Literatura,

Ruth Guimarães, afro-caipira

Publicação de contos inéditos marca o centenário de uma das principais autoras brasileiras

01nov2020 | Edição #39 nov.2020

Neste ano, em junho, completaram-se cem anos de nascimento de Ruth Guimarães (1920-2014), uma das principais vozes negras da literatura brasileira do século passado, mas ainda pouco conhecida. Por isso, tem especial significado que Contos negros e Contos índios estejam sendo publicados agora pela Faro Editorial. 

Essa é a primeira edição de Contos negros, obra detentora da exemplar erudição de Ruth e que foi terminada na década de 1980, mas se mantinha inédita por motivos pessoais. O livro tem o jeitão negro-caipira da autora, afeita a recolher e contar “causos”. São os primos descalços dos contos eruditos, acrescentando a isso a sua condição pouco falada de poeta, o que amplia o encanto do conteúdo dessas histórias, que têm como marca a simplicidade e a mais solta imaginação.

Ela nasceu em Cachoeira Paulista, em 1920, ano em que o Brasil inteiro estava se preparando para os festejos do centenário da independência, obrigando-se a reflexões sobre a identidade do país, sobretudo a urgência de se “abrasileirar”, aceitando-se como branco, índio, negro. Essas questões determinariam o rumo da futura romancista, pesquisadora de cultura popular, folclorista e contista, que privilegiou em seus enredos a presença de gente miúda.

Contos negros tem como editor Joaquim Maria Botelho, filho da escritora, e é produto do esforço para mostrar o Brasil em sua face de simplicidade e mestiçagem cultural negra, iniciada por Ruth com seu primeiro romance, Água funda, de 1946. Tem-se que, diante desse livro, prestar tributo a Mário de Andrade, esse “bardo mestiço”, como ele se afirmou em um de seus mais conhecidos poemas, “A meditação sobre o Tietê”. 

Conforme relata José Luiz Pasin em seu folheto “Ruth Guimarães: bio-bibliografia”, foi Mário de Andrade que “a iniciou nos estudos de folclore e literatura popular”. É questão de justiça assinalar a importância de Mário na trajetória de Ruth. Mário de Andrade, “bardo mestiço”, soprando rumos à afro-caipira Ruth Guimarães.

No texto “Dois dedos de prosa sobre os contos”, que antecede as histórias, Ruth fala da intenção do livro: “Disseram-me que eu devia explicar, rapidamente, num bate-papo ameno, o critério de seleção destes contos. Em primeiro lugar, não houve preocupação sentimental, nem pedagógica. Aliás, o primeiro contato, completamente irracional, com a matéria foi ajustar o material, recolhendo-o despreocupada na fonte, isto é, entre o ‘povo’”. Ruth Guimarães é limpidamente povo, a despeito de toda a erudição que adquiriu com sua formação universitária e das circunstâncias do meio culto em que viveu.

São sintomáticas suas várias traduções de romances e contos, notando-se preferência por Dostoiévski, um autor que se voltou sobretudo para personagens que carregavam atavicamente a miserabilidade do povo russo, sob a opressão dos poderosos daquele tempo. Traduzindo: pode-se supor que nesse mister ela visse a semelhança com o mundo da gente miúda aqui existente, foco principal de sua produção de escritora. 

Em 1980, década em que reuniu o material coletado na região do Vale do Paraíba para Contos negros, Ruth Guimarães tinha sessenta anos, sendo dona de uma bagagem  admirável na área da etnografia e do folclore.

Minicurso

Contos negros pode ser visto como um minicurso sobre mestiçagem cultural; sobre o que é o Brasil, que, com sua mistura racial (hoje 54% negro, somando-se gente preta ou mesclada), comporta, sem muitas vezes perceber, um país mestiço também de alma, o que aponta o absurdo da presença do racismo em nosso meio. A prosa gostosa de Ruth espalha sobre o negro observações que só poderiam provir dela: “O Vale é todo tisnado das características rústicas da raça: rostos grandes, pele trigueira curtida, grossa e lisa; lábios carnudos e sorrisos largos, de orelha a orelha; olhos grandes, parados, lustrosos, parecendo líquidos; narizes volumosos; cabelos escuros, ásperos, que vão se desenovelando na mestiçagem com o branco”. Repetindo: livro com o jeitão de Ruth. Delicia-se com ele, aprende-se muito sobre coisas jamais pensadas na relação do negro com o mundo e suas histórias por aí desde muito tempo espalhadas.

