Biografia, Mulheres que correm o mundo,
Diário da invernagem
Trechos inéditos dos registros de Tamara Klink durante o inverno que passou ‘presa em um barco’
01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91Em 2021, aos 24 anos, Tamara Klink se tornou a mais jovem brasileira a fazer a travessia do Atlântico sozinha, experiência narrada em Nós: o Atlântico em solitário (Companhia das Letras, 2023). Dois anos depois, embarcou novamente. Desta vez no veleiro Sardinha 2, para quebrar outro recorde: se tornar a primeira mulher registrada a fazer a invernagem no Ártico. Para leigos, explica: “passar o inverno todo em um barco presa no Ártico”.
Nos oito meses que passou isolada no veleiro de dez metros de comprimento, Tamara escreveu suas experiências em um diário, hábito que começou quando criança, em uma viagem em família com o pai, o navegador Amyr Klink. “Minha mãe mandou a gente escrever nossos próprios diários, para podermos resgatar essas memórias mais tarde”, conta. “É uma maneira de hackear as memórias, que acessamos com palavras. É um lugar ativo, de quem controla a narrativa.”
Foi também com essa escrita que descobriu sua subjetividade. “O diário me permitiu reconhecer que, mesmo com oito anos, a minha história existia. E eu via essa história existindo nos diários nas minhas prateleiras, no meio de livros de pessoas admiráveis”, afirma. “Me deu mais autoconfiança e me permitiu me considerar importante em uma casa onde a figura paterna tomava a atenção. Antes, parecia que tudo que eu fizesse era um nada perto de qualquer coisa que meu pai fizesse. […] Foi um processo pessoal, e eu continuei fazendo diário.”
‘Escrever é quase uma maneira de hackear as memórias. É um lugar de quem controla a narrativa’
Os livros de viagens também inspiraram Tamara a navegar solo. Entre as leituras, cita Damien autour du monde (Damien ao redor do mundo, em tradução livre), do francês Gérard Janichon, O longo caminho, de Bernard Moitessier, e Trilhas: a incrível jornada de uma mulher pelo deserto australiano, de Robyn Davidson. “Ela fala sobre temas que não tinha lido até então, como esse desencorajamento sistemático masculino. Desencorajamento sistemático, ponto.” No Ártico, conta ter relido a Odisseia, em que encontrou “pequenos arquétipos de acontecimentos que a gente vive nos dias de hoje” — e não só no mar.
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Suas próprias histórias de viagem eram narradas em e-mails para amigos e familiares, também publicados em suas redes sociais. Já o diário pessoal — cujos trechos inéditos estão a seguir —, ela diz ser uma conversa consigo mesma, que ora era realizada diariamente, ora passava semanas sem acontecer. “Às vezes o diário era meu amigo, às vezes, inimigo. Tem uma espécie de confronto.”
20.03.2023
É um tanto assustador pensar que faltam 2 meses para a partida e o barco está cada vez mais “pelado”.
Bolo de cenoura, espatifado, quebrado e mole no vidro do forno.
20.08.2023
Vendo esse gelo, penso que todo o esforço de um ano valeu a pena. Por mais duro que tenha sido viver tudo que vivemos, ficou para trás, e eu me sinto muito aliviada e feliz de saber que tantas vezes eu tive boas razões de desistir do plano, de deixar pra depois, de diminuir a ambição, e várias vezes essa possibilidade parecia ser a única, mas segui. Essa montanha de água congelada na minha frente, o primeiro objeto flutuante que vejo em doze dias de mar, e o berro que eu dei que só foi ouvido por estas minhas duas orelhas, só poderiam ser confirmações de que era sim possível. E quando eu penso em tantos acontecimentos e pessoas a quem eu sou grata, sem o que ou quem isso não seria possível, parece evidente que as pessoas mais importantes foram os autores das histórias que li, que ouvi: porque foram essas histórias que plantaram em mim o desejo e a vontade, e essa vontade é o maior recurso que eu tenho. Tempo, conhecimento, experiência, objetos, dinheiro, contatos, autorizações, todas essas coisas me faltaram em algum momento. Apoio, carinho, em algum momento eu também não encontrei. Mas vontade nunca me faltou. Nunca. Mudei a rota mil vezes, incluí e renunciei escalas, me dobrei, abaixei a cabeça e deixei que me quebrassem, mas nunca perdi a vontade.
