Literatura brasileira,
Titilar a língua
Dalton Trevisan dizia as coisas mais escandalosas da maneira mais original, o brega levado a um ponto tão intenso que se torna arrebatador
01jan2025 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 janHá poucas coisas tão reconhecidamente difíceis em literatura quanto escrever uma boa cena de sexo. Uma cena de sexo que não cause vergonha alheia, vá lá.
De um lado, os pudores conservadores e seus eufemismos. De outro, a pornografia, ou sua moderna e bem-sucedida encarnação como soft porn: eficiente para os seus fins (gerar excitação sexual) e exatamente por isso pouco interessante como literatura, essa coisa que tende a minguar toda vez que o texto tem uma meta direta, quer em primeiro lugar fazer alguma coisa com quem lê.
A questão é tão complicada, e tão famosa por ser complicada, que um periódico britânico, o Literary Review, já há mais de três décadas entrega todo ano o Bad Sex in Fiction, prêmio que “consagra” as piores cenas de sexo.
Em qualquer idioma, boa parte do problema está nas palavras. É difícil encontrar termos que dancem de modo elegante e eficaz entre as linhas da grosseria e da pudicícia. Nossa sociedade está há milênios concentrada primeiro em proibir e denegrir o sexo e depois em questionar essa proibição de maneira politicamente rasgada. Estamos ainda muito longe de “normalizar” a questão, e a linguagem, claro, reflete esse estado de coisas.
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Lembro de ter visto uma peça de teatro sobre Louis Althusser e sua esposa, e de ter literalmente escondido o rosto nas mãos a cada vez que o ator pedia que a atriz tocasse seu “sexo”. Uma palavra como essa é tão envergonhada de existir que, paradoxalmente, me fazia pensar direto na linguagem de Alexandre Machado como Eleonora V. Vorsky, seu pseudônimo: um descarado pastiche da retórica de certa literatura erótica antiquada. E talvez aí, nessa ligação de vergonha e exagero, haja uma conexão interessante.
Taras ocultas
Dalton Trevisan gostava de cenas de sexo, e encontrava jeitos de dizer as coisas mais escandalosas das maneiras mais originais (boa parte de sua produção se deu ainda em tempos de ditadura, não se esqueça…).
A bem da verdade, alguns de seus contos são nada mais que a descrição de um encontro sexual. E de encontros sexuais que acontecem… em Curitiba, terra da vergonha própria e alheia, dos pruridos e pudores e também, como ele mesmo não cansava de revelar, das taras ocultas e perversidades.
Veja lá.
Pegue o conto “Abismo de rosas”, que abre o livro que leva o mesmo nome, publicado em 1976, em pleno governo Geisel. É a história da primeira vez de uma virgem, e inclui já de saída frases como “Teu vulcão está aí. Não quer despertá-lo?”, em que até a colocação pronominal inspira arrepios, ou “Quero você nuazinha”.
O autor consegue nos levar ao mundo das novelas mais ordinárias sem o pejo, sem peso do eufemismo
Um pouco mais adiante, já que a virgem curitibana que se prezasse naqueles anos 70 tinha que usar um crucifixo numa corrente, o narrador nos informa que “O velho Jesus, quem diria, piedosamente virou-lhe o rosto”. Página seguinte, e olha a censura deixando passar coisas como: “Veja como é quentinho. Pegue”; “Dê um beijinho. Só um”; “Abra a perna. É aqui, amor. Aqui é o bom”; “Só a pontinha”.
E já estamos definitivamente no mundo das novelas mais ordinárias e mais “sujas”. Mas de alguma maneira o autor conseguiu nos levar até ali sem o pejo, sem o peso do eufemismo, e ao mesmo tempo sem termos que pudessem ser considerados “pesados”.
E já seria bastante.
Só que eu estou te enganando.
Porque, apesar de o conto ser quase todo composto pelo diálogo entre os dois envolvidos, há desde o começo marotas intervenções de um narrador que, ao descrever a cara afogueada da garota, solta coisas como “No rostinho dois pintassilgos azuis batiam asas”. E pronto, saímos daquela posição retórica e entramos já num lugar meio difícil de definir.
O conto inteiro será uma mistura de Carlos Zéfiro com Janete Clair, de revistinha pornográfica com folhetim “para moças”. E isso acaba criando uma linguagem completamente nova, muito difícil de se levar a sério, e muito difícil de não se levar a sério. Vale lembrar que eram os anos 70, tempos em que masculinidade tóxica era praticamente um objetivo valorizado na ficção, especialmente na ficção que envolvesse sexo. Tempos do calhorda conquistador a cujos pés as moçoilas desmoronam em série, figura que Trevisan já tinha ao mesmo tempo desconstruído e criminalizado com o Nelsinho de “O vampiro de Curitiba” — bigodinho, insegurança, ridículo — envolvido ainda adolescente num estupro coletivo.