Uma curta aula — sem pretensões de se mostrar mestra — da qual escapa, para felicidade do leitor, muito do que Ruth leu, pesquisou e observou a respeito da “mestiçagem” encontrável em uma série de contos que correm de boca em boca, sobretudo em casas modestas do interior, sem se supor que se está antenado com os Irmãos Grimm, Charles Perrault, As mil e uma noites, o Corão.

No livro, Ruth adverte o leitor distraído que não se deixe enganar: ogros, gigantes, o conhecido episódio do gênio da lâmpada e a própria mitologia grega — possivelmente via islâmica — fazem incursões no populário afro. Quem já apontou isso na cultura negra no Brasil? Ler Contos negros é entrar em um imaginário que, sem esses apontamentos de Ruth antes de adentrar os contos,  espraiados também com notas após algumas histórias, seria quase impossível descobrir como de face mestiça. 

É assim em “A mãe de ouro”, com seu final cruento, no qual “um barulho estrondou  na floresta, desabaram as paredes do buraco, o patrão e os escravos foram soterrados e morreram”. É assim em “O gigante”, cuja compreensão é ampliada com uma bem erudita nota, enriquecedora para a apreciação do conto. É assim em “Pacuera-cuera!”, em que se ostenta belamente a linguagem popular colorida por Ruth. Exemplo: “A noite caminhou com pés de lã e silêncio, até bem tarde. Vizinhava a meia-noite e, então, um urro pavoroso se ouviu do fundo do mato. Os dois irmãos acordaram aterrorizados”.

Acrescente-se a seção “Cosmogonia afro-brasileira (Contos de explicar o mundo e a vida)”, que fica entre “Mitos iorubanos” e “Três contos de exemplo”, e “Os animais na mitologia afro-brasileira”, em que se torna impossível apontar qual o conto de menor interesse: “O senhor do mundo”, “A sombra do outro” e “O lagarto intrometido”. Contos negros ilumina, com luz forte, a riqueza que é a mestiçagem cultural viva no ambiente de muita gente miúda — branca, índia, negra —, a cara mais autêntica e desprezada de nosso país.

Puro encantamento

Daniel Munduruku escreve no prefácio de Contos índios: “As histórias indígenas devem ser lidas com o coração. A cabeça não consegue chegar onde os sentimentos chegam. A cabeça costuma fazer juízos de valor, o coração apenas sente porque se abre ao mistério de existir”. E é assim, com o coração, que devemos receber essas narrativas.

‘Contos negros’ ilumina a mestiçagem cultural viva no ambiente de gente miúda — branca, índia, negra —, 
a cara mais autêntica e desprezada do país

Diferentemente de Contos negros, esses Contos índios são uma proposta de adentrar um universo parcamente conhecido. A partir do século 19, várias gerações de brasileiros foram educadas com histórias sobre indígenas, sempre sob uma visão romântica, nas pegadas do “bom selvagem” de Rousseau, maravilhando poemas como a pequena epopeia “I-Juca-Pirama” e a “Canção do Tamoio”, do mestiço Gonçalves Dias; e no romance, para citar o mais famoso, O guarani, de José de Alencar, adaptado para texto de ópera, que levou o tema indígena, idealizado, aos palcos da Itália, graças ao gênio de Carlos Gomes.

Era, no entanto fácil deduzir: esse indígena tinha uma realidade inexistente. E se hoje ele aparece com alguma frequência na mídia, as mais das vezes é em situação de exploração, de sofrimento e de atos que, explícitos ou não, visam ao seu extermínio. Aproximou-se da “civilização”; ganhou o quê? Se não nos cabe, neste espaço curto e por questão de nula competência, examinar perdas e ganhos do indígena em sua terra, podemos, pelo menos, com a leitura desses Contos índios, nos inteirar de como ele impregnou a cultura brasileira, tendo como amostragem a região do médio Vale do Paraíba do Sul. É bastante. 

E cremos que não é extrapolar trazer aqui a lembrança de Terêncio (africano de Cartago, que viveu no século 2 a.C.) e seu dito famoso: “Sou um homem; tudo o que é humano me interessa”. Daí que decorra dar-se atenção, até como resgate do pouco que dão e continuam dando ao nosso indígena, à presença do humano que o marca e dignifica, do mesmo modo que marca e dignifica o homem branco, dito civilizado. 

Sabe-se de etnógrafos e estudiosos de cultura popular que se interessaram pela cultura do nosso indígena, entre eles Silvio Romero e Arthur Ramos, com trabalhos alentados. Se se quer mencionar colaborações focando a  identidade nacional, cite-se como exemplar a de Roberto Gambini: Espelho índio: a formação  da alma brasileira (2000). Todos têm, a seu modo, o mérito de lembrar que o indígena existe e que é impossível deixá-lo de lado.