Nessa viagem não escrevi muito nesse diário em papel. (Será que me arrependo??? Não sei ainda, mas bem, não muda os fatos!). Fiquei com cisma de que se pegasse o diário iria enjoar. Então, pelo celular — que coisa, o celular é bem pior! — mantive um diário por correspondência com a Maria — muito estranho escrever um e-mail sabendo que será publicado. Com certeza me trava muito. Preciso me libertar mais de estar escrevendo para o Instagram, e escrever mesmo para a Maria.
Nossas trocas “pessoais” são bem mais legais. E também mantenho um diário em inglês, no tracking, para os amigos da França e do Brasil poderem ler e saber o que acontecia por trás do deslocamento do meu pontinho… E também mandava e-mails para Henrique, Rogério e Clement com updates. É muita coisa já! Mas percebi que nesse diário aqui eu converso comigo, e várias coisas vêm à tona, coisas que não viriam conversando com outras pessoas… Esse diário é o mais poderoso! Tem revelações… Quando eu estou “travada” com alguma coisa, eu venho aqui e plim! Logo descubro o que é e consigo destravar! Mágico mesmo. Agora estamos enfim chegando — até que foi rápido no fim das contas! Doze dias! Os mais longos foram os últimos! Por falta de vento e também por ansiedade de talvez ver gelo, e chegar logo! Mas eu poderia continuar por ainda muito mais! Achei que não tinha quebrado coisa alguma, mas acabei de ver que tem uma coulisseau faltando no gv [carrinho do trilho da vela mestra]. Bom, dá para dizer que “tende a zero”, porque é algo bem mínimo para o tanto que andamos!
Nunca faltaram boas razões para desistir. Nunca.
19.08.23 TEEEERRA!!
Saí para procurar icebergs e encontrei a terra! Até tinha esquecido que ia vê-la!!!!
Já tinha me surpreendido de ouvir vozes no rádio ontem (nem sabia se ainda estava funcionando) e também levei um susto ao ver um barquinho no rio! (Eu tinha até desligado a tela da carta do painel pra deixar só o radar. Já faz tanto tempo que eu não vejo outros barcos (desde o dia da partida da Irlanda). Já tinha esquecido que poderiam aparecer! Vi terra. Ela mesmo. Precisei recolocar a carta na tela de navegação para confirmar. Parecia nuvem, mas colada no mar, um céu ao contrário. Não podia ser outra coisa, mas eu custava a acreditar. Já??? Antes dos gelos??? Eram sete da manhã, considerei o dia como começado. Agora só durmo quando tiver atracado! Comecei a fazer panquecas de grão de bico (estão melhores a cada dia!). Comecei a fazer três dias atrás e hoje ficaram com a textura perfeita. Receita: 1 xícara de farinha de grão de bico, 1/4 xícara de farinha branca; 1 colher de chá de bicarbonato de sódio, 2 colheres de chá de suco de limão de garrafinha (é o que tem); pitada de sal; 2 colheres de sopa de açúcar — completar com água até dar a consistência de panqueca, misturar tudo; frigideira untada e já é! Mandei um e-mail para cada pessoa próxima (Rogério, Cheche, familiares, Maria + Cecília, Henrique (está crescendo demais esse círculo próximo, hein?) e me pus a tirar fotos e escrever esse diário aqui. Estou vendo meu primeiro iceberg em solitário na minha frente agoraaa!!! Aproveito para celebrar o alarme do radar! Está aparecendo. A 8 milhas, mas bem visível!!!
30.12.23
Penúltimo dia do ano e fui até a praia a pé. Andei ao longo do perímetro norte do fiorde, mas não achei nenhuma passagem “firme” entre a placa e a terra. Muitos floes [pequenos icebergs ou pedaços de gelo do tamanho de uma mesa] em água funda! Fui medir a profundidade e o loof afundou até acertar a parte que eu segurava!!!
Não sei como os inuítes fazem…
Até fui arriscar saltar os floes, mas estavam bem escorregadios e instáveis. Hoje só pisei em terra, mas a exploração que durou mais de uma hora já foi interessante. Mudei o look e troquei os casacos e calça pretos pelos vermelhos. E fez uma beeeeela diferença! Não senti frio! Aliás, quando eu sai do barco, foi só pra pegar neve pra fábrica [de água], mas estava tão agradável o tempo que fui andando até mais longe. E foi bom! Não levei nem máquina fotográfica, estou querendo aposentá-la. Me sinto muito “vigiada” com a máquina e sem fico mais livre. Aliás, muito estranho, muito difícil sorrir. Parece de mentira, é como um símbolo, uma convenção! Muitas pegadas de raposa.
Matéria publicada na edição impressa #91 em março de 2025. Com o título “Diário da invernagem”
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