Direito,

Supremo: o estado da arte

Pesquisas mapeiam as forças e as fraquezas do STF, do individualismo dos ministros à busca por transparência

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

O lugar central do Supremo Tribunal Federal no cenário político brasileiro se construiu em torno de múltiplos papéis: órgão de cúpula do Poder Judiciário, resolvendo recursos que chegam às dezenas de milhares, provenientes de tribunais de todo o país; tribunal constitucional, provocado de forma direta a definir o significado da Constituição e decidir a constitucionalidade de leis federais e estaduais; e até mesmo instância originária para o julgamento de altas autoridades, por meio do controverso mecanismo de “foro privilegiado”, previsto de forma extensa na Constituição. 

Desde 1988, o Supremo tem se desdobrado no exercício dessas complexas tarefas, que implicam um grande volume de processos e uma série de questões relevantes para julgamento todos os anos. Não parece exagero afirmar que o STF brasileiro é um dos tribunais superiores mais destacados do mundo contemporâneo.

A Constituição de 1988 já havia colocado o tribunal nessa posição, mas a reforma constitucional de 2004 tratou de fortalecê-lo ainda mais. Introduziu ferramentas de gestão de seu próprio poder, incluindo a “repercussão geral” — que generaliza, para milhares de outros recursos, os efeitos do julgamento de casos individuais selecionados pelo tribunal — e a “súmula vinculante”, que obriga tribunais inferiores e a administração pública a seguir a sua jurisprudência. Nesse processo, atores políticos e sociais, burocráticos e corporativos reconheceram o tribunal como importante instância de recurso contra políticas desfavoráveis a seus interesses, e passaram a inundá-lo com inúmeras ações. 

Na última década, em especial, Ministério Público Federal e Polícia Federal se lançaram a cruzadas de combate à corrupção política no país, transformando de maneira significativa a agenda do Supremo, do Mensalão (julgado em 2012) à Lava Jato (a partir de 2014). Diante de variadas expectativas e provocações externas, o tribunal tem ampliado poderes e possibilidades de atuação, usando muitas vezes casos concretos para avançar as fronteiras de sua autoridade sobre os demais poderes e a política em geral.

Desde que a crise política se instalou, culminando com o impeachment da presidente Dilma, a governabilidade do país vem sendo moldada pelas mãos dos onze ministros do Supremo. Em parte, esse processo pode ser acompanhado em tempo real nas sessões públicas do plenário do tribunal, transmitidas desde 2002 pela TV Justiça e, desde 2005, pelo canal oficial do Supremo no YouTube. 

Com esse grau extremo de exposição pública, o Supremo é um dos tribunais mais visíveis e expostos do mundo. Mas essa exposição não se converte automaticamente em transparência nem em conhecimento sobre como de fato funciona a instituição. Pesquisadores do direito e da ciência política têm enfrentado o desafio de explicar esse funcionamento, e seu interesse aumenta conforme os poderes da corte se expandem. Houve um rápido desenvolvimento de uma agenda de temas e problemas relativos ao modus operandi do tribunal, ao lado de um crescente e importante debate sobre o que devemos esperar da atuação dos ministros e da corte e seus efeitos mais amplos sobre a democracia brasileira.

Nos anos 1990, estudos pioneiros se orientaram pelo conceito de “judicialização da política” — o fenômeno de migração de questões antes resolvidas na política para o campo da Justiça e do Supremo em particular. 

Essa literatura se concentrou nos inputs responsáveis por esse deslocamento — sejam institucionais, definidos pela Constituição, sejam produzidos por atores externos, na forma de ações levadas ao tribunal sobre variados temas. O foco era saber que tipo de questões e ações o Supremo decidia e quem as levava ao tribunal. 

O Supremo e a política

Pesquisas recentes vêm se concentrando nos impactos da atuação do STF na política, abrindo espaço para estudos sobre o funcionamento interno da corte, as regras e os atores no processo de tomada de decisão. O foco passa a ser na formação e conteúdo dos outputs: como o Tribunal decide, e por que decide assim? 

Essas novas perguntas deslocaram a agenda de pesquisa para o comportamento individual dos ministros como unidade de análise. Com inspiração em estudos sobre os votos de juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, partiu-se em busca do “algoritmo da decisão do voto” de nossos onze ministros. Como explicar padrões de votação, mas também variações de votos desses ministros em um mesmo tribunal, às vezes em um mesmo tipo de caso? Em inúmeros artigos, livros, dissertações e teses, pesquisadores construíram excelentes bancos de dados (muitos deles de acesso público) e formularam e testaram hipóteses empíricas, ampliando nosso conhecimento sobre o Supremo. 

Sabemos hoje, por exemplo, que os integrantes da corte dispõem de elevados poderes individuais, inclusive para agir contra uma eventual maioria de seus colegas, e que o processo decisório no tribunal é marcado por grande individualismo dos ministros, dentro e fora das sessões de julgamento.

