas na comunicação, só um homem sendo babaca. Cada relacionamento tem sua dinâmica. Chiamaka, por exemplo, que é sonhadora e não muito prática, cultiva a ideia de que o amor deve ser como imaginou e, por isso, nada nunca a satisfaz. Ela busca por algo que jamais encontrará, pois ninguém corresponde a sua idealização.
Como você se relaciona com as personagens? Qual foi a história mais fácil e a mais difícil de escrever?
Todas as minhas personagens são eu mesma. Incluindo os homens [risos]. Amo todas elas, mas fui mais protetora com Kadiatou. Você pode falar qualquer coisa sobre as outras e não me importo, mas deixe Kadiatou em paz! Ela é inspirada em uma pessoa real [a guineense Nafissatou Diallo], mas apenas vagamente, porque trabalhei muito para criá-la. A ideia de uma mulher que sofreu tanto, e que não tem nenhum poder, pois não tem educação nem dinheiro, me fez me sentir responsável por ela. Ao mesmo tempo, tive cuidado em torná-la humana. Não quero que seja vista como uma pessoa perfeita, porque ninguém é. Então, te respondendo, o mais difícil foi escrever sobre Kadiatou. Fiz muitas pesquisas sobre a Guiné [Conacri], por tratar-se de uma vivência que não é a minha, de uma nigeriana. Claro que há experiências universais, mas existem nuances. Assisti a muitos vídeos de pessoas cozinhando comida guineense e estudei todo tipo de coisa sobre o país. Reescrevi os capítulos sobre Kadiatou muitas vezes.
E as outras personagens?
Admiro Omelogor e gostaria de ser sua amiga. Entendo Zikora, mas não necessariamente gostaria de ser sua amiga. Já Chia [Chiamaka]… Acho que falaria algo similar ao que Zikora disse a ela: “Você é tão molenga e cheia de vontades”. Mas diria isso com ternura.
Você dedicou o livro a sua mãe: como ela se relaciona com essas mulheres e esses temas?
Ao começar A contagem dos sonhos, não pensei estar escrevendo sobre minha mãe, mas sobre essas personagens femininas. Então, quase no final, reli o livro e, meu Deus, senti seu espírito. Há muitas experiências entre mães e filhas, que não tinha me dado conta. Não foi nada consciente. Iniciei esse trabalho após a morte de minha mãe, que me destruiu. Ainda estava vivendo a terrível dor de perder meu amado pai inesperadamente, mas pensava que, pelo menos, tinha minha mãe. Alguns meses depois, no aniversário dele [1º de março], ela se foi. Ela estava muito bem no dia anterior, foi à missa e, na manhã seguinte, partiu.
‘A visão que tenho do feminismo foi moldada por minha própria experiência: fui a garotinha do papai’
Se alguém construísse essa narrativa em uma das minhas aulas de escrita criativa, diria que a história não era boa ou crível. Que as coisas não acontecem dessa maneira. Não gosto de falar sobre isso porque me emociona. Outro dia, olhei para a dedicatória e comecei a chorar sem parar. Decidi que sempre que abrir A contagem dos sonhos, vou pular essa página. Em resumo, não foi nada consciente. Essa escrita ocorreu num momento de intensa dor e tristeza. Fico feliz porque não se trata de um livro sobre sofrimento. Ele é alegre, tem risadas, amor… O que, de certa maneira, é a história da minha mãe. Ela era amor, riso, alegria e tinha uma língua afiada.
Há um trecho em que Chia diz: “Antes de atender o telefone, lavei o rosto e prendi as tranças num coque para ficar apresentável”. Me lembrei de nossa conversa em 2016, quando falou que sua mãe sempre dizia que você deveria estar “apresentável”…
E quando a pessoa não estava apresentável, ela fazia tantas críticas! Engraçado você trazer essa memória, porque lembrei dela ontem justamente por isso. Uma equipe veio a minha casa fazer uma entrevista, e, como não queria colocar sapatos, perguntei: “Vocês vão mostrar meus pés?”. E eles responderam, talvez sim, talvez não. Pensei: Quer saber? Não vou usar sapatos porque estou cansada. Então, lembrei que se minha mãe estivesse aqui, ela diria: “Vá pegar seus sapatos e fique apresentável!”.
Você mencionou ser este o livro em que mais explora o relacionamento entre mulheres. O que te interessa enfatizar?
A amizade, a maneira como as mulheres se apoiam, se compreendem e podem ser profundamente íntimas em termos emocionais. Sempre amei amizades femininas que, para mim, são essenciais e muito diferentes dos relacionamentos masculinos. Esse livro celebra essas conexões, em especial quando, no final, as personagens se unem em torno da experiência terrível vivida por Kadiatou. Ela não é uma mulher cheia de privilégios como as outras e, apesar das diferenças, elas estão juntas para apoiá-la.
