Literatura,

O conto sobre racismo de Ray Bradbury

Autor de ‘Fahrenheit 451’ criou história em que população negra do sul dos EUA migra para Marte

21ago2020

“— Você soube?
— Soube do quê?
— Dos negros, dos negros!
— E daí?
— Eles vão embora, estão partindo, você não soube?
— Como assim, indo embora? Como podem fazer isso?
— Podem fazer, vão fazer, estão fazendo.
— Só alguns?
— Todos os que moram aqui no Sul!
— Não.
— Sim.
— Preciso ver isso. Não acredito. Para onde estão indo…? Para a África?
Silêncio.
— Marte.
— Você quer dizer o planeta Marte?
— Isso mesmo.”

É assim que se inicia o conto “Way in the Middle of the Air”, de Ray Bradbury (1920-2012), que foi escrito antes de o autor publicar o clássico distópico Fahrenheit 451 (e do qual o título da Quatro Cinco Um foi inspirado). Essa história saiu pela primeira vez na revista Other Worlds, em julho de 1950, e depois integrou os capítulos de Martian Chronicles, publicado no mesmo ano. No Brasil, o livro foi lançado em 2002 com o título As crônicas marcianas, pela Biblioteca Azul/Globo Livros, com tradução de Ana Ban, e o conto foi intitulado “Flutuando no espaço”.

Esse conto, segundo escreveu o professor de literatura Robert Crossley no posfácio da edição em inglês da Beacon Press de Kindred (1979), da escritora norte-americana Octavia Butler, era uma exceção nos idos de 1940 e 1950, pois em um mercado editorial dominado por escritores brancos homens era muito raro encontrar histórias de ficção científica que tratassem da temática racial de modo sério ou que não caíssem em um tom condescendente. Escrito quando o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos dava seus primeiros passos, “Flutuando no espaço” tratou de modo aberto a segregação, o racismo e os linchamentos no sul do país. E Butler, então uma das poucas autoras negras de ficção científica, leu o livro em sua juventude.

A história, ambientada em junho de 2003, segue o ponto de vista de Samuel Teece, o homem branco dono da loja de ferragens de uma cidade no sul dos Estados Unidos. Ele vê, incrédulo e com uma raiva crescente, a multidão de pessoas negras dirigindo-se ao ponto de encontro e no horário combinado para entrarem nos foguetes que as levarão para Marte. Sentado na varanda junto com homens brancos da cidade, ele pergunta como arrumaram dinheiro para o transporte. “Economizaram e construíram”, um dos outros brancos responde. “Parece que esses pretos agiram em segredo, trabalharam sozinhos nos foguetes, não sei onde… na África, talvez.” “Mas eles podem fazer isso?”, questiona Teece. “Não há nenhuma lei contra isso?”

A migração da população negra acaba com a economia do sul dos Estados Unidos, escancarando a dependência dos brancos em relação à exploração do trabalho feito pelos negros. As esposas brancas logo aparecem para lamentar para seus maridos a partida das mulheres negras que faziam trabalhos domésticos em suas casas. Elas reclamam que terão que “colocar a mão na massa” e se dizem tristes pela perda de “um membro da família” — discurso este bastante familiar a nós, brasileiros.

Teece também tenta a todo custo evitar que alguns dos negros que trabalham para ele migrem para Marte, amarrando-os a dívidas ou a um contrato de trabalho que nunca fora formalizado, e até procurando convencê-los de que vão morrer durante a viagem espacial. Suas tentativas de acabar com o sonho desses homens são vãs, pois outras pessoas negras se juntam para pagar a quantia exigida por ele ou aparecem para resgatar qualquer um que possa ter sido deixado para trás. Ao mesmo tempo, a vontade de viver em um mundo sem a opressão dos brancos é maior que o medo de morrer no trajeto.

“Não consigo entender por que eles foram agora. As perspectivas são boas, quer dizer, cada dia conquistavam mais direitos. O que eles querem, afinal de contas? Aqui já não há mais imposto, cada vez mais estados aprovam leis antilinchamento, e eles têm todos os tipos de direitos igualitários. O que mais querem? Ganham quase tanto quanto os brancos e, mesmo assim, lá vão eles”, comentam os brancos na varanda, com um discurso que ecoa os que comparam a luta por direitos e por respeito a “mimimi”.

A igualdade, claro, nunca foi obtida de fato, ainda que a escravidão tenha oficialmente acabado nessa região há muitos anos. O sistema e a mentalidade escravistas persistem e o racismo continua a estruturar as relações, tanto que Teece se comporta como se fosse o proprietário dos homens negros que trabalham para ele. Nessas interações, vai ficando clara a função da população negra para a branca, especialmente para Teece, que precisa oprimir os negros para se sentir forte e superior.