Isso se expressa, dentre outros fenômenos analisados, na prática de concessão de liminares sobre casos relevantes e sem ausculta prévia do colegiado, como fez o ministro Luiz Fux, em 2014, ao garantir auxílio-moradia para juízes; na estratégia de controlar o timing de votações importantes por meio de pedidos de vista, sem previsão de retorno à pauta do tribunal e ultrapassando em muito os prazos regimentais, como fez o ministro Gilmar Mendes, entre 2014 e 2015, na ação que poderia ter suspendido o financiamento de campanhas por empresas e, nesse aspecto, talvez mudado o curso da história que levou ao impeachment e à presente crise institucional; num estilo de deliberação no qual os votos chegam prontos ao plenário e o debate entre eles, quando ocorre, é quase sempre incapaz de alterá-los, como costuma ocorrer em praticamente todos os casos de grande visibilidade decididos diante das câmeras da TV Justiça.

Temos hoje um mapa quantitativo das decisões do tribunal, e que contrasta em muitos níveis com as deliberações transmitidas na TV Justiça. Desde 1988, quase 90% do gigantesco volume de decisões do tribunal são tomadas monocraticamente por seus ministros (o número é ainda maior no caso de liminares). Por outro lado, em contraste com esse modo personalista de funcionamento e decisão, também sabemos que o relator vence na esmagadora maioria das decisões colegiadas. Mais de 60% das decisões do plenário (e 96% nas turmas) são decididas por unanimidade, e esse número sobe para 83% (99% nas turmas) se excluirmos da contagem Marco Aurélio, o ministro dos votos vencidos.

Do ponto de vista dos atores externos, sabemos que os demandantes mais frequentes em ações diretas de controle constitucional são a Procuradoria Geral da República, os governadores de Estado, as confederações sindicais e associações de classe de âmbito nacional, bem como os partidos políticos. O sucesso que alcançam ocorre aproximadamente nessa mesma ordem, das ações quase sempre exitosas da PGR aos recorrentes fracassos dos partidos. Mesmo com baixa chance de vitória, porém, os partidos continuam a fustigar a corte com suas demandas, seja para marcar posição no debate público, seja para esticar o conflito político por este meio, atrasando a adoção de uma decisão majoritária desfavorável. 

Entre transformações promovidas pelos ministros do Supremo nesse cenário, nem todas dizem respeito a um aumento direto de poder. Composto de juízes não eleitos, não removíveis pelo voto e que não precisam ajustar contas com as consequências de suas decisões, o tribunal adotou algumas estratégias para tentar minimizar a tensão democrática daí decorrente. Dois expedientes foram inaugurados nesse sentido: a crescente abertura para participação de amicus curiae, isto é, a permissão para que terceiros — que não sejam “partes” na discussão — sejam admitidos no processo e que possam se manifestar sobre a questão constitucional levantada; e as audiências públicas, convocadas pelos ministros relatores para ampliar os níveis de informação e de legitimação das decisões a serem tomadas. Todavia, o que os estudos demonstram até aqui é que estes expedientes têm tido pouco impacto sobre o processo decisório do tribunal, configurando uma abertura para a sociedade mais formal ou simbólica do que substantiva.  

Quanto ao processo de indicação de novos ministros por parte da Presidência e sua aprovação pelo Senado, as conclusões ainda são parciais. Especula-se que a trajetória prévia dos candidatos importa, que o tempo que os presidentes levam para realizar suas escolhas — de dias a meses — indica o grau de dificuldade política para exercer suas preferências, que a coalizão partidária de apoio ao presidente precisa ser contemplada de algum modo e que o contexto no qual se dão tais escolhas também influencia. Mas ainda temos um longo caminho até compor uma explicação mais consistente baseada nestes elementos. O que sabemos é que, na prática, feita a indicação presidencial, o candidato pode comprar o terno da posse. Conflito e negociação com frequência existem nesse processo, mas são prévios e difíceis de recompor pela pesquisa acadêmica. 

Presidentes

Percorrendo o caminho de volta, estudos têm investigado se ministros empossados são “gratos” aos presidentes que os escolheram, beneficiando-os na forma de decisões concretas. Tal hipótese tem sido testada de duas maneiras: estabelece-se o indicador do interesse presidencial presente na decisão a ser tomada e verifica-se a existência de correlação entre os supostos vínculos e a decisão do voto dos ministros, ou busca-se verificar o quanto ministros indicados por um mesmo presidente votam em sintonia no plenário (isto é, um mapeamento da indicação presidencial como produtora de “redes de votação” dentro do tribunal). Alguns achados recentes têm mostrado a ocorrência desses agrupamentos, mas de modo ainda metodologicamente precário, enquanto as tentativas de correlacionar votos e indicação presidencial em um grande número de casos, por meio de indicadores substantivos, não chegaram, até aqui, a resultados significativos.   

Dentre os aspectos sobre os quais sