Literatura japonesa,
Um simples obrigada
Leia a carta de amor da escritora Banana Yoshimoto a Shimokitazawa, área de Tóquio onde morou por muitos anos
07jul2021 | Edição #47Eu tive uma razão para me mudar de casa novamente, desta vez para um lugar a uma estação de Shimokitazawa. Portanto, minha cidade mais próxima – se é que se pode chamá-la de cidade – ainda é Shimokitazawa.
Tenho a impressão de que é a última mudança que vou fazer, e ela foi bastante emotiva em diversos aspectos. A sensação perturbadora de que talvez esse possa ser exatamente o lugar onde vou morrer; a ideia angustiante de que os animais que vivem comigo sem dúvida vão morrer aqui também.
É a primeira vez que tive essas sensações a respeito de onde moro, e por essa exata razão tenho um pressentimento de que essas coisas de fato se darão. Esta casa será o ponto de partida de onde irei embora e para onde voltarei.
Quando entrei nessa casa pela primeira vez, tive a convicção de que era o lugar com que sonhava por muito tempo. Essa convicção me acompanhou ao longo da mudança. Tudo correu tranquilamente, e questões de dinheiro, de tempo e todas as outras dificuldades de alguma maneira se resolveram bem. A eu-criança que vive dentro de mim se sentou triste por um tempo abraçando os joelhos, sem conseguir a princípio se adaptar à troca. Mas meus animais, que tinham protestado na última mudança, se acostumaram rápido desta vez, e as coisas seguiram bem e de acordocom o programado. A mudança foi difícil, sim, mas desta vez eu não estava lutando contra a corrente, então o prejuízo foi mínimo.
Itchan e Masako, que vieram ajudar, carregaram para dentro e dispuseram meus objetos preciosos com maravilhosa simpatia e cuidado. O carpinteiro e o jardineiro, velhos amigos meus, fizeram um trabalho excelente. Mesmo no meio do inverno, eles não economizaram no esforço; trataram da construção da casa e da instalação das plantas no jardim com o mesmo cuidado imenso que teriam com suas próprias casas. Até hoje, quando penso nisso, fico à beira das lágrimas.
Eu também tive muitas experiências incomuns desta vez com minhas transações com a imobiliária e o banco, com frequência muito felizes e casuais. O bilhete do mestre de obra dizendo «Obrigado pelo café; estavadelicioso», me fez sorrir; as histórias que o arquiteto me contou sobre sua primeira infância me encheram de desejo de cuidar desta casa que ele projetava. O corretor imobiliário era um homem esperto e interessante, e toda a família ficou aficionada por ele.
***
O ramo imobiliário mudou de diversas maneiras nos anos desde minha última experiência nesse universo. A verdade é que, não importa quão cuidadoso você é, ao alugar ou comprar, a pessoa está sempre no lado do negócio que sai perdendo. Não há nada que se possa fazer. As pessoas simplesmente estão em uma posição mais vulnerável. Nessa época, em que as transações comerciais envolvem uma certa quantidade de exploração, colocar a cláusula de violação de compromisso em letras minúsculas é um dos comportamentos menos antiéticos.
Para dar um exemplo, o contrato da casa que vendi tinha uma cláusula que estabelecia uma «garantia de dez anos contra defeitos na construção», com uma cláusula adicional que cobria qualquer mudança de proprietário de título no ínterim, chamada «acordo de revenda especial» .Essa garantia contra defeitos significa que em caso de vazamentos ou deterioração dos materiais, o que é claramente responsabilidade do construtor, é exigido que o segurador, por meio do corretor imobiliário, pague a conta pelos consertos. Mas, na realidade, se o construtor ou o corretor imobiliário optarem por bater o pé e se negar, o que acontece é que você não pode registrar um proprietário de título diferente, de modo que esse «acordo de revenda especial» na verdade não é executável legalmente.
Não me falaram nada disso quando assinei. Quando comprei o lugar tudo que ouvia era, «Não se preocupe, há um acordo de revenda para que você possa passar para frente quando quiser, e a garantia continua. Esperando que a gente faça novos negócios no futuro…» e lá iam eles com o dinheiro. Então, mais tarde, o que diziam era, «Ah, não, não há essa possibilidade. Veja, a construtora não aceita mudança do nome doproprietário registrado hoje em dia… blá-blá-blá», e me dei conta de que tinha sido passada para trás.
Por sorte mudei para um lugar não muito distante, então o problema não é tão grave, mas se eu tivesse ido para outra região do país ou para o estrangeiro, no papel de proprietária do título, eu teria de tomar um avião de volta sempre que algo de errado acontecesse, contratar empreiteiros para fazer a obra, supervisionar os reparos e assim por diante.
