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A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A linguista argentina Marina Berri (Alejandra Lopez)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura,

Fantasmas da Rússia

Marina Berri fala de como seu fascínio pelo país resultou numa obra com facetas pouco conhecidas da língua e da cultura russas

14jun2025

Novo livro da linguista argentina Marina Berri, Alfabeto russo: cenas de língua e cultura (Fósforo, tradução de Marina Waquil) acaba de sair no Brasil com a árdua tarefa de trazer ao leitor uma visão genuína de vários aspectos da cultura russa observados por uma autora que passou um pouco mais de dois meses no país de Vladimir Putin e só começou a se dedicar ao russo em 2009, aos 27 anos.

Depois de publicar seu Diccionario de ruso (inédito em português), espécie de diário de aprendizagem do idioma, na nova obra, Berri parte de vocábulos iniciados com as 33 letras do alfabeto russo e neles pincela, em um texto altamente híbrido, suas experiências de quem vive imersa em uma Rússia quase imaginária. Cada letra originou dois verbetes: um de uma palavra com inicial minúscula e outro com nomes cuja primeira letra se escreve em maiúscula, como o do bairro moscovita Arbat. O resultado é um livro original, que apresenta facetas pouco conhecidas da língua e da cultura do país enquanto Berri mescla aspectos de sua vida privada, como os filhos que aprendem russo no jardim de infância.  

Marina Berri lê um livro infantojuvenil em russo com os filhos Milo e Gabriel, que estudam o idioma na escola, em Buenos Aires (Acervo pessoal)

Nesta entrevista, a autora que participa d’A Feira do Livro no sábado (14), numa mesa que acontece às 14h15 no Auditório Armando Nogueira, no Museu do Futebol, fala do seu fascínio pela Rússia, da migração de russos para a Argentina depois da guerra com a Ucrânia e da crescente influência desse povo na cultura local. Ela também conta como escreveu Alfabeto russo, que venceu o Prêmio Latinoamérica Independiente. 

Você começou a escrever Alfabeto russo quando seu filho Milo fez cinco anos. Como foi essa escrita?
Escrevi o livro em duas partes e comecei mais ou menos em outubro de 2023. Meu livro anterior, Diccionario de ruso, tinha textos bem curtos e palavras que me chamavam a atenção e que eu não entendia, as explicações que me davam, erros que eu cometia. Então, uma revista me pediu alguns vocábulos que sobraram do livro anterior, mas o que eu tinha eram essas anotações sobre o alfabeto russo e foi por aí que comecei. Até janeiro [de 2023], escrevi todos os verbetes de letras minúsculas. Mas, depois, encontrei a inscrição ao Prêmio Latinoamérica Independiente, que incluía ensaio, crônica e gênero híbrido — por isso me parecia ideal para este livro —, e um amigo teve a ideia brilhante e simples de incluir as letras maiúsculas, usadas principalmente para nomes próprios e abreviaturas. Daí tive que correr, porque o concurso se encerrava em maio. Entreguei na última hora e para isso tive que escrever três verbetes por semana. Acho que não me saí tão mal!

Não dá para sentir que escreveu com tanta pressa, o tom é de uma vida de estudos de russística. Além disso você tem dois filhos, como menciona na obra…
Acho que é uma questão de disciplina e de encontrar um jeito de arranjar tempo para isso, aconteça o que acontecer. Eu preciso escrever um tempinho — não tanto, meia hora, 15 minutos às vezes — todos os dias e tenho um parceiro que me ajuda muito nisso. Não importa se são só algumas anotações ou se é um projeto inteiro, é um trabalho diário.

Eu devo muito à russística, inclusive o meu parceiro, porque ele estudava russo antes de me conhecer, e nos conhecemos por meio de uma amiga russa em comum. Acho que também usei o livro para passar um tempo com a minha família, com as crianças — elas também estão no meio das nossas conversas em russo, assistindo a desenhos animados enquanto escrevo, e foi daí que saiu o livro.

‘Escrevi de um lugar de amor pela cultura russa, mas sem ignorar as sombras’

Você também menciona que seus filhos vão a um jardim de infância russo em Buenos Aires. Como tomou essa decisão de mudança de paradigma?
O Milo, que agora tem seis anos e meio e está na primeira série, e o Gabriel, com três anos e meio, sempre frequentaram por meio período um jardim de infância argentino comum e, à tarde, um russo. Quando a guerra [entre Rússia e Ucrânia] estourou, e muitos russos começaram a vir para cá para ter filhos e adquirir a cidadania argentina por meio do jus soli [“direito de solo”, em latim, é o princípio jurídico que dá cidadania a quem nasce em determinado país, independentemente da nacionalidade dos pais]. Chegaram a abrir três jardins de infância russos por aqui. Agora temos só um. Como o Milo agora já vai para a escola, que tem a jornada um pouco mais longa, vai ao jardim russo uma só vez por semana. Lá ele faz aulas de arte com uma professora russa incrível, que explica mitos gregos, ensina técnicas etc., além de aulas de leitura. Ele já sabe ler e escrever em russo e agora está se debatendo com a [escrita] cursiva. Outro dia, alguém me disse: “Parece até que nasceu na Rússia!”. O Gabriel começou ainda mais novo. No verão os dois também vão para lá em tempo integral, algo como um acampamento de férias. Eles adoram falar russo e brincam na banheira com seus bonequinhos [falando] em russo. 

Milo, filho mais velho de Marina Berri escrevendo russo (Acervo pessoal)

Mas por que não os coloquei numa escola bilíngue em inglês? Bem, a russa me interessa muito mais. A Rússia, você sabe, tem uma outra forma de pensar, radical. E, além disso, é mais real porque os professores são russos, os amigos deles são russos… Os meus filhos também se dão conta das diferenças culturais. Um deles disse: “Na escola argentina, todo mundo sopra as velas do bolo de aniversário, mas na russa só um assopra”. Mais tarde acho que ele terá tempo para o inglês. 

Então, além da professora Evguênia, de quem fala no livro, você tem outros dois professores particulares em casa.
Outro dia, meu filho foi a uma aula na qual eles fazem bonequinhos e me falou de uma “foca”. Eu disse, em russo, tyulen, e ele remendou: “Mas não era assim que a gente chamava”. Então eu perguntei se era nerpa, e ele disse que não, que era morskói kótik, ou seja, “gatinho do mar”. Eu também gosto disso, de inverter um pouco o poder mãe-filho. Faz bem, aumenta a autoestima, ele se sente seguro e sabe que sua pronúncia é melhor que a minha, assim como seu conhecimento de sílabas tônicas, que eu não sei. É divertido. 

Em Alfabeto russo você fala brevemente do conflito em curso entre Rússia e Ucrânia. Isso afetou de alguma forma sua escrita e a recepção do livro? 
Afetou foi a mim. Fiquei triste. Tenho amigos russos aqui que estão muito mal, porque antes dessa enorme imigração que veio com a guerra havia pouquíssimos russos na Argentina, e todos eram amigos. Naquela época, eu tinha um amigo cuja mãe morava no sul da Ucrânia. E, pessoalmente, sempre quis voltar à Rússia para passar mais tempo lá. Só estive no país duas vezes: a primeira quando tirei férias por três semanas e outra quando fui a Moscou para estudar por um mês e meio em um curso intensivo. 

Também queria muito que meu filho pudesse aprender russo lá, mas isso também mudou. Agora, aqui na Argentina, pode-se comer qualquer tipo de comida russa, existe uma livraria russa, cafés, um cineclube, uma infinidade de coisas. Esse livro é escrito a partir de um lugar de fascínio, de amor pela cultura russa, mas não ignora todas as sombras da Rússia. É um livro que não cede à cultura do cancelamento tão sentida por muitos de nós que trabalhamos com o russo na Argentina. 

Seu livro tem um teor bastante requintado, no sentido de ser voltado a pessoas com algum conhecimento da língua, cultura e literatura russas. Mas ele também instiga a curiosidade e a investigação desses assuntos em leigos. Em ambos os casos, parece trazer uma “cultura russa posta em prática” para estrangeiros.  
Isso que você está dizendo existe, a possibilidade de dar a nossa perspectiva latino-americana, que é diferente. Esse livro só poderia ter sido escrito por alguém que não é russo. Acho que é uma perspectiva que agrega valor. Outro dia, uma russa apresentou meu livro. Fiquei interessada porque era a primeira leitora russa e, felizmente, tudo correu muito bem. 

Na Argentina, aprender russo é bastante complicado, não dá para estudar o idioma na universidade, então é preciso contratar um professor particular ou ir para uma escola de línguas. É por isso que toda a história do livro, de certa maneira, é a história de uma vida. Quer dizer, eu o escrevi rápido, mas tem uma vida inteira de estudos por trás. Eu estudei russo com professores particulares por muito tempo. Quando estava na universidade, nas matérias de estudos eslavos, só se falava e se escrevia em espanhol, não tinha aulas de línguas. Não tive a possibilidade de viajar para o exterior na época, e aprendi meu russo todo aqui. Depois da estadia em Moscou, escrevi um romance de fantasia [Fantasmas, 2019, sem edição em português] baseado em algumas aulas que tive na Rússia, e que também ganhou um prêmio na Argentina. 

Acabei de chegar do Equador, onde um homem me deu seus livros, suas traduções bilingues de Púchkin e muitas outras coisas. Tem vários desses casos na América Latina de pessoas trabalhando ou traduzindo, fazendo coisas interessantes, mas desconectadas de todo o resto. É um momento para nos unirmos e nos conhecermos.

