Literatura,
O oráculo de Cortázar
Há sessenta anos o escritor argentino lançava ‘O jogo da amarelinha’, um dos maiores romances do século 20
17out2023 | Edição #75Há sessenta anos, em 1963, a editora Sudamericana publicava O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, obra que deu início ao boom que ajudou a divulgar, principalmente em países da Europa, escritores latino-americanos Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier e Juan Rulfo, além do próprio Cortázar.
O autor — que já havia publicado Os reis, Bestiário, Fim de jogo, As armas secretas, Os prêmios e Histórias de cronópios e famas — considerava O jogo da amarelinha um antirromance que rompia com a estrutura tradicional do gênero ao proporcionar a liberdade do caminho a seguir com a leitura: uma das possíveis escolhas é começar do capítulo 1 e avançar até o 56, que termina com três asteriscos representando a palavra “fim”, ou começar pelo 73 e seguir uma ordem sugerida por Cortázar em seu “tablero de dirección”. A própria estrutura do livro, que é dividida em “Do lado de lá”, “Do lado de cá” e “De outros lados (capítulos prescindíveis)”, amplia o leque de possibilidades.
‘Quis escrever um livro no qual o leitor tivesse um papel ativo, e não passivo’, disse Cortázar
Segundo ele, escrever O jogo da amarelinha foi uma espécie de exorcismo: “Se não tivesse escrito, provavelmente teria me jogado no Sena”. Ao finalizar o romance, tinha outro nome em mente: “Mandala”, palavra sânscrita que significa círculo, uma representação geométrica da dinâmica do homem com o cosmo e da busca espiritual profunda — “mandala” possui o mesmo número de letras de “rayuela”, seu título original em espanhol. Explicava:
A mim ocorreu, e sei que é algo difícil, escrever um livro no qual o leitor desempenhasse um papel ativo, e não passivo, e tivesse diferentes opções, e um pé quase que de igualdade com o autor. O que eu chamo de leitor-cúmplice. A possibilidade de deixar partes do livro, ou lê-lo em outra ordem.
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Haroldo de Campos, em um artigo publicado, em 1967, no jornal Correio da Manhã escreveu:
Em ‘Rayuela’, Cortázar radicaliza seus processos e se lança de corpo inteiro à aventura do romance como invenção da própria estrutura do fabular, que caracteriza a mais consequente novelística de nosso tempo.
Livro inesgotável
O livro marcou uma geração e continua a influenciar escritores contemporâneos, inclusive no Brasil, como Helena Machado e Lucas Verzola.
Machado, autora de Memória de ninguém (Nós, 2022), conta que o que a encantou no livro, seu primeiro contato com a obra de Cortázar, foi sobretudo a estrutura de jogo de montar. “A possibilidade de ser uma leitora ativa do lado de cá, do lado de lá ou em quaisquer outras ordens, de criar minha história a partir das várias histórias”, recorda.
A autora tem uma gata chamada Maga, uma das personagens principais de O jogo da amarelinha e cuja menção abre o livro na pergunta-convite:“Encontraria a Maga?”.
“Lembro que boa parte do livro li em uma viagem com amigos em um dos verões tórridos do Rio, e eu adorava imaginar que aqueles personagens com papos existenciais e metafísicos, cheios de desejos, procurando um sentido para a vida, faziam parte do meu grupo. Eu devia ter uns 25 anos”, lembra.
Para Machado, O jogo da amarelinha é um livro que não se esgota nunca, pela possibilidade de pensar a escrita fora de uma lógica clássica ligada à ação, aos acontecimentos em si, ao tempo linear. “O livro abriu minha cabeça para tudo, a linguagem, a forma e a própria elaboração do tempo”, afirma.
Lucas Verzola, autor de A última cabra (Reformatório, 2019), observa que O jogo da amarelinha se desdobra na busca por algo que já escapou, e que, por isso mesmo, dá algum sentido à vida de Horacio Oliveira, o perseguidor-mor entre tantos criados por Cortázar. Espécie de alter ego do autor, Horácio brinca de resgatar apenas o que for “insignificante, o inostentoso, o perecido”. “Trata-se da confissão de fé do próprio Cortázar”, arrisca Verzola.
Ele mesmo criou um modo oracular de leitura. “Busco qualquer capítulo como se tira uma carta de tarô, como se consulta os astros ou se espera por um encontro fortuito na ponte de sempre”, explica. “Não foram poucas as vezes que voltei ao perseguidor Cortázar atrás de um caminho secreto, uma galeria que ligasse o centro velho de Buenos Aires ao Segundo Arrondissement de Paris para salvar a minha vida. Talvez seja a única forma de leitura não expressamente recomendada pelo autor, mas ela está lá nos esperando e que nos leva a entender o que importa no insignificante, o que é abundante no inostentoso, o que pulsa no perecido”.
Monumento
Tradutor de gigantes da literatura hispano-americana, como Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Juan Rulfo, Eric Nepomuceno foi amigo pessoal de Cortázar. Ele traduziu O jogo da amarelinha para a edição publicada pela Companhia das Letras em 2019. Na sua visão, o livro é não apenas uma das obras mais monumentais da literatura latino-americana da segunda metade do século passado, mas ”uma das obras mais monumentais da literatura de todos os tempos”. Em entrevista para a Quatro Cinco Um, ele explica o impacto de O jogo da amarelinha para sua geração e como foram seus encontros com o autor argentino.