Então de que exatamente se trata essa «garantia de dez anos»? Eu gostaria de saber.
Foi você quem assinou o contrato, então é você que se encarrega de tudo agora. Não tem nada a ver conosco. Mas quando se trata de inspeções e similares, onde estamos em uma posição em que podemos lucrar, estaremos lá num piscar de olhos… E é provável que esses trapaceiros ainda estejam descaradamente vendendo propriedades hoje. É claro, não se trata apenas deste corretor imobiliário. Ouvi dizer que todas as grandes construtoras fazem coisas parecidas. Em outras palavras, esse tipo de exploração semilegal é hoje absolutamente padrão.
Lá se foram os dias em que você construía uma casa sólida e habitável, vendia-a para alguém feliz com a compra, e, se essa pessoa por sua vez revendesse a casa, você ainda se sentiria responsável por aquilo que tinha construído, mantendo um acordo permanente de cuidar dela. Agora está mais para, «Graças a Deus. Até agora eles estão consentindo e concordando, gentis». As pessoas da minha idade só podem balançar a cabeça em assombro. Esse não é apenas um caso de nostalgia dos Bons e Velhos Tempos – afinal, muitas coisas hoje são melhores do que costumavam ser.
Mas sinto que é um grande erro presumir que o sistema atual irá continuar para sempre como está. Desde que gente é gente, aqueles que estão prontos para nos passar para trás mais cedo ou mais tarde virão a perecer, assim como a energia nuclear no Japão veio a perecer.
Escrevi sobre isso em algum outro lugar, mas o fato é que, a não ser que os humanos tratem outros humanos como humanos, alguma coisa terá de mudar.
Tome por exemplo os tão detestados subempreiteiros que fazem todoo dinheiro que podem por meio de um processo de checagem da manutenção da propriedade que é quase um jogo de encontrar erros. E ascompanhias que sugam de maneira descarada esse dinheiro deles sem botar as próprias mãos na sujeira.
Ou os subempreiteiros que montam os móveis ou instalam ares-condicionados nesses lugares, trabalhando em um cronograma rigoroso que dita quanto tem que ser feito a cada dia. Se eles cometem um erro, é descontado em seu pagamento, então sua única opção é se acabar de trabalhar o mais rápido que podem tomando todo o cuidado de nunca cometer um deslize, e logo passar para o trabalho seguinte.
Estamos em uma época em que o banco irá recomendar a uma pessoade 85 anos que coloque seu dinheiro em um depósito a prazo de dez anos que só paga juros no final do período aplicado.
Nessa nossa terra, o funcionário de um banco ou de uma seguradora sairá batendo de porta em porta das pessoas de idade que moram sozinhas para tentar arrancar seu dinheiro ao fazer com que contratem serviços como esses. Todo sorrisos e gentilezas, eles tiram o seu dinheirodo seguro, e quando você vai parar no hospital fica sabendo que existe alguma cláusula de exclusão no contrato que significa que você não tem direito a nada.
O Japão é diferente dos Estados Unidos, onde há todo aquele território para circular. Simplesmente não podemos fazer as coisas do mesmo jeito aqui. Mas tenho a impressão de que, embora a maneira que se é ludibriado em outros países possa ser mais impiedosa, pelo menos a abordagem à trapaça é mais direta do que no Japão.
Uma coisa boa a respeito dos japoneses é que aqui você ocasionalmenteirá se deparar com alguém que pode de fato transcender tudo isso na hora, o tipo de pessoa que é capaz de mudar o mundo do zero. É por isso que você pode se permitir ter esperanças.
«Todo mundo está fazendo isso, e nós todos temos de colocar comida na mesa, então não faz sentido pensar nisso muito a fundo», você pode argumentar. Mas esse é um grande erro. Por quê? Porque sempre e por toda parte, antigamente e agora, ainda estamos lidando com outros seres humanos.
Humanos querem ser felizes, querem tranquilidade, querem manter relações amigáveis com pessoas honestas. Enquanto esse continuar sendo o caso, sempre e aonde quer que você esteja vai encontrar o grande princípio da causa e consequência em ação – aquela lei cármica inalterável e universal de retribuição segundo a qual você colhe o que planta.
***
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Sempre que vejo uma escadaria, penso em minha mãe.
Quando ela não podia mais andar, instalamos uma cadeira elevatória na casa da família.
Minha mãe fazia as refeições no quarto de hóspedes no térreo e então, quando se cansava de ficar sentada lá, ia para a cadeira e subia para seu quarto no andar de cima. Para o alto ela ia com um sorriso, um aceno e as palavras, «Bem, te vejo mais tarde», acompanhada pela música que tocava quando a cadeira estava em movimento.