Você vive entre dois continentes, América e África. Acredita que essas dinâmicas mudam de um país para o outro?
Sou um pouco parcial, mas sinto que as amizades femininas são mais sólidas na Nigéria. Não quer dizer que nos Estados Unidos não existam conexões profundas, mas, às vezes, me parece que as amizades no Ocidente são mais escassas. Já ouvi pessoas dizerem estar chateadas com a amiga porque ela ligou duas vezes e não foi atendida. É uma espécie de contagem que não acontece no meu país. Mas parte disso se deve ao fato de que conheço minhas melhores amigas há trinta anos. Crescemos juntas — se é que isso faz algum sentido. Com o passar do tempo, somos mais pacientes umas com as outras. Quando você envelhece, essa camaradagem pode se tornar mais profunda ou terminar. Como as amizades de infância que acabam porque você se transforma numa pessoa diferente.
No livro, há momentos divertidos, como quando as amigas vão para um lugar onde só há mulheres seminuas, fumando maconha, dançando, fazendo massagem tântrica…
Me diverti muito escrevendo sobre isso e tudo é baseado em histórias reais. Um amigo perguntou de quais pesquisas [para o livro] participei, e respondi que nunca falo sobre meus métodos. Alguém me contou… Não sei quem [risos].
Na história, os homens traem, praticam ghosting, gaslighting, mentem, estupram… Você está pessimista com o comportamento masculino?
Não, não. Não disse que todos os homens são idiotas! Escrevi sobre um caso específico, trata-se apenas de um babaca. Mas entendo porque alguém poderia argumentar que sou pessimista. No entanto, sempre acreditei que bons homens existem, porque conheço muitos. A visão que tenho do feminismo foi moldada por minha própria experiência: fui a “garotinha do papai”, que era um homem incrível. Um pai maravilhoso. Meus irmãos e amigos também foram positivos em minha vida. Nunca tive essa ideia de que todos são maus.
Acontece que A contagem dos sonhos é o primeiro romance em que realmente exploro a vida íntima das mulheres e, muitas vezes, essas experiências envolvem comportamentos ruins por parte dos homens. Mas também há caras legais. A maioria dos pais, por exemplo, são retratados como homens bacanas. Um amigo me disse: “Você percebe como foi boa para os pais, mas criou mães complicadas?”. Não tinha notado isso.
Uma personagem tem um blog para homens, no qual oferece conselhos sobre masculinidade, relacionamentos etc. Acha que falhamos em cooptar os homens para as conversas sobre igualdade de gênero?
Acho que sim, mas não perdi a esperança. O problema é que precisamos começar cedo. As meninas hoje têm modelos femininos nos quais se inspirar. Mulheres com quem elas podem aprender a ser fortes. Não creio que isso aconteça aos meninos, e esse vácuo está sendo preenchido por influenciadores que promovem todo tipo de misoginia. Por isso, sempre digo que bons homens têm de se encarregar de tornar os rapazes feministas.
Em Americanah, a protagonista também mantém um blog bastante irônico sobre branquitude. Você gosta muito desse recurso, não?
Sim. Me diverti muito escrevendo o blog de Americanah e o mesmo aconteceu em A contagem dos sonhos — apesar de ele ter muito menos espaço neste romance. O blog é um recurso literário que uso para tratar de temas sérios com humor. Por isso, Omelogor, a personagem do blog, diz aos homens “estou do seu lado”. Quero que as pessoas se divirtam, enquanto refletem sobre temas difíceis.
O que te levou a investigar a pornografia?
Comecei a refletir sobre o tema na época do Me Too. Acompanhando a cobertura, encontrei jovens com opiniões estranhas. Era um tipo de desconhecimento do corpo das mulheres, em que eles diziam coisas como: “Homens têm necessidades: o que vocês querem da gente?”. Isso me levou a pensar sobre como aprendemos sobre sexo. Quem está ensinando nossas crianças e adolescentes? A pornografia é uma grande indústria, em especial o pornô moderno, repleto de violência. É muito diferente dos anos 70. Os garotos assistem e acham tudo normal. Parte do processo de escrever este livro foi perguntar a algumas pessoas como elas aprenderam sobre sexo.
Exatamente como Omelogor faz?
