Editoração,

Cabeças de papel

Fundada por Pedro 2º e reinventada por Vargas, a editora estatal Biblioteca do Exército flerta com o olavismo (mas quer ir à Flip)

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

“No livro relembrareis os conquistados louros, no livro bebereis nova coragem, no livro alcançareis doces triunfos, e o livro se tornará o camarada amigo em vossos dias de labor, e o livro mitigará as vossas fadigas, e o livro suavizará as vossas dores. Tende-o!” 

Reunidos na sede do Ministério da Guerra, no Rio, para a solenidade de inauguração da Biblioteca do Exército, os convidados ouviam o discurso flamejante do tenente Tito Amaral, o primeiro diretor da instituição. Era o grande acontecimento daquela quarta-feira, 4 de janeiro de 1882. Segundo o registro do Jornal do Commercio do dia 5, o conde D’Eu e o imperador Pedro 2º estavam presentes à cerimônia de abertura do acervo de 3 mil livros, boa parte comprada na Europa. Encarregado de fazer as honras da casa, o tenente Amaral se esmerou na retórica: “É a instrução o robusto braço do Titã sublime, motor maravilhoso, que converte por toda parte a inação em movimento e as trevas em luz”. 

Entre anáforas e hipérboles, nascia uma instituição com a missão de “proporcionar os meios de instrução aos oficiais e praças” do Exército Brasileiro, como se lê no decreto promulgado em 17 de dezembro de 1881.

“D. Pedro 2º tinha essa face pública de mecenas das artes e das ciências, era grande incentivador da ilustração e da pesquisa, ficou famoso até o ‘bolsinho do imperador’, porque era ele quem decidia pessoalmente as bolsas no exterior para cientistas e literatos”, conta Lilia Schwarcz, autora da biografia As barbas do imperador (Companhia das Letras). “É interessante a data de criação da biblioteca, porque justamente a partir de 1883 começa a série de episódios que vai tensionar cada vez mais a relação entre os militares e os políticos tradicionais do Império, culminando em 1889. Os militares voltam da Guerra do Paraguai exigindo mais direitos e um lugar no jogo político, atribuindo-se esse papel de salvadores imaculados da nação.” 

Criada por um imperador convicto do valor civilizatório da ciência — mas que ajudara a destruir o Paraguai numa guerra —, a Biblioteca seria reformulada meio século depois, por um ditador atento à importância política do front cultural.

No Estado Novo, sob as ordens de Getúlio Vargas e de seu ministro da Guerra, o marechal Eurico Gaspar Dutra, a biblioteca passou a funcionar também como editora. O primeiro lançamento, de 1938, foi a coletânea de artigos e discursos Em guarda!, “um livro ditado pelo momento histórico que atravessamos”, como diz o prefácio. Com textões de militares, oficiais do governo e intelectuais, o volume alerta contra os perigos da doutrina comunista e de sua infiltração no Brasil, que meses antes havia sido invocada para justificar o golpe de Vargas.

Cooper, drones e Taunay

Em meio aos 975 livros publicados pela Bibliex em 81 anos de vida editorial, há surpresas — caso de Capacidade aeróbica (1972), de Kenneth Cooper, que deu nome a um dos mais populares treinos esportivos —, mas a maioria não foge ao que se pode esperar em termos de leituras de caserna. 

Para quem pesquisa a vida militar brasileira, destacam-se no catálogo os volumes de memórias de oficiais, do clássico A retirada da Laguna (de 1871, relançado pela editora em 1959), do visconde de Taunay, a Querido Haiti (2013), de Joanine Kettner. 

“Se penso em minha trajetória de pesquisa, as publicações da Bibliex têm uma importância significativa”, diz a historiadora Adriana Barreto, autora de Duque de Caxias, o homem por trás do monumento (Civilização Brasileira) e professora na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “Ela editou vários diários escritos por oficiais brasileiros durante períodos de guerras e livros de história militar, também escritos por oficiais, nos séculos 18 e 19. Obras raras, a que só teríamos acesso lendo os originais nos acervos restritos da Biblioteca Nacional.”