Seu rosto radiante lembrava o de algumas jovens estrelas quando deixavam o palco.
Sinto uma grande pena pelo fato de que minha pobre, muito ludibriada mãe levou uma vida com muito poucos sorrisos como esse, e me parece uma bênção que assim que foi acometida por uma ponta de demência ela passasse os dias a sorrir. Um certo grau de relaxamento parece ser mais conveniente para a felicidade humana.
Bem, de qualquer modo, assim que me mudei para a casa nova, rolei escada abaixo.
Eu estava um tanto exausta dos dias de trabalho duro. Não estava prestando atenção e estava aflita porque precisava me aprontar para ir aoaeroporto.
Então fui para baixo com incrível ímpeto, batendo forte meu cóccix nos degraus enquanto rolava. Quando olhei no espelho, fiquei pasma ao ver que minhas costas pareciam divididas em quatro com precisão graças aos hematomas horizontais que a cobriam.
Chorei de dor. O cachorro me consolou ao vir me dar umas lambidas. Mas eu não conseguia ficar de pé e não conseguia me sentar, e o que quer eu fizesse, um grito surgia em minha mente, «Ai!».
Apesar disso, assim que fui capaz de andar um pouco, segui como planejado para Hokkaido. Eu gania de dor enquanto o avião pousava, e, ao chegar ao hotel, tive febre e fiquei de cama. Do lado de fora havia um mundo congelado de torvelinhos desenfreados de neve. Meu ânimo despencou, mas mesmo assim me arrastei como prometido à sede de Sapporo do restaurante Magic Spice.
Este é um restaurante que serve sopa de curry e que também tem uma filial em Shimokitazawa, perto de onde eu moro. O dono, Shimomura-san, é um camarada intrépido que já foi sequestrado na Tailândia, já foi sensitivo que dava consultas e que de modo geral seguiu um caminho profissional suspeito até enfim chegar ao que seu destino ditou – levar saúde às pessoas por meio de curries apimentados. O brilho caótico dentro de seu restaurante retém toda a gloriosa complexidade desse seu mundo.
Você poderia ler um livro sobre ele e nunca entenderia racionalmente qual é a dele, mas basta conhecê-lo para saber que pessoa vivaz e, no entanto, serena e totalmente generosa ele é. Sua filha é uma cantora conhecida que leva o mesmo nome de Hitomitoi. Eu amo sua voz delicada. Sua esposa é fofa demais para se descrever e brilha como o sol. Toda a família se dá muito bem, irradiando uma sensação de harmonia natural.
Talvez fosse o poder do carma de Shimomura-san, talvez fosse a gentilacolhida, mas, embora eu tivesse apenas conseguido cambalear até lá em considerável dor, só de me sentar e comer uma tigela de sopa de curry senti meu ânimo melhorar e minha saúde voltar até me sentir tão mais disposta que, apesar de toda a agonia, estava feliz.
Quando mencionei como estava sentindo dor, Shimomura-san esua esposa trouxeram uma preciosa pomada que tinham comprado na Tailândia e na hora de ir embora eles me ajudaram a descer as escadas com cuidado. Isso despertou em mim a vívida memória do toque dos meus queridos pais. Talvez tenha sido isso que realmente fez as coisas melhorarem.
Da primeira vez eu estava um tanto surpresa com o impressionante número de legumes nos curries do Magic Spice, sua doçura especial de Hokkaido, a atitude dos garçons. Peguei-me perguntando se talvez pudesse fazer a turista e dar uma chance à comida.
Mas, à medida que continuava aparecendo no restaurante, me flagrava alegre, no caminho de volta, pensando que na verdade eu gostava de comer um monte de legumes. E imagine todas as boas especiarias que tinha comido. Eu tinha sido recebida com afeição e bem tratada. Eu gostava cada vez mais do lugar. A doçura extra agora parecia conter uma profunda ternura. É sempre uma felicidade testemunhar a realizaçãode um mundo nascido da imaginação de alguém, e era essa a impressão que o interior do restaurante transmitia. Eu sentia que era um lugar com raízes profundas – não o tipo de lugar criado por alguma ideia encomendada ou seguindo algum vago conceito de «estilo asiático», mas um lugar onde tudo está lá por uma razão e vem de alguma parte profunda. É essa a impressão que eu tinha.
Meu cóccix ainda doía, mas eu mesma me sentia ótima. Isso porque havia amor verdadeiro naquela comida. Os amigos com quem eu ia, que tomavam conta de mim com tamanha preocupação; o incentivo silencioso de Shimomura-san e sua esposa; a eficiência brusca dos garçons – todas essas coisas entraram em meu coração da mesma forma que acontece com o amor. Do lado de fora da janela havia um mundo da neve mais alva em que, para alguém como eu, era fácil demais escorregar e agravar meus problemas ao bater mais uma vez meu pobre cóccix dolorido. No entanto, de alguma maneira, eu me sentia segura.
Você recebe amor, você devolve agradecimento – o que vai também volta.
Essa é a essência das relações humanas, aliviar o fardo até dos problemas mais pesados que cada pessoa carrega. Como seria bom se o mundo pelo menos funcionasse assim.
***
A casa em que vivi por muito pouco tempo – aquela com a ótima ga-rantia que não funcionava – era um ótimo lugar para se estar.Eu tinha passado por uma experiência verdadeiramentepenosa quan-do me mudei para lá; lá eu conversei com minha família, lá eu não dormiade tanto pensar, lá eu me tornei uma pessoa séria e foi de lá que seguiem todas as ocasiões para visitar Funabashi, o cenário do romance queeu queria escrever.
A casa era tão pequena que eu não conseguia chegar a contemplar aideia de passar o resto da minha vida lá com minha família, mas, pormais transitórios que fôssemos, ela nos alojou ternamente entre suasparedes. Nunca apareceu nenhum problema por lá, e uma brisa viva,tranquila e doce sempre a percorreu.
Eu me lembro de uma noite de verão sem chuva em que voltei cambale-ando, morta de cansaço, de Funabashi e fui andando para casa da estaçãoSetagaya Daita. Cumprimentei a velha sra. Yamazaki, e meus pés calçadosem sandálias continuaram claudicando. Estava carregando muitos pãesque tinha comprado em Funabashi.
Ah, eu pensava, pelo menos reuni todo o material de que precisavasobre Funabashi. Foi tão divertido. É meio triste que tenha acabado. Vougostar de terminar o romance, mas não vou mais descer em Funabashicom aquela sensação que de algum modo eu moro lá… e admirei a mi-nha casa.
Lá, sob o céu do verão, ela parecia irradiar boas-vindas para mim. Láestavam as enormes folhas de lótus e o nome da minha família na placa.Luz inundava a construção; o branco das paredes brilhava.
Esse era um espaço que sempre tinha nos amado, cem por cento.
A ideia de abrir mão dela era tão assustadora que me dava vontade dechorar, mas até aí o novo é sempre assustador.
Quando estiver acomodadanestacasa vou me certificar de que conti-nuarei escrevendo muitas outras coisas
Esta casa não é gentil como aquela última. Esta é uma casa de poder,um lugar de todo tipo de ângulos marcados – ela foi, afinal, capaz de melançar escada abaixo. Há um certo clima severo que diz que ela significacoisa séria; ela pode mostrar quão infantil nós somos, e que não é o mo-mento de relaxar e suavizar ainda. Tenho a impressão de que vai levartempo para que a gente se conheça, mas é isso que a torna um lugarhonesto e confiável.
Na primeira noite depois da mudança, ligamos a televisão e nos senta-mos todos juntos para assistir e comer pizza. Ao olhar para esses amigose essa família que eu amo, fui tomada pela ideia de que essa era realmentea nossa casa.
E no entanto, apesar dessa ideia breve, aquele tempo maravilhoso naoutra casa permanece comigo.
Naquele dia saí na varanda bem quando a velha senhora da casa ao ladoaparecia do lado de fora, e ficamos ali conversando, fofocando sobre obairro, as duas apenas de pijamas.
A velha senhora que vinha coletar fundos para a associação do bairro eestava sempre tão cansada, mas quando me ofereci para ajudar ela sorriucom aqueles seus lábios cuidadosamente pintados de vermelho vivo edeclarou estartava convencida de que, se não tivesse esse trabalho parafazer, ficaria senil.
A família encantadora que sempre passeava com seu cachorro e seugato em um carrinho de reboque.
Dói pensar que esse meu ínfimo remanejamento me arrancou daquelavida onde eu vivia no mesmo ritmo que aquelas pessoas.
***
Mas quero viver este momento, este dia, admirando, ansiando.
Isso me lembra de como posso anelar a época que meu filho ainda era um bebê, e bater os olhos nos brinquedos e nos livros que lia para ele quando era criança pode fazer meu coração balançar, mas há mais deleite em conhecê-lo como ele é hoje.
A verdade é que o tempo que tenho nesta vida é apenas agora.
Adeus, minha querida, minúscula, doce velha casa. Eu só queria dizer obrigada.
Este texto foi originalmente publicado na revista The Passenger, lançada em português pela editora Âyiné, que gentilmente cedeu-o à Quatro Cinco Um.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.