A morte cravada na pena

Pesquisa investiga o fenômeno da letalidade prisional no Brasil, pouco registrada e nunca responsabilizada

17maio2023 | Edição #71

Nos espaços de privação de liberdade de nosso país, morre-se muito, sabe-se pouco, registra-se quase nada. Praticamente não se responsabiliza, tampouco se repara. A pandemia de Covid-19 levou aos jornais o problema amplamente e há muito conhecido por todos que vivenciam as prisões brasileiras. Também alavancou editais de financiamento à pesquisa, aqui e em diversos países. Nesse contexto, ao longo de 2022, com recursos da Série Justiça Pesquisa, do Conselho Nacional de Justiça, desenvolvemos o projeto “Letalidade prisional: uma questão de justiça e de saúde pública”. O relatório final, lançado em maio, agrega magnitude ao problema: da intensidade do sofrimento dos que morrem sob a custódia estatal à extensão das práticas administrativas e judiciárias de ocultação dessas mortes. Buscando sistematizar a miríade de documentos e de bases de dados frágeis, mas disponíveis, enquanto expõe detalhes sutis, o relatório oferece um balanço do que é possível conhecer sobre o fenômeno da letalidade prisional.

A expressão “letalidade prisional” se refere ao conjunto de riscos para a saúde associados à exposição à vida prisional e às práticas institucionais de agentes e organizações do sistema de justiça (poder executivo, poder judiciário e ministério público). A letalidade é entendida aqui em sentido amplo, de modo a alcançar tanto as mortes que ocorrem no interior das unidades quanto as que podem estar relacionadas à passagem anterior por instituições de privação de liberdade — ela é parte de um contínuo que muitas vezes começa com a letalidade policial. Como formas de violência de Estado, que resultam na morte ou no adoecimento, argumentamos que precisa ser entendida a partir de um olhar que conecta a polícia, os tribunais e a prisão. A expressão também serve como conceito mensurável, que permite estudar como e em que proporção nossas instituições prisionais são mais ou menos letais, em que medida as condições de confinamento estão correlacionadas com a morbidade e a mortalidade.

Cruzamentos

A pesquisa, fruto de um investimento de coleta e análise de informações por uma equipe multidisciplinar (direito, ciências sociais, administração pública, ciência de dados, medicina e economia), teve dois eixos: olhar para os efeitos das condições da vida prisional sobre a saúde e o bem-estar das pessoas e sistematizar as fontes de informações existentes sobre a morte em prisões. O relatório analisa casos individuais e o conjunto de mortes sem que uma dimensão se desprenda da outra, e alia técnicas qualitativas e quantitativas sem atribuir hierarquia metodológica.

O primeiro eixo estuda os procedimentos (administrativos, judiciais e médicos) para nomear, apurar, classificar e comunicar a morte à família e aos órgãos estatais. Aborda o modo como as instituições identificam, narram e atuam diante da morte, como a explicam e justificam. Para isso, foram adotados dois métodos de trabalho.

O primeiro se debruça sobre estudos de caso que reconstroem as condições de morte e o contexto socioinstitucional que compõe a letalidade prisional. Como as mortes de presos são nomeadas, classificadas e narradas pela justiça criminal? De que modo se dão os fluxos burocráticos entre justiça, administração prisional e sistema de saúde na produção dessas classificações e métricas? Como as agências que compõem o sistema de justiça apreendem e reagem à diversidade de formas que a morte pode assumir no sistema prisional? Procuramos responder a essas questões por meio do estudo aprofundado de casos, escolhidos a partir de critérios como os contextos de produção da morte, as classificações burocráticas, os locais de ocorrência dos óbitos e os níveis de articulação entre instituições jurídicas e administrativas em torno da morte.

A letalidade prisional é parte de um contínuo que muitas vezes começa com a letalidade policial

O segundo método parte dos processos judiciais em que houve decisão de “extinção de punibilidade pela morte do agente” para responder às mesmas perguntas lançadas aos estudos de caso, mas observando um vasto e diversificado acervo documental. Com uma amostra dos processos judiciais que informam sobre a morte de pessoas sob custódia estatal, analisa os autos completos para extrair o mais amplo conjunto de informações possíveis sobre quem morre e como morre e sobre a atuação do sistema de justiça diante das mortes.

O segundo eixo da pesquisa, dedicado à contagem das mortes, foca a construção e a alimentação dos bancos de dados no sistema de saúde, administração pública e sistema de justiça. Aqui se distancia do evento concreto da morte para escrutinar os modos de produção e de intercâmbio interinstitucional de informação sobre a mortalidade e sua associação à exposição prisional. Interessaram as diferentes formas de construção das categorias relacionadas à morte, as implicações de nosso pacto federativo na uniformização dos bancos nacionais e estaduais e os dilemas e as possibilidades de interação entre saúde, gestão pública e justiça. Nesse eixo, nos debruçamos sobre o que tribunais e estados nos informaram (e a generalizada falta de informação) sobre as normas, os regulamentos e os dados relativos aos mecanismos de registro, comunicação e formalização das mortes ocorridas ao longo do processo criminal — o que permitiu lançar luz sobre as conexões e as incompletudes entre as bases de dados da justiça criminal (administrativas e judiciais) e do SUS.

O relatório apresenta, por fim, as recomendações e sugestões à magistratura e a diversos órgãos públicos voltadas tanto a impedir que novas mortes ocorram quanto a reparar as já ocorridas, as que estão ocorrendo e as que ocorrerão até que medidas drásticas de redução do encarceramento sejam tomadas. Uma pesquisa com essa envergadura só foi possível por reunir pesquisadores inseridos nos diversos âmbitos que a letalidade prisional envolve: desde o convívio nas masmorras prisionais, nos fóruns, nos hospitais e nos institutos médico-legais até a intimidade com os aparatos burocráticos da justiça e da saúde, nos diferentes níveis federativos e, ainda, com seus modos de documentar, comunicar e interagir, física e virtualmente, passando inclusive pelas redes de articulação, apoio e luta de familiares de vítimas da violência estatal.

Quem escreveu esse texto

Natalia Pires de Vasconcelos

É professora do Insper.

Maíra Rocha Machado

 Professora Associada na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.