A Bibliex cortejou intelectuais civis  desde o início — o historiador Luiz Edmundo integrou seu primeiro conselho editorial. Apesar da exaltação panfletária à ditadura, publicou nomes de prestígio da vida intelectual brasileira, como Pedro Calmon (A vida de d. Pedro 2º, 1975), Octavio Tarquínio de Sousa (A vida de d. Pedro 1º, 1972), Mário Henrique Simonsen (A nova economia brasileira, 1975) e Nelson Werneck Sodré (Narrativas militares, de 1959). Sérgio Milliet, Lêdo Ivo, Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai traduziram obras para a editora.

No front internacional, há tratados sobre estratégia e armamentos (de A arte da guerra, de Sun Tzu, ao recente Swarm Troopers, livro sobre drones do jornalista David Hambling), estudos históricos (A guerra do Iraque, de John Keegan, Churchill, o lorde da guerra, de Ronald Lewin) e análises de conflitos geopolíticos e de suas implicações bélicas (O choque de civilizações, de Samuel Huntington; Clausewitz, coletânea de artigos do militar prussiano). 

Mas nem só de chumbo e de memória vive o leitor da Bibliex. A editora tem se dedicado também a outro tipo de conflito: as guerras culturais que vêm conflagrando a política brasileira. Em nova roupagem, com terminologia ajustada aos tempos (saem “subversão vermelha”, “engenheiros do caos” e “metas de Moscou”, entram “bandidolatria” e “democídio”), são numerosas as críticas à esquerda, marca de origem reiterada desde 1938, mas que hoje parece estar em desacordo com o caráter apartidário das Forças Armadas preconizado pela Constituição.

Carlos Patrício Freitas Ferreira, por exemplo, alerta em seu livro Geopolítica mundial e do Brasil no século 21 para o risco de destruição da cultura ocidental por parte dos ex-militantes de esquerda que foram presos durante a ditadura militar (1964–85). “No cenário de final do século 20, após a fragmentação da União Soviética, derrotados na guerra revolucionária que tinham empreendido e beneficiados por plena anistia, os participantes da esquerda radical brasileira, após alguns terem obtido, de forma unilateral, polpudas indenizações, adotaram as teses do filósofo neomarxista Antonio Gramsci (1891–1937) na tentativa de ressuscitar o comunismo como ideologia, visando desestabilizar o Ocidente pela destruição da sua cultura a longo prazo.”

Ferreira elogia a repressão promovida pela ditadura: “Foram adotadas, como necessárias, medidas de exceção, com atos institucionais que reduziram as liberdades civis, para permitir o combate a grupos que haviam tomado a iniciativa de promover atentados terroristas e a guerra revolucionária”, escreve, acrescentando que os “organismos de oposição radical” foram “pacificados pela ação equilibrada, mas firme, das Forças Armadas”.

Também de 2018, Bandidolatria e democídio, de Diego Pessi e Leonardo Giardin, afirma que o Brasil se converteu num “paraíso de bandidos” em razão da predominância de “uma mentalidade que sintetiza marxismo, leninismo, maoísmo, estruturalismo, desconstrucionismo, garantismo e tantos outros ‘ismos’ canhestros”. 

“Farsantes, amorais, golpistas, adúlteros, assassinos, psicopatas e até pedófilos, necrófilos e estupradores são os arquétipos do sucesso”, afirmam os autores, “e têm sua astúcia, ausência de respeito ao próximo e falta de senso de limites exaltadas como virtudes quase divinas a serem imitadas por todos os que desejem ser vistos como ‘vencedores’”. Para não deixar dúvidas sobre a matriz de seu pensamento, Pessi e Giardin dedicam o livro ao “professor Olavo de Carvalho”.

