Literatura,

A queda do meu eu adolescente

Naquele mês de abril, jurei à minha mãe que não estava fumando. Logo: cigarros roubados. Logo: parapeito da janela.

01mar2024

Ando pensando nos adolescentes. Agora tenho uma em casa, e naturalmente já fui uma um dia — em um mundo diferente e em um momento diferente — e lembro da sensação. Tudo era extremo. Ainda é. Quatro ondas de feminismo, a conectividade digital, um movimento de bem-estar global, a obrigação de “ser gentil”, o lugar-comum de que “tudo vai melhorar” — nada disso parece ter adiantado para amenizar o sofrimento adolescente, sobretudo do tipo que me interessa aqui. No verão passado, enquanto observava garotas reunidas no cinema, decidindo se veriam Barbie ou Oppenheimer, pensei: “Sim, eis um bom resumo. Uma perfeição frágil e impossível de um lado, o apocalipse do outro”. Jamais esqueci os anos que passei espremida entre esses dois polos, e por um tempo acreditei que a intensidade de minhas memórias juvenis me tornava um pouco estranha — até cogitei que havia me tornado escritora por isso. Já rechacei essa hipótese há muito tempo, nos primórdios das redes sociais. Friends Reunited, Facebook. Pelo visto, muita gente ao redor do mundo também sente que nunca viveu tão intensamente quanto em algum verão passado. “Se meu eu adolescente pudesse me ver agora, ficaria enojado!”, comentei com um terapeuta alguns anos atrás. Ao que ele respondeu: “E por que você presume que sua versão de quinze anos é a juíza da verdade?”. Bom, eis um belo argumento, mas sigo levando-a comigo a tiracolo aonde quer que eu vá. A essa altura, acho que nunca vou me livrar dela.

Contexto

Muitas coisas interessantes aconteceram com meu eu adulto, mas, na opinião do meu eu adolescente, só há um acontecimento real em nossas vidas, ocorrido em 16 de abril de 1993, quando caí dez metros da janela do meu quarto. Preciso contextualizar. (Meu eu adolescente era obcecado por contextualização.) Antes da queda, já havia alguns anos que, de tempos em tempos, eu escrevia discursos para serem lidos no meu funeral. (Por quem? Meus irmãos?) O propósito desses discursos era explicar aos presentes por que exatamente meu eu adolescente tomara a decisão de deixar esse mundo, e quem, especificamente, deveria se sentir culpado por essa morte, pois de fato eram culpados por ela. Hoje, parece-me estranho que essa tendência gótica existisse de forma tão dissociada de qualquer intenção de dar fim à minha vida. Jamais pesquisei ou cogitei por um momento sequer nenhuma forma de suicídio. Era bem possível que eu escrevesse uma frase para o meu funeral pela manhã e, em seguida, tentasse me inscrever numa audição para a peça Annie à tarde. (Meu eu adolescente queria ser a primeira Annie negra. Ela não entendia que Annie tem, no máximo, doze anos). Mas aquele cenário fúnebre ainda me encantava muito. Vadias magrelas de cabelo liso e dentes bonitos segurariam suas cabeças sedosas enquanto choravam envergonhadas. Pessoas cujos pais tinham dinheiro suficiente para comprar lentes de contato (ou ao menos óculos diferentes daqueles oferecidos pelo sistema público de saúde), se curvariam à minha dignidade proletária póstuma. A professora sádica de francês que não me deixava usar casaco puffer em sala de aula seria forçada a admitir na frente de todo mundo que ter nascido no Senegal lhe garantia uma injusta vantagem linguística perante seus pupilos, principalmente perante mim. Comment dit-on la mort? E Sasha voltaria atrás no que havia dito sobre “semicastas”, e as garotas populares reparariam na minha sagacidade e na minha beleza interior e teriam vontade de fazer coisas comigo, e meu melhor amigo perceberia que estava apaixonado por mim — e, para todos eles, seria tarde demais! Tarde demais!