Mas Contos índios é único nessa área. A pesquisadora comenta: “Nenhuma história de fonte ameríndia, ou contaminada de elementos ameríndios desta coletânea, foi tirada de livros. Os contos resultaram exclusivamente de pesquisa de campo, no Médio Vale do Paraíba do Sul, estado de São Paulo, tendo como centro e pião a cidade de Cachoeira Paulista”. E nesse esforço a informação é valiosíssima, iniciada com o pequeno texto “Antigos habitantes indígenas do médio Vale do Paraíba”, seguindo-se com “Folclore de origem ameríndia”. O livro é composto de verbetes que precedem os contos, merecendo especial leitura “Vestígios indígenas na nossa formação”. São dezessete contos, com o jeitão de narrar de Ruth e o mesmo encanto presente nos Contos negros, inseridos no mesmo  projeto editado por seu filho, Joaquim Maria Botelho.  

A pesquisadora e folclorista, afeita a recolher em livros cultura de gente miúda, afirma: “O índio, como raça, está perdido, isto é, em extinção, o que é a mesma coisa, já há tão poucos indígenas no Brasil! E esses poucos estão enfurnados pelos matos, jogados nas reservas, ou por aí, como canoeiros, raizeiros, feiticeiros e outros eiros sem importância. Se, como raça, ele vai partir, para não mais voltar, como elemento constituinte do povo brasileiro, continua vivo”. É de se apontar,  contudo, que essa era a visão que se tinha das populações indígenas quando Ruth coletou essas histórias, tanto que hoje elas ainda vicejam apesar de ações contra sua existência.

Contos índios, a despeito do título, do qual se espera mais que tudo o índio criando histórias, imaginando-as, divide o volume com uma espécie de almanaque sobre o indígena da região. E é uma delícia lê-lo tal como se apresenta em “Outras técnicas culinárias”, cujo enfoque é a içá, ou tanajura, a formiga. (Da herança de índio para o sabor nacional talvez seja essa uma das mais conhecidas.)

A série de histórias se inicia com “Os contos de Curumim”. Não cabe enumerá-los todos, mas seria uma falha não apontar “O Homem-Estrela e o urutau”, com um gostoso linguajar coloquial que é como se estivéssemos ouvindo de perto a própria Ruth contando: “Quando clareou o dia, ela olhou para o semblante do Homem-Estrela. E não gostou do que viu. Não era nada do que estava pensando. O tal que imaginara bonitão, musculoso, jovem, belo, não passava de um velhinho corcovado, tinha no corpo uns enfeites surrados e no todo um ar de cachorro sem dono, com aqueles olhos morteiros”. E o mesmo sabor de estilo tem os contos “Por que o urubu não tem casa”, “Quando a cutia quebrou a cauda” e “Macaco jurupixuna”. Mencione-se ainda talvez uma das histórias mais conhecidas, “O bode e a onça”. Boa para se fazer teatro com bicho. Ou já fizeram?

Ruth Guimarães é limpidamente povo, a despeito de toda a erudição que adquiriu com sua formação universitária e do meio culto em que viveu

Exige-se ainda que não se deixe de acrescentar à lista “A briga da onça com o tatu”. Aqui, guerreando, desfilam bichos, um batalhão deles. É a Irara-Recadeira, o Jacaré-da-Boca–Larga, o Caititu e a tribo inteira de veados corredores: o Campeiro, o Galheiro, o Bororó de pelo vermelho queimado — chamado também Copororoca e Mão-Curta —, o Branco, o Guarapu, o Negro, o Canela, o Catingueiro… Vai longe a enumeração dos bichos; lado da onça, muitos; lado do tatu, outros muitos.

Se se sentir tentado a ler mais de uma vez a beleza que é “Como nasceu a noite”, faça-o, mas não deixe de voltar ao conto “A filha da rainha Luzia”, aqui ainda não consignado. Conclui-se, afinal: Contos índios é puro encantamento. É ensinamento gostoso de ler sobre o índio habitante do médio Vale do  Paraíba do Sul. Entre tantos livros de Ruth Guimarães, mais um momento luminoso no desbravamento da alma do país — nesse caso, uma amostragem que pode ser vista como um ato de amor e respeito ao indígena brasileiro, início do que, bem ou mal, somos.

Quem escreveu esse texto

Oswaldo de Camargo

Escritor, crítico e historiador da literatura, é autor de A descoberta do frio (Ateliê Editorial).

 

Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.