Os livros publicados pela editora são financiados por recursos públicos e enviados a todos os quartéis do Exército Brasileiro. Em 2018, segundo o Centro de Comunicação Social do Exército, a União destinou ao órgão R$ 1.431.708,41. A tiragem média é compatível com a das editoras privadas: 2.500 exemplares, que podem ser comprados em cinco locais: o Palácio Duque de Caxias, as sedes dos comandos militares do Sul (rs) e Sudeste (sp), o museu da feb em Curitiba e o qg do Exército em Brasília. 

A exemplo do que exigem outras editoras estatais do país, para comprar pela internet os leitores civis precisam preencher um cadastro, gerar uma Guia de Recolhimento da União (gru), pagar — somente no Banco do Brasil — e enviar o comprovante por e-mail. A maioria das vendas, porém, vem de um clube do livro pioneiro: um sistema de assinaturas que oferece dez livros por ano a R$ 280, ou cinco por R$ 150. Os assinantes andam em torno de 1.100, de acordo com a editora. No final de 1938, segundo os Anais do Exército Brasileiro, eram 3 mil. 

Questionado sobre o teor político de determinadas obras da editora, o Exército respondeu, por meio de seu Centro de Comunicação Social, que os livros que publica não exprimem posicionamentos institucionais: “A Bibliex contribui para o provimento, a edição e a difusão de meios bibliográficos necessários ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da cultura profissional-militar e geral. As publicações abrangem assuntos de geopolítica, história geral, história do Brasil, história militar, estratégia, dentre outros. Os relatos e opiniões constantes nas obras refletem, exclusivamente, o pensamento dos autores, e não os da Editora ou da Instituição”.

Seja como for, os livros da Bibliex chancelam o discurso oficial das Forças Armadas sobre o que ocorreu em   ações como a missão no Haiti ou a intervenção militar no Rio, tema de um livro a ser lançado em breve.

Barão de Loreto

A criação da Biblioteca do Exército foi ideia de um civil: Franklin Dória, o barão de Loreto, ministro da Guerra de d. Pedro 2º entre 1881 e 1882. Na juventude, o advogado baiano ensaiou uma trajetória literária. Publicou um livro de poemas, Enlevos (1859), do qual Antonio Candido elogiaria “a fluida suavidade do verso”, incluindo-o entre as obras menores do nosso Romantismo; e a tradução, apreciada por Machado de Assis, de Evangelina, poema épico de Henry Wadsworth Longfellow. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, em 1897, ocupando a cadeira 25, que hoje acomoda Alberto Venancio Filho.

A Bibliex se tornou esse animal bicéfalo, híbrido de biblioteca e editora, herdeiro do Império e do varguismo ao mesmo tempo. A biblioteca pode ser incluída entre as iniciativas de estímulo à ilustração e à pesquisa promovidas por d. Pedro 2º. De modo análogo, ao ser reformulada nos anos 1930, guarda relação com instituições criadas por Vargas para promover um espírito patriótico tutelado pelo Estado autoritário. 

“A Biblioteca forma um tripé com o Arquivo Histórico do Exército e o Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, criados na mesma época, mas também pode ser relacionada a órgãos como o Instituto Nacional do Livro e o Departamento de Imprensa e Propaganda”, diz a historiadora Natalia Vial de Oliveira. 

A Bibliex se tornou esse animal bicéfalo, híbrido de biblioteca e editora, herdeiro do Império e do varguismo ao mesmo tempo

“Ela é concebida como um instrumento de combate ao comunismo na formação da oficialidade do Exército. Tem muito peso ali a memória da chamada Intentona Comunista de 1935”, sublinha Oliveira. A insurreição, liderada pelo Partido Comunista, terminou de forma traumática, com mais de trinta militares legalistas mortos.