A escritora inglesa Zadie Smith, nos anos 90 [Yuki Sugiura/Divulgação]

Despejei parte dessa energia adolescente apoteótica em Dentes brancos, mas, enquanto no livro ela foi apresentada como comédia, na vida real ela era sóbria, solene e exaustiva. Eu basicamente vinha batendo na mesma tecla desde os onze anos de idade. Eu sou profunda/você é superficial. Você é rico/eu sou pobre. Você é bonita/eu sou inteligente. Você é popular/eu sou interessante. E assim por diante. Agora eu tinha dezessete anos. Mas ainda gastava parte assombrosa do meu tempo acusando outras pessoas de se preocuparem com coisas que, na realidade, ocupavam o meu dia inteiro. Quem, no fim das contas, estava mais obcecada com o balanço da franja reluzente de Eleanor? Eleanor? Ou eu? E com o visual do bumbum cem por cento caribenho de Kelly num jeans com patches? (Eu considerava o meu traseiro, reto como uma tábua, uma herança maldita das irmãs do meu pai.) Na verdade, minha preocupação com a sorte e a beleza alheias já se tornara doentia havia muito tempo, e minha sagacidade degenerara até se transformar em amargura — nada disso era remotamente interessante.

E agora, em 16 de abril, pleno feriado de Páscoa, decidi usar o telefone do quarto da minha mãe para ligar para meu melhor amigo e sufocá-lo mais uma vez dizendo que o amava, e o fato dele não gostar de mim “desse jeito” estava arruinando a minha vida e bem poderia levá-lo a ouvir um longo discurso fúnebre, proferido por meus irmãos ou, quem sabe, por Keanu Reeves, a depender de quem estivesse disponível. Porém, como eu proferia diferentes versões desse ultimato uma ou duas vezes por ano desde que havíamos nos conhecido — aos doze anos—, ele escutou meu drama com muita paciência mas poucas palavras. Enquanto isso, do outro lado da linha do telefone de discar, eu ofegava e chorava copiosamente na esperança de que ele escutasse a mensagem cifrada em “Love 2 the 9s”, de Prince (não tão cifrada), que eu deixara tocando no volume máximo no meu quarto. De algum jeito ele conseguiu me fazer desligar. Me arrastei de volta para o meu quarto. Sentei no parapeito com um maço de Silk Cut roubado da minha mãe, deixei o “7” de Prince se derramar sobre mim e, numa orgia de autocomiseração, chorei em voz alta, peguei um cigarro e me preparei para acendê-lo.

Perfeição frágil de um lado, apocalipse do outro. Jamais esqueci os anos espremida entre esses dois polos

Contexto: na época eu vivia num mundo de puro Prince, e também num chiqueiro nojento que eu mesma criara. Às vezes, quando esbravejo com meus filhos a respeito do estado de seus quartos, lembro de repente do que passava pela minha cabeça quando minha mãe aparecia e tentava se queixar — por cima do som explosivo de “Sexy MF”, de Prince — dos pratos sujos de comida guardados debaixo da minha cama, das bitucas de cigarro jogadas nos pratos sujos de comida e pelas velas que eu gostava de queimar e fundir com o carpete úmido. (Às vezes, se eu cansava de beber um copo d’água, simplesmente jogava o resto no chão.) Sim, quando minha mãe me contestava, meu eu adolescente pensava o seguinte: Pobre mulher. Se ao menos tivesse vida própria! Que existência lastimável não ter nada melhor para fazer além de passar o dia preocupada com essas efemeridades ínfimas! (Meu eu adolescente estava lendo o dicionário). Às vezes ela se colocava à minha frente, segurando um sanduíche de queijo brie com cinco cigarros apagados nele, tendo recém chegado em casa após um longo dia de trabalho como assistente social, lidando com jovens que não tinham queijo brie para pôr no sanduíche e não podiam gritar “SAIA DO MEU QUARTO”, pois dividiam o quarto com os pais. E ainda assim eu olhava para aquela mãe solteira, trabalhadora, imigrante, a minha mãe, e pensava: meu Deus, mulher, cuide de sua vida. De tempos em tempos, porém, eu sentia pena genuína. Sentir pena genuína não significava alterar qualquer um de meus comportamentos, mas mentir que havia feito isso. Naquele abril específico, jurei a ela que não estava mais fumando. Logo: cigarros roubados. Logo: parapeito da janela.