Sim. Numa conversa que tive com uma mulher, disse a ela sobre como a pornografia pode ser horrível, com homens puxando o cabelo das parceiras, e ela me falou: “Oh, mas eu gosto que puxem meu cabelo”. Isso me fez pensar sobre o que as garotas estão aprendendo com a pornografia. Minha teoria é de que as meninas entendem que seu papel é satisfazer os homens. Não se trata de ter seu próprio prazer. Se eles querem bater em você, puxar seu cabelo, é assim que deve ser. Não estou dizendo que as pessoas não podem gostar de seja lá o que for. Acho que deveríamos ter conversas abertas e honestas sobre pornografia, porque as pessoas sempre vão assistir. A curiosidade sobre sexo é natural, mas como isso pode ser usado para satisfazer a si mesma? Para mim, essa é uma questão importante para o feminismo. Se ensinarmos os garotos desde cedo que o sexo não deve ser violento, que deve proporcionar prazer às pessoas envolvidas, que o corpo das mulheres pertence a elas… Se isso ganhar uma escala e se tornar um movimento social, acredito que os índices de assédio e ataque às mulheres vão cair, porque estaremos criando uma geração de homens que pensa diferente.
Você vê contradições no movimento Me Too hoje?
É interessante como o movimento Me Too parece ter morrido. Não gosto de como foi feita a cobertura de mídia. As mulheres não tinham nenhuma diligência sobre as coisas, e a imprensa meio que assumia a posição delas… Um exemplo: imagine que uma mulher vai ao quarto de hotel de um homem apenas para tomar um copo d’água, e é atacada. Agora pense que ela vai a esse quarto atraída por ele. Querendo, sei lá, flertar para ver o que acontece. E então as coisas tomam um caminho que ela não gostaria. A segunda versão não transforma a mulher em uma criança. Ela a torna agente dos fatos. E isso também nos mostra que o assédio é algo complexo. Não se trata apenas de “estava passando e ele me agarrou”. Podem ser pessoas com quem você se preocupa, considerou fazer sexo, e talvez tenha desistido repentinamente. Mas, de verdade? Não penso muito sobre o Me Too.
Quais aspectos do feminismo te interessam hoje?
Cada vez mais me importo com o corpo das mulheres. Estou interessada em como a saúde feminina não tem o suporte nem o reconhecimento que deveriam. Me dei conta disso ao ficar mais velha. Entrei na perimenopausa e, lendo a respeito dela, fiquei chocada sobre o quão pouco se sabe e o quanto os médicos fazem experiências com hormônios. Nos Estados Unidos, as mulheres têm à disposição uma enorme indústria de consultas on-line para a menopausa porque muitas não recebem os cuidados de seu médico habitual. Ainda que tenham mais acesso hoje, por que a medicina tradicional não trata do tema? Aparentemente, neste país [EUA], é mais provável obter financiamento se as pesquisas forem sobre assuntos que não dizem respeito à saúde das mulheres.
Você leu De quatro, de Miranda July? O que pensa sobre o hype em torno dessa pauta?
Comecei a ler no fim de julho… Acho bom [o hype]. As mulheres foram socializadas para falar sobre questões femininas em segredo, como se fosse uma vergonha. É importante tratar disso com honestidade. Eu costumava não mencionar essa temática porque, por muito tempo, ela foi usada para insultar e inferiorizar. Na época em que Hillary Clinton concorreu à presidência, por exemplo, uma pessoa me disse: “E se ela estiver de TPM e fizer alguma coisa com as armas nucleares?”. Lembro de pensar: “Bem, homens não têm tensão pré-menstrual, mas quase destruíram o planeta. Então, acho que não devemos nos preocupar com a TPM da Hillary”.
‘A saúde feminina não tem o suporte que deveria. Me dei conta disso ao ficar mais velha’
Precisamos abordar essas dúvidas para ajudar outras mulheres, especialmente as mais jovens. Costumo perguntar: “Como você se sente antes de ficar menstruada?”. Me impressiona a quantidade de pessoas que nem sequer sabem que podem aliviar os sintomas desse período. Tratamos tantos tipos de câncer, fazemos cirurgias no cérebro, no coração e não conseguimos ajudar uma mulher com desequilíbrio hormonal? Mas, mais que a perimenopausa, há uma ideia na cultura pop hoje de que as mulheres podem se “redescobrir” se relacionando com homens mais jovens.
Tenho amigas que estão colocando em prática!
Sério? No meu livro, a personagem não se impressiona muito com a performance do novinho [risos]. Acho que as mulheres têm de se relacionar com quem quiserem, no entanto me perturba a ideia de que ficar com um homem mais novo envolve um tipo de submissão. É o que acontece com Nicole Kidman naquele filme, Babygirl. Há misoginia nisso. Adoraria que a personagem se descobrisse sem estar submissa. Por que precisamos colocar uma mulher poderosa em posição de inferioridade? Há uma sugestão de que, ao se submeter, ela se torna mais autêntica. Isso demonstra como ainda nos sentimos desconfortáveis com mulheres em posições de poder.
Sobre quais tabus você não falava e passou a falar?
Você fala da minha vida pessoal ou das personagens?
Bem, você disse que todas as personagens são você, então ambos.