Sob novo nome — Biblioteca Militar — e nova direção — do general Valentim Benício da Silva —, a “Casa do Barão de Loreto” passou a atender à pauta polarizada do entreguerras. Fazer contrapropaganda ideológica estava na ordem do dia. Severino Sombra, capitão à época, publicou o artigo “Política social do Exército” na coletânea Em guarda!, formulando ações culturais para a “educação patriótica” das tropas. O objetivo era empregar “os próprios métodos soviéticos na ofensiva contra o comunismo”. Os cases de sucesso eram o fascismo e o nazismo, as “grandes manifestações nacionalistas da Itália e da Alemanha”. Naqueles meados dos anos 1930, o liberalismo estava em crise no mundo todo e Vargas flertava com Hitler e Mussolini.

“Os militares queriam construir uma identidade mais coesa entre os oficiais e se colocar acima do que eles chamavam de ‘pequena política’, a disputa partidária, para pensar os problemas do Brasil por si próprios”, avalia Clarice Berkowicz, autora da dissertação “A Biblioteca Militar e a construção da identidade social do Exército Brasileiro”. “É um momento de invenção de tradições”, sintetiza a historiadora. “A própria associação da editora criada no governo Vargas com a biblioteca concebida por Franklin Dória é discutível, já que o acervo original se dispersou e não se sabe o quanto dele continua na Biblioteca do Exército.”

Ao lançar um olhar edificante sobre as Forças Armadas, a editora segue o viés estabelecido desde o decreto de Vargas que a criou: a associação do valor da pesquisa histórica à sua função de repositório de exemplos cívicos e morais, o que no limite acaba por inibir revisões críticas ou debates mais espinhosos. Ao abordar momentos traumáticos de nossa história, como a Guerra do Paraguai, Canudos ou a ditadura, a editora observa a diretriz inicial que faz da escrita histórica uma forma de elogio institucional. 

“Você pode observar isso nos anos 1980, por exemplo, em livros sobre os Voluntários da Pátria, que serviram na Guerra do Paraguai, nos quais há um elogio à miscigenação étnica das tropas, na tentativa de apagar práticas discriminatórias e colocar o Exército como um lugar de democracia racial”, afirma Clarice Berkowicz. “É uma narrativa mítica, que procura eliminar as contradições do meio militar. Esse voluntariado era muitas vezes um eufemismo, poucos aderiram de livre vontade. Havia um recrutamento a pau e corda, com fazendeiros mandando escravos para a guerra para não mandar seus familiares.”

Rumo a Paraty

Sessenta militares trabalham hoje na Biblioteca do Exército. Eles ficam instalados na ala dos fundos do Palácio Duque de Caxias, o edifício inaugurado por Vargas em 1942 para abrigar o Ministério da Guerra e que hoje é a sede do Comando Militar do Leste, no Rio de Janeiro. O atual diretor é o tenente-coronel Marco André Leite Ferreira, que assumiu o posto em fevereiro do ano passado, depois de um ano na missão da onu no Haiti. 

Uma das primeiras medidas de sua gestão foi o lançamento de uma nova logomarca: o grafismo estilizado das letras B e E deu lugar a uma imagem em que as letras são aplicadas sobre o desenho de um livro, lembrando talvez um ícone de aplicativo. Ferreira fez questão de posar para a foto desta reportagem em frente ao banner que mostra a nova marca e o brasão da Bibliex, criado em 1966 — não quis se deixar fotografar nos escritórios da editora, em meio aos livros.

No que depender dos planos de seu atual diretor, os números da Biblioteca vão crescer. No ano que vem, planeja levar seus livros à Flip, expandindo as ações comerciais já realizadas nas bienais do Rio e de São Paulo, além da Feira de Porto Alegre. E ele aproveita a entrevista para dar uma ideia: quem sabe a Quatro Cinco Um não quer resenhar em suas próximas edições um livro da editora?  

Quem escreveu esse texto

Miguel Conde

Organizou Quarteto mágico (Autêntica), antologia de contos de Murilo Rubião, José J. Veiga, Campos de Carvalho e Victor Giudice.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.