Não tenho certeza quanto à etiqueta vigente sobre mencionar o peso de alguém numa narrativa, mas parte crucial desta contextualização é que meu eu adolescente era robusto e alérgico a exercícios, e por isso sentar no parapeito era uma espécie de desafio. Alguém mais esguio, imagino, conseguiria sentar com as duas pernas voltadas para o telhado em declive, usando um dos braços para segurar a esquadria da janela, mas no meu caso, se uma perna já estava do lado de fora, era impossível passar a outra; por isso, sentei com uma perna para cada lado na esquadria parcialmente apodrecida e, com a confiança excessiva de sempre, usei as duas mãos para tirar um cigarro do maço e levá-lo à boca.

All 7 and we’ll watch them fall

They stand in the way of love and we will smoke them all

Então eu simplesmente… escorreguei. Havia chovido no dia anterior. Ou talvez a estrutura devorada por cupins cedeu, não sei. Mas, numa fração de segundo, meu corpo havia virado inteiro. Agora eu estava agarrada à esquadria com a ponta dos dedos, me segurando como se à beira de um penhasco, como nos filmes. Quanto tempo Cary Grant fica pendurado no Monte Rushmore em Intriga internacional? Parece um tempo improvável. No noroeste de Londres, tudo não durou mais que três ou quatro segundos. Mas, ainda assim! O tempo dilatou, se expandiu, ou coisa parecida. Percebi a infinitude de um segundo. Uma epifania adolescente.

O tempo dilatou, se expandiu, ou coisa parecida. Percebi a infinitude de um segundo

Até tive tempo de pensar: Isso é uma epifania adolescente. E além disso: é como aquele momento em Curtindo a vida adoidado em que a pintura Os banhistas se torna uma porção de pontinhos coloridos individuais, e dentro de cada um desses pontos há mais pontos! Juro por Deus que pensei nisso. E eu estava tão calma! De alguma forma, naquele momento, meu eu adolescente — que ficava tão paralisado e apavorado com a morte quanto meu eu adulto ainda fica — experimentou uma calma extasiante. Eu tinha dezessete anos. Amava livros e filmes e pinturas e todo o trabalho da vida de um homem baixinho que agora eu reverentemente chamava de Symbol. Amava meu bairro e Keats e Whitney Houston e minha escola e meus amigos e meus irmãos e Tracy Chapman e fumar e — me dei conta então — até mesmo a experiência de viver um amor não correspondido por cinco anos. (Como se tratava de uma epifania adolescente, não pensei em meus pais nem por um milissegundo). E agora tudo tinha, tipo, acabado? Nada podia se colocar no caminho do amor (percebi então). O céu é azul. O dia está bonito. Vamos.

So don’t cry

One day all seven will die

Meu eu adulto gosta de pensar na obra que desenvolvi ao longo dos anos como algo vivo, em crescimento, em constante transformação. Meu eu adolescente nem tanto. Ele fala: Em toda a sua “obra” (revira os olhos) você só diz as mesmas duas coisas que eu já dizia em 16 de abril:

(a) O tempo não é o que achamos que ele é

e

(b) Nem o arbítrio.

Chão

Caí sentada na metade do jardim pertencente à vizinha de baixo. Aparentemente, meu irmãozinho viu uma coisa grande passar pela janela da sala, mas demorou para entender que era eu. Naquela época os outros adolescentes debochavam de mim, dentre outras coisas, por causa do meu tamanho, mas fui eu quem riu por último, pois, segundo o médico que me operou mais tarde, meu “bumbum avantajado” salvou a minha vida — ou seja, meu traseiro reto, mas de volume substancial. Não sei se procede do ponto de vista médico, mas pelo visto era assim que os médicos falavam com uma jovem no início dos anos noventa. Ah, eu me sentia uma super-heroína! Eu havia caído dez metros… e sobrevivido! Lembro até de acreditar, por um segundo extasiante, que meu próximo truque seria simplesmente levantar e sair andando. Então senti a dor. Nossa vizinha, uma paquistanesa com pouco domínio do inglês, brotou do meu lado após ter me visto através do enorme vão na cerca, cujo conserto nem a família dela nem a minha se dispunha a pagar. Ela estava em pânico e eu estava calma, não conseguíamos nos entender direito, de modo que, depois de alguns instantes, eu me deitei e olhei para o céu.