‘Ninguém escrevia daquele jeito. Era um autor excepcional’, diz Eric Nepumoceno sobre o amigo
Como foi o seu primeiro contato com a obra do Cortázar?
Foi em 1972, no falecido Jornal da Tarde, de São Paulo. Uma fotógrafa argentina me falou de Cortázar. Eu tinha ouvido falar, mas nunca tinha lido. Ela me deu de presente um livro de contos, Bestiário, que li aos tropeços, porque meu castelhano era pior do que é hoje. Fiquei fascinado. Ninguém escrevia daquele jeito. Os temas até que podiam ter sido tratados antes, mas não naquela arquitetura. Entendi, de saída, que era um autor excepcional.
Quando e como aconteceu o primeiro encontro com o escritor?
Fui amigo dele. Nos conhecemos em 1973, nos reencontramos em 1976 e até a morte dele, em 1984, mantivemos contato permanente. É um dos vazios mais eloquentes da minha vida. Mas nunca falo disso.
Por quê?
Porque estou escrevendo sobre ele e outros amigos hispano-americanos que a vida me deu.
Quando e onde vocês se encontraram pela última vez?
No finzinho de 1983, na Cidade do México. Ele vinha de uma viagem à Nicarágua então sandinista — e não barbaramente traída como agora. Jantamos. Achei que estava enfraquecido, cansado. Conversamos sobre amigos em comum, sobre Manágua. Depois nos escrevemos um longo par de vezes, e ponto final.
Você foi o tradutor da primeira versão em português de uma obra de Cortázar, As armas secretas, lançada em 1994. Como isso aconteceu?
É uma história longa e complicada. A Maria Amélia Mello era a editora da José Olympio, tinha acabado de assumir. Ela me telefonou pedindo livro, tradução, o que fosse. Expliquei a ela que não tinha livro nem tradução em vista. E então, me lembrei: muitos anos antes, em 1976 ou 77, eu disse ao Cortázar que queria traduzir Las armas secretas, ou mais especialmente, um conto chamado “El perseguidor”. Pode parecer brincadeira, mas não é: desde aquele telefonema, tentei de tudo que foi jeito convencer algum editor a comprar os direitos desse livro. Todos, sem exceção, diziam a mesma coisa: o livro já estava vendido para o Brasil. Mas eu sabia, e o Cortázar sabia, que não. Um mistério.
Então, quando a Maria Amélia me ligou, eu disse que não tinha livro, nem tradução, mas que eu queria muito traduzir Las armas secretas. Ela repetiu o que todos tinham me dito: o livro já está no Brasil. E eu sabia que não estava. Insisti, e ela fez o que nenhum outro editor tinha feito, ou seja, confirmou o que eu dizia, o que o Cortázar dizia, e disse “vai em frente”. E eu fui.
Qual a sua impressão sobre O jogo da amarelinha sessenta anos depois do seu lançamento?
É, certamente, não apenas uma das obras mais monumentais da literatura latino-americana da segunda metade do século passado. É das obras mais monumentais da literatura de todos os tempos.
Qual o impacto que esse romance teve na sua geração?
Imenso. Nunca ninguém tinha lido nada igual simplesmente porque ninguém nunca tinha escrito algo igual.
Você acha que essas novas gerações conseguem se interessar pelo livro?
Aqui, no Brasil, não sei. Mas no mundo hispânico são justamente as gerações mais novas que devoram esse livro, passando por cima inclusive de dados que marcam determinada época: todos fumam o tempo todo, ouvem discos em vitrolas…
Cortázar dizia que o boom de escritores latino-americanos foi ocasionado mais pelo interesse de leitores (e pela presença de autores do continente na Europa) do que por iniciativa dos editores. Estes, segundo Cortázar, se beneficiaram mais do que os autores. O que acha?
Esse é um ponto em que discordo do Cortázar. Acho que houve uma coincidência formidável e irrepetível — algo parecido ao que aconteceu no Brasil com a geração ”dos festivais”: Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Dorival Caymmi surgindo ao mesmo tempo. Quem explica? Quem explica Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabo, o próprio Cortázar publicando num curto espaço de tempo obras revolucionárias? Claro, havia antecedentes: Juan Carlos Onetti, Juan Rulfo e um largo etcétera.
Mas acho que o mundo estava de olho na América Latina por causa da Revolução Cubana. Acho que havia uma curiosidade imensa em relação a este lado do paraíso. Os editores entenderam o que tinham nas mãos. Que eles tenham ganhado mais que os autores, não resta dúvida. Aliás, em algum outro momento foi diferente?
Qual a importância de Cortázar para a literatura latino-americana e mundial?
Absoluta e total. Total e absoluta. Nos ensinou uma carpintaria, uma arquitetura literária absolutamente libertária e extremamente rigorosa. Um mestre. E um amigo generoso, solidário, afetuoso.
O que falta para termos mais livros do Cortázar traduzidos no país?
De verdade, não sei. Acho que uma coisa é ser publicado, a outra é ser bem avaliado, e outra ainda é ser lido. Como, na prática, não há uma crítica literária consistente no Brasil, autores como Cortázar ficam meio à margem. Se estabelece que são gênios e pronto. Ninguém explica nem incentiva que sejam lidos… Mas tenho certeza de que ele e sua obra permanecerão.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.