Verdade. Provavelmente o que mencionei sobre a saúde feminina, em especial os desequilíbrios hormonais, porque, de novo, pensava que tratar disso era uma maneira de estigmatizar as mulheres. Preferia focar em como podemos fazer todas as mesmas coisas que os homens. Agora é diferente. Mas há poucos temas que considero tabu. Sou o tipo de pessoa que sempre conversou sobre tudo.
No livro, você critica a maneira como progressistas tratam, por exemplo, a personagem Omelogor, quando ela fala sobre o assassinato de seu tio por muçulmanos. A branquitude progressista simplifica essas questões?
Há um tipo de progressista norte-americano que acredita ser autoridade em como tratar injustiças. Mas você não pode falar sobre o que experimentei, reivindicar que sabe mais do que eu e ainda dizer como devo me expressar. Omelogor vai para os Estados Unidos em busca de algo melhor, pois se envolveu por vontade própria em corrupção na Nigéria.
De certa forma, é uma maneira de ela se “limpar”, pois acredita que os Estados unidos têm ideais mais elevados. Ela se decepciona porque é nigeriana, sua melhor amiga é muçulmana, mas seu amado tio foi morto numa revolta islâmica. Quando ela fala sobre essa tragédia na universidade, para os progressistas, ela está usando seu trauma como arma [contra os muçulmanos]. É quase como se essas pessoas não tivessem compaixão. Se o que você diz não se encaixa na maneira de falar sobre alguns temas, a compaixão desaparece.
O que você pensa da abordagem de progressistas sobre temas como raça, imigração?
Com frequência, pessoas brancas liberais são apresentadas como sinônimo de bondade, mas isso não quer dizer que não podem estar erradas. Me parece também que alguns liberais estão sempre se desculpando e sentindo pena das minorias, que não estão sentadas em casa com pena de si mesmas. Acredito que o mais importante é ouvir quem sofre as injustiças.
Você disse que em sua primeira vinda ao Brasil, em 2008, surpreendeu-se negativamente com a falta de pessoas negras nos lugares que frequentou. Essa impressão mudou em sua visita de 2022?
Bem, encontrei mais pessoas pretas. Gosto muito do Brasil, pois me sinto familiarizada com a cultura. Adoraria falar português para entender mais. Voltei depois para umas férias, mas não participei de eventos públicos. Minha filha ama o Brasil. No livro, Chiamaka fica chocada quando vai ao Rio e São Paulo e se dá conta de que negros são a maioria. Mas há algo que parte meu coração, pois não consigo imaginar quão doloroso é ser invisível em seu próprio país.
‘Pergunte com quem se parecem os brasileiros, e a resposta nunca é uma pessoa negra’
Conversei com uma pessoa liberal brasileira bem intencionada, que não era negra, e senti uma certa ansiedade em afirmar que isso está mudando, que as coisas estão melhores. Não sei se isso é verdade. Acho que ainda levará muito tempo e será necessário um esforço político, público e privado, para dar à população negra brasileira o que lhes é devido: visibilidade e inclusão total. O Brasil é muito popular no mundo, mas pergunte com quem se parecem os brasileiros, e a resposta nunca é uma pessoa negra.
A contagem dos sonhos retoma o tema da corrupção na Nigéria. Acha que há grande diferença nos Estados Unidos?
Outro dia me perguntaram se pensava em permanecer nos Estados Unidos com a vitória de Trump, e eu disse: “Bem, agora não há nenhuma diferença entre os dois países”. Não vejo porque tirar meus filhos daqui. Francamente, o que está acontecendo é mais perturbador e pior nos Estados Unidos, pois ele se apresenta como um farol para a democracia.
Na Nigéria, nunca dissemos nada parecido. Tivemos muitos anos de ditadura militar, o que, de certa maneira, torna mais compreensível a transição para a democracia vir acompanhada de problemas. Mas os Estados Unidos fazem isso de uma forma tão imprudente… Em pouco mais de um mês na presidência, Trump tomou diversas decisões para beneficiar interesses corporativos. Além disso, há muitas contradições nessa administração, um governo populista entre aspas, que ignora as necessidades das pessoas que o elegeram. Honestamente, é como qualquer governo africano que coloca seus amigos no poder e não precisa explicar nada a ninguém. A Nigéria não seria tão imprudente.
Qual sua “contagem dos sonhos” hoje?
Às vezes, me pego imaginando como teria sido minha vida se não tivesse abandonado a faculdade de medicina na Nigéria e me formado médica. Hoje, meus sonhos estão mais voltados ao futuro. Imagino como será a vida da minha filha — que, aos nove anos, já tem opiniões muito fortes —, assim como a dos meus dois bebês de dez meses. Sempre fui uma sonhadora. Uma pessoa mais prática que Chiamaka, minha personagem, mas que também sonha muito.
Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025. Com o título “A hora da estrela”
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