Na posição de jovem crítica-em-formação, decidi no ato que aquela droga merecia quatro estrelas

Ela deve ter chamado os médicos, porque tive a impressão de que uma ambulância chegou instantaneamente (o tempo não é o que achamos que ele é), e os enfermeiros me fizeram inalar alguma coisa que deixou o mundo inteiro laranja. Para os fins desta história, adoraria que tivesse sido roxo, mas foi laranja. Que droga maravilhosa! Naquela altura da vida eu já havia experimentado uma boa quantia de substâncias alteradoras da consciência, e, na posição de jovem crítica-em-formação, decidi no ato que aquela droga, fosse qual fosse, merecia quatro estrelas. A essa altura, minha mãe já estava do meu lado, e atribuí ao fato de estar tão chapada que eu não conseguisse responder direito à pergunta: O que aconteceu? Trinta anos mais tarde, continuo sem uma resposta. Por que me soltei? Foi intencional? Eu estava triste. Momentos antes, eu me sentia terrivelmente triste. Mas depois estava tão feliz! Então, caí ou pulei? Foi um acidente? Uma escolha do subconsciente? Uma decisão? Todas as respostas acima? O que as pessoas querem dizer quando dizem que escolheram alguma coisa? Ou que desejavam fazer alguma coisa e fizeram com que acontecesse? Entendo que a sequência de desejar e querer coisas é o modo como criamos e contamos histórias. Mas nem tudo é uma história. E como saber se realmente queremos alguma coisa, ou realmente desejamos essa coisa? Que diabos é o arbítrio, afinal?

Precipício

Às vezes esqueço que Holden Caulfield está tentando impedir crianças de caírem de uma altura elevada: “E eu estou parado na borda de um penhasco maluco. O que eu tenho que fazer é que eu tenho que pegar todo mundo se eles forem cair do penhasco”. Do outro lado do precipício, presume-se, fica o mundo adulto da falsidade, onde todos parecem saber tudo e ter respostas sensatas para todas as questões existenciais. O tempo? Ora, é o que você vê no maldito relógio. Só não esqueça de ajustar para o horário de verão. Arbítrio? Pelo amor de Deus, querida, dá um tempo. Você queria fazer algo e fez: ponto final. Os escritores têm um quê muito adolescente. Eles não param de fazer perguntas infantis. Isso é bom? Eu amava Salinger quando adolescente, mas ao relê-lo adulta, sinto informar, minha reação é outra. Uma coisa é seguir fazendo perguntas infantis, outra é se refugiar permanentemente nos campos de centeio. Sem dúvidas, a chave é seguir propondo questões infantis no mundo engessado dos adultos, pois vai que eles decidam mudar algo por lá, do outro lado do penhasco.

Nesse sentido, tive sorte depois da minha queda, porque a ambulância me levou do mundo abstrato da angústia adolescente direto para a realidade fria e concreta do Hospital Middlesex, nos tempos áureos do Serviço Nacional de Saúde britânico. Lá eu descobri que o tempo — além de uma questão existencial — pode ser também uma quantidade prática que seres humanos oferecem de bom grado a outros seres humanos, seja para colocar pinos de metal em fêmures esfacelados ou para posicionar penicos embaixo de traseiros retos. Percebi que minha sagacidade não tinha qualquer valor intrínseco, e de repente a “habilidade” de analisar Salinger pareceu vã comparada à capacidade da jovem enfermeira que tirou meus pontos e colocou o cateter. Aprendi que vocação era algo real, e algumas pessoas faziam ela se materializar no estudo e na prática da medicina, ou sentando ao lado de pacientes e brincando com seus parentes. Descobri os diferentes níveis de arbítrio que precisam existir a nível nacional para construir um sistema de saúde custeado pelo contribuinte — uma mistura heterogênea de participantes voluntários e involuntários — capaz de levar um grupo de profissionais médicos a dedicar um bom tempo ao longo de dois anos a garantir que uma adolescente malcriada e de bunda quebrada voltasse a caminhar, tudo isso sem que jamais houvesse uma troca monetária direta entre as partes envolvidas. Mas essa é outra história…