Sedutor ridículo
O Don Juan de “Abismo de rosas” é tudo menos um conquistador infalível. Para começo de conversa, ele é complexado, e acha que “Ser baixinho é padecer uma coroa de espinhos”. E imagine, só imagine, a possibilidade de um conquistador baixote na obra, digamos, de Rubem Fonseca. E o nosso herói não é somente baixo, ele é “o pequeninho que nunca podia dançar com a moça mais alta. O baixinho de todas as paixões e nenhuma correspondida. Pardal nanico, por todas as tijiticas perseguido”.
Tijiticas?
E é esse herói ridículo, deflorador provinciano, conquistador arrevesado que inspira no narrador, no momento de ápice da cena, quando sua parceira está dançando “sem sair do lugar”, um parágrafo que consiste apenas na frase “Salve lindo pendão da esperança, salve, salve”. Literalmente.
E você, lendo quase cinquenta anos depois, ainda se pergunta: oi?
Porque foi ali, afinal, que veio a vingança do baixinho que, no momento em que a menina (“Desculpe a unhada”) chega também ao ápice (“Minha mão, olhe, ainda treme”) sente de verdade que “Brilhou no céu em raios fúlgidos o brado mais retumbante que ouviram do Ipiranga as margens plácidas”.
E nada, de repente nada mais ficou como estava. Nem naquele escritório (sim, é um escritório), nem na literatura brasileira.
A cena vil, do homem em situação de poder abusando da moça ingênua, se torna uma ridicularização total. A cena de sexo se expõe plena, triunfante, ao mesmo tempo em que detona todos os cacoetes mais baixos desse tipo de narrativa. Estamos no ultra-kitsch, no brega levado a um ponto tão intenso que se torna arrebatador, triunfante. E, de quebra, estamos, em pleno auge do regime militar, espezinhando seus símbolos e sua retórica inflada, ufanista e vazia.
A cena de “Abismo de rosas” é erótica? Repulsiva? Cômica? Machista? Baixinhofóbica? Revolucionária? Empoderadora?
É Trevisan, isso sim.
E o que dizer da frase que fecha o conto, quando nosso Casanova, na pontinha dos pés, concede relutante o beijo que a parceira de aventura agora exige: “Ela baixou a linda cabecinha, os dois pintassilgos abriram asas”. Agora a tal cena fica… linda?
Gramática de mundo
Dalton Trevisan é sempre lembrado como O Miniaturista. O Mestre da Elipse. O Vampiro. O Retratista da Violência. E é todas essas coisas (não vai ser a mera morte que vai me fazer pensar nele no passado: eu preciso dele e esta cidade amaldiçoada que ele inventou precisa mais ainda).
Mas acima de tudo — talvez, quem sabe, ouso dizer — ele foi o criador de uma linguagem. Língua própria e gramática de mundo.
Você acha que eu citei demais ao longo desse texto?
Pois você, pobre leitora, desgraçado leitor, não imagina a força que estou fazendo (que fazemos todos quando escrevemos sobre ele) para não ficar usando suas palavras, expressões, estribilhos, ecos. Imitar Trevisan é tentação das tentações.
Ele se repetia desavergonhadamente, e com isso foi martelando em quem o lê um repertório gigantesco de imagens, construções, chavões (precisava usar tanto o verbo “babujar”? e o que diabos é “tatalar”?). Ele se reelaborava constantemente, gerando uma sensação atordoante de consistência tanto de linguagem quanto de cenários, personagens.
Poucos foram capazes de torcer, aprofundar e assinar tão vigorosamente o idioma que usavam para escrever
Ele delicia e ele vicia. Ele entorta teus óculos (“teu óculo”) de ver tudo.
E se em seu domínio da forma breve ele se pôs à altura de Salinger, na criação de uma ferramenta literária radicalmente nova, totalmente sua, capaz de expor coisas que só graças a ela passam a ter realidade, ele ficou foi de braços dados com Joyce, outro de seus heróis.
Poucas, pouquíssimas pessoas foram capazes de torcer, distorcer, aprofundar e assinar tão vigorosamente o idioma que usavam para escrever. Juntar oralidade real e estilo singular, idiossincrasia e atenção, beleza e desvio, grotesco e sublime, ironia e transparência…
As pessoas falam das tais elipses, dos diminutivos, do desapego pelo plural. Mas o que ele fez com a língua literária brasileira vai muito mais longe, e propicia muito mais coisas: gera a possibilidade da sua obra, dos convívios impossíveis de violência e humor, repulsa e afeto, secura e delírio, Curitiba e beleza.
“O arrepio no céu da boca.”
Escrever contos perfeitos é para pouca gente. Escrever livros perfeitos, para menos ainda.
Alguém tomar posse, para sempre, da língua portuguesa inteira, e lhe dar uma cara nova, incontornável, é coisa que se vê a cada aparição do cometa Halley.
Um desses eventos, um desses milagres, aconteceu aqui, nesta cidade abandonada por Deus e cinzenta por natureza. E por quase cem anos fez chover, ter brisa, gear, raiar o sol e pintassilgos tatalarem asas álacres.
Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025.
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