A Rússia não é bem um cânone pop, mas você traz escolhas inusitadas até para quem conhece um pouco do país: o portal cultural Arzamás, a figura folclórica de Koschêi, o Imortal, a novela Djamiliá, o fenômeno dos loucos por Cristo. Pode contar um pouco sobre isso?
Estudei russo um pouco fora da academia, e minha relação com a língua é remota, então tem muito a ver com esses portais, esses projetos russos que me fascinam, como o Arzamás. Este ano, dei de presente para o Milo a assinatura desse portal, porque ele gosta muito. Há um podcast em russo chamado Khrum ili skazotchni detektiv, com histórias de detetives, que ele ouve todas as noites. Também consulto sempre o Arzamás e, quando tinha que montar o livro e a estrutura do alfabeto, às vezes tinha letras difíceis e queria buscar referências menos óbvias para o leitor argentino. 

Aqui existe um fascínio enorme pela cultura e literatura russas, e as pessoas sempre leem Dostoiévski e talvez Tchékhov, mas não saem muito disso. Então, quando escrevi as letras minúsculas do livro quis evitar Tolstói, Dostoiévski… Porém, quando vieram as letras maiúsculas, eu percebi que eles tinham que estar lá, mas tentei encontrar uma maneira menos óbvia para isso. Foi, por exemplo, o caso de Dostoiévski, em que trabalhei com Noites brancas e suas ilustrações, um tema um pouco mais lateral. Não estou dizendo que são questões rebuscadas, porque para muitos russos elas são óbvias, e foi por isso que escolhi, por exemplo, o desenho animado Doze meses (1980), que para os russos é superclássico, mas ninguém conhece aqui. Tentei escolher referências a partir dessa perspectiva e construir um mundo do qual muitos outros podem ser extraídos.

‘Sempre fiz da Rússia um objeto permanente de desejo, só que à distância’

Tem essa espécie de análise semiótica que vocês faz de pinturas, fotografias, desenhos animados, crônicas cinematográficas que me lembra a obra de Maria Stepánova, vencedora do Booker International Prize por Em memória da memória (Poente, 2024). Quais foram suas inspirações para um formato tão criativo?
Acho que isso vem de vários lugares. Primeiro, é escrever todos os dias e escrever um diário. Eu escrevo ficção, mas quando não consigo, ainda escrevo todos os dias, mesmo que às vezes tenha dias realmente difíceis. Por outro lado, também sou linguista e há muito trabalho com as palavras, pesquisando coisas e observando como as palavras funcionavam. É claro que o tom [de Alfabeto russo] não é o de um artigo científico, mas questões científicas aparecem, como aquelas tabelinhas de alfabetos russos que não existem no espanhol. Quando eu estudava com russos pelo Skype, em uma troca de aulas de russo por aulas de espanhol, eles me recomendavam desenhos animados deles e me perguntavam o que tínhamos em espanhol. Mas nós crescemos vendo desenhos dos Estados Unidos! Isso também aconteceu com as tabelinhas do alfabeto: na Rússia eles têm o alfabeto de massinha, o alfabeto de Tolstói, o alfabeto das profissões de Brodsky… É um gênero! 

Na Argentina temos apenas uns desenhinhos miseráveis ​​com letras consideradas desimportantes. Enquanto o Milo aprendia a escrever em espanhol, eu pesquisava com ele, imprimia as tabelinhas, então achei esse alfabeto de Tolstói, que é bastante híbrido, e que me trouxe essa ideia. Nesse livro misturei a visão acadêmica com uma ideia meio de mandar tudo às favas com o alfabeto, esse gênero livre que acabou se tornando tão híbrido. Acho que essas são as minhas fontes de inspiração, além de escrever sobre coisas que me encantam: embalagens de doces, filmes, desenhos animados e, obviamente, a literatura.

Isso me faz pensar na sua experiência na Rússia ter sido tão curta…
Eu sempre fiz da Rússia um objeto permanente de desejo. Mas penso tanto sobre o país, que vivo lá, à distância. Agora que a presença na Rússia é muito complicada devido à guerra, ela virou um fantasma: essas Rússias todas, existindo ou não, começam a se assemelhar às do passado. Acho que essa impossibilidade de ir à Rússia no momento é o que gera esses mecanismos de compensação dos desejos.

Você vem ao Brasil para A Feira do Livro. Será sua primeira vez aqui?
No ano passado, nós fomos a Florianópolis com as crianças, e meu filho Milo disse que quer morar no Brasil. Gostei muito, mas nunca fui a São Paulo ou ao Rio, então estou ansiosa. Depois d’A Feira do Livro em São Paulo, irei ao Rio também, para a Bienal do Livro. Quero muito ver a edição brasileira de Alfabeto russo, as ilustrações [de Elisa Carareto] ficaram lindas. Espero ver como o livro se sairá no Brasil, onde há muito mais pessoas se dedicando ao russo, que falam russo, têm uma estrutura acadêmica muito mais ampla do que a nossa. É um público diferente, um desafio diferente. Na Argentina, acho que o público é composto por gente que gosta de Tolstói e Dostoiévski, então me parece que no Brasil haverá um tipo de leitor mais sofisticado. 

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Marina Darmaros

É Ph.D. em literatura e cultura russa pela USP. Traduziu Dostoiévski e o existencialismo, de Víktor Eroféiev (Kalinka).