Como eu era preguiçosa demais para fazer os exercícios de reabilitação, usei muletas por um bom tempo. Cursei a reta final do colégio de muletas. Uma professora se compadeceu e durante seis meses me levou e trouxe da escola, porque minha mãe trabalhava nesse horário. Enquanto isso, meus colegas foram bem menos empáticos. Eu sempre quis ter uma aura de mistério e fascinação, mas só consegui angariar uma pena esquisita e silêncios constrangidos. Ninguém ousou perguntar se eu havia tentado me matar — nem mesmo minha família —, e embora eu dissesse a quem perguntasse que tinha caído da janela do quarto enquanto fumava um cigarro, ninguém pareceu acreditar muito nisso. A história não fazia sentido, e acabou meio que se consolidando como um dado a meu respeito, um fato que combinava bem com minha reputação geral — uma garota petulante e desengonçada, sempre metida em algo inapropriado e um pouco ridículo. Era bem plausível que a mesma garota que achava bonito usar um sapato vermelho e outro branco, tantas vezes flagrada fingindo ter visto filmes que jamais viu e que uma vez interpretou um rabino numa peça de autoria própria sobre o Holocausto era a mesma babaca que sofreu uma queda de dez metros em sua própria casa. Era Sadie em sua essência. Ou “Zadie” (revira os olhos), como eu recentemente inventara que queria ser chamada. A queda não me rendeu afagos nem respeito, mas curou meu hábito de escrever discursos fúnebres. Eu atravessara o campo de centeio, correra até a beira do precipício e, uma vez lá, olhara para baixo. Nesse processo, descobri uma nova forma de apreciar o centeio. Voltei para a minha poltrona fétida com toda a minha tristeza adolescente, abri um livro e me retirei.

Apocalipse

Às vezes me pergunto: como meu eu adolescente lidaria com sua tristeza nos dias de hoje? Onde uma garota do século 21 pode buscar refúgio da realidade? (Se sua resposta for “na internet”, imagino que tenha mais de cinquenta anos, ou ao menos que ainda é capaz de imaginar a internet como algo em algum sentido dissociado da “realidade”). Temo que as vias de escape tenham se tornado mais escassas. Quando eu pensava no tempo, por exemplo, a única coisa que jamais precisava questionar era se haveria ou não tempo suficiente, num sentido existencial. Mas agora o fim dos tempos — o apocalipse — é, para o adolescente médio, um conceito inteiramente familiar e cotidiano. Não lembro de ter levado a sério o bug do milênio, mas aposto que hoje eu acreditaria no problema do ano 2038. E a quem eu destinaria meus discursos fúnebres? O repertório de pessoas invejáveis já não se limitaria ao meu bairro ou colégio. Agora, ele se expandiria para abrigar todas as pessoas acessíveis por um smartphone — ou seja, todas as pessoas do mundo.

Duas das minhas curas favoritas continuam amplamente acessíveis: as pessoas e os livros

Gosto de pensar que Prince ainda atuaria como mediador no meu mundo, mas sei que este papel seria infinitamente menor do que foi, um pontinho minúsculo numa teia épica de mediação digital tão imensa e complexa que quase parece um cosmo. Acho que eu teria muita dificuldade para determinar se desejava mesmo o que pensava desejar. Eu realmente amo minha rotina de cuidados com a pele? Quero mesmo passar a noite inteira numa fila para comprar a última versão de um aparelho eletrônico? Será que essa rede social de fato me faz feliz e me conecta aos outros? Ou alguma entidade comercial oculta tomou todas essas decisões por mim? Não acho que a tristeza adolescente seja tão diferente do que era antes, mas acho que seu campo de atuação se tornou muito maior e os espaços de refúgio, cada vez mais escassos. Mas gosto de pensar o seguinte: tenho 48 anos.

Hoje em dia, é fácil demais para os adultos mergulhar numa fossa de desânimo adolescente ao ponderar sobre a vida dos adolescentes atuais. Ao invés disso, tento lembrar que, apesar das mudanças óbvias, ainda estão amplamente disponíveis duas de minhas curas favoritas: as pessoas e os livros. Estar com pessoas. Ler livros. De vez em quando, entro no quarto de minha filha adolescente sem bater e tento recomendar essas duas coisas. Você pode imaginar o resultado. O tempo entra em colapso. Eu me arrependo de ter feito isso. Então, por que fiz isso? Que existência lastimável não ter nada melhor para fazer além de passar o dia preocupada com essas efemeridades ínfimas!

Contexto

Contexto

Quem escreveu esse texto

Zadie Smith

Escritora inglesa, é autora de Dentes brancos e Sobre a beleza (Companhia das Letras).