Nesse ponto, Bradbury mostra como o discurso em torno da supremacia branca é patético e letal. Sem os negros, quem varrerá o chão da loja de Teece? Quem arrumará a casa para sua esposa? Quem o chamará de senhor? O que ele fará em suas noites vazias, nas quais passava o tempo andando de carro, armado, junto com seus companheiros, com uma corda na mão, escolhendo a melhor árvore para depois bater na porta de um “barraco” qualquer e matar o primeiro homem negro que encontrasse? Não é à toa que emigrar para Marte seja sinônimo de liberdade.

Outras formas de queimar um livro

Bradbury foi bastante criticado na época por As crônicas marcianas e, mais especificamente, por “Flutuando no espaço”. Conforme a seção intitulada “Coda” em seu posfácio de uma edição de Fahrenheit 451, publicada em 1979 — que traz a frase “existem várias maneiras de se queimar um livro” —, o autor contou, em tom de desabafo, que recebeu cartas de uma leitora pedindo que ele reescrevesse partes do livro introduzindo mais personagens femininas, de algumas pessoas reclamando que os personagens negros no livro eram baseados em estereótipos raciais e outra de uma mulher sulista observando que o conto era bastante favorável aos negros e que, por isso, deveria ser retirado da coletânea.

Nesse texto, ele fez uma crítica à tentativa de se tentar modificar o resultado final de uma obra imaginado por seu criador, alterando tramas e personagens e retirando histórias. “Flutuando no espaço” também foi bastante criticado desde os anos 1980 pelo uso em vários diálogos do termo “nigger” (traduzido por “negro” na versão brasileira), que é bastante ofensivo para os afro-americanos.

Não deixa de ser irônico, portanto, que edições posteriores desse volume saídas nos Estados Unidos — uma em 2001 e outra em 2006 — tenham sido publicadas sem esse conto, tendo sido substituído por “The Fire Balloons” (Os balões de fogo), que não fazia parte da edição original. Após reclamações de leitores, o conto voltou a figurar nas publicações seguintes de As crônicas marcianas. (Caso algum leitor incauto pense em adquirir uma versão e-book do original em inglês, é recomendável verificar o índice antes, pois edições sem esse conto continuam circulando por aí.)

Um novo começo

Bradbury voltou ao tema no conto “The Other Foot” (O outro pé), publicado em The Illustrated Man (1951) — no Brasil, a obra foi traduzida por Uma sombra passou por aqui —, em que afro-americanos que se instalaram em Marte depois de saírem da Terra entram em contato pela primeira vez em vinte anos com pessoas brancas. O ponto de vista dessa vez é de Hattie e Willie Johnson, um casal negro que é referência na comunidade.

A chegada dos brancos faz com que uma onda de ansiedade saia de dentro de Willie e de outras pessoas, desejando infligir sobre os recém-chegados as mesmas medidas opressoras que sofreram nos Estados Unidos: desde relegá-los a atividades sem tanto prestígio social, como engraxar sapatos e varrer o chão, passando pela segregação no transporte e em outros espaços até chegar ao linchamento.

“A mesma coisa que sempre odiou quando era criança. Você não é melhor do que aqueles homens brancos de quem reclamava!”, grita o prefeito para Willie, que diz não se importar, sentindo o gosto de vingança, principalmente por seus pais terem sido mortos de modo violento por brancos pelo fato de serem negros. Ao finalmente confrontarem o homem branco, eles são tomados pela surpresa. Um homem envelhecido, desiludido e enfraquecido, que fala pelos poucos sobreviventes da Terra, pede refúgio, inclusive se oferecendo para ser tratado como os negros foram tratados em solo terrestre. Era melhor do que não ter para onde ir, uma vez que os negros haviam criado uma colônia humana bem-sucedida em Marte.

Diante desse pedido, Hattie olha para o marido com apreensão e logo pergunta ao homem se a cidade onde viveu ainda existia. Com isso, todas as pessoas em volta perguntam por lugares e pessoas que conheciam anteriormente. Tudo e todos estavam acabados, inclusive seus opressores brancos. Ao perceber que o mundo que conhecera tinha sido extinto, Willie deixa cair a corda que estava segurando em suas mãos e aceita a presença dos sobreviventes brancos. “Um novo começo para todos”, pensa, pois finalmente ele conseguia ver com clareza o homem branco: um ser envelhecido, desiludido e enfraquecido.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).