Literatura,

Os melhores começos

Kafka, García Márquez e Tolstói mostram que, com ou sem happy end, uma boa história tem que começar bem

03jan2024 | Edição #77

Como Kafka n’A metamorfose, tem autor que nos toma pela mão no minuto 1 da história. Outros, como García Márquez em Cem anos de solidão, nos empurram para o meio da trama. E há os que principiam sentenciosos, como Tolstói em Anna Kariênina. Todos eles, craques, nos mantêm cativos até o ponto final. O importante, em qualquer hipótese, com ou sem happy end, é que comece bem!

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“No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.” (Gênesis)

“Começou assim.” (Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao fim da noite)

“Acabou.” (Romain Gary, La Promesse de l’aube)

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” (Franz Kafka, A metamorfose).

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou para conhecer o gelo.” (Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão).

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” (Liev Tolstói, Anna Kariênina)

Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.” (Albert Camus, O estrangeiro)

“Todos vocês conhecem essa intratável melancolia que se apossa de nós ao recordarmos os tempos felizes.” (Ernst Jünger, Sobre as falésias de mármore)

“No dia 15 de maio de 1796, o general Bonaparte entrou em Milão à frente daquele jovem exército que acabara de atravessar a ponte de Lodi e de anunciar ao mundo que após tantos séculos César e Alexandre tinham um sucessor.” (Stendhal, A cartuxa de Parma)

“Eu tinha vinte anos. E não me venham dizer que essa é a mais bela idade da vida.” (Paul Nizan, Aden, Arábia)

“Barcelona é uma cidade de 600.200 almas, e tem apenas um mictório.” (Henry de Montherlant, La petite infante de Castille)

“No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emília. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura.” (Alejandro Zambra, Bonsai)

“Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio.” (Samuel Beckett, Malone morre)

“Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável.” (André Gorz, Carta a D.)

“Muitas luas atrás, o dólar valia oitocentas e setenta liras e eu tinha trinta e dois anos. O globo, também, era mais leve dois bilhões de almas, e o bar da stazione, aonde eu tinha chegado naquela fria noite de dezembro, estava vazio. De pé, eu esperava que a única pessoa que eu conhecia na cidade viesse me encontrar. Ela estava bastante atrasada.” (Joseph Brodsky, Marca-d’água)

“Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.” (Clarice Lispector, Uma galinha)

“Deus sabe o que faz, e por isso a criança nasceu cega.” (Luiz Vilela, Deus sabe o que faz)

“A primeira coisa que eu posso dizer para vocês é que a gente morava no sexto andar de escada e que para Madame Rosa, com os quilos todos que carregava nela e somente duas pernas, aquilo era uma verdadeira fonte de vida cotidiana, apesar de todos os tormentos e aflições. Ela lembrava a gente disso toda vez que não estava se queixando de outra coisa, pois além do mais era judia. Sua saúde também não andava bem, e posso lhes dizer desde já que era uma mulher que merecia um elevador.” (Emile Ajar [Romain Gary], A vida pela frente)

“Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada.” (Philip Roth, O complexo de Portnoy)

“Eram cinco da tarde, apenas um pouquinho mais — uma ligeira flexão do ponteiro maior para a direita — quando, no dia 16 de janeiro, a Sra. Monde irrompeu, junto com uma corrente de ar gelado, na sala do comissariado de polícia.” (Georges Simenon, A fuga do Sr. Monde)

Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme

“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes.” (Vladimir Nabokov, Lolita)

“Era um homem que comia dedos de senhoras; não de senhoritas.” (Carlos Drummond de Andrade, O gerente)

“A cidade não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar.” (Rubem Fonseca, O caso de F. A.)

“Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme.” (Clarice Lispector, A maçã no escuro)

“Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis.” (Cyro dos Anjos, O amanuense Belmiro)

“No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade.” (Guimarães Rosa, Luas-de-mel)

“Outra era a vez.” (Guimarães Rosa, Os cimos)

“Posso acariciar novamente sua clavícula?” (Rubem Fonseca, Romance negro)

“Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava.” (Murilo Rubião, Bárbara)

“Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso de nossos costumes.” (Murilo Rubião, Os dragões)

“Quando, numa segunda-feira, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de-Rosa sentiu que era um homem liquidado. Entretanto não se preocupou, absorto em pentear os longos cabelos.” (Murilo Rubião, Botão-de-Rosa)

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.” (Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas)

“Robert Cohn fora campeão de boxe na categoria dos pesos-médios em Princeton. Não pensem que esse título me impressione. Mas significava muito para Cohn.” (Ernest Hemingway, O sol também se levanta)

“Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.” (Campos de Carvalho, A lua vem da Ásia)

“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido.” (Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno)

“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.” (Juan Rulfo, Pedro Páramo)

Estou em pé à janela de um casarão no sul da França enquanto a noite cai, a noite que me conduzirá à manhã mais terrível da minha vida

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário.” (Charles Dickens, Um conto de duas cidades)

“Chamem-me Ismael. Alguns anos atrás — não importa precisamente quantos — tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue.” (Herman Melville, Moby Dick)

“Esta é uma história para ser lida na cama de uma casa velha em noite chuvosa.” (John Cheever, Até parece o paraíso)

“Estou em pé à janela de um casarão no sul da França enquanto a noite cai, a noite que me conduzirá à manhã mais terrível da minha vida.” (James Baldwin, O quarto de Giovanni)

“Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo esteja na lembrança de todos e que não seja necessário dar maiores explicações sobre minha pessoa.” (Ernesto Sábato, O túnel)

“Ainda usavam calças curtas naquele ano, ainda não fumávamos, de todos os esportes preferiam o futebol e estávamos aprendendo a pegar jacaré, a pular do segundo trampolim do Terrazas, e eram travessos, imberbes, curiosos, muito ágeis, vorazes. Naquele ano, quando Cuéllar entrou no colégio Champagnat.” (Mario Vargas Llosa, Os filhotes

“Ou você abre mão de trepar com as outras ou o nosso caso está encerrado.” (Philip Roth, O teatro de Sabbath)

Quem escreveu esse texto

Humberto Werneck

Escritor, é autor de O desatino da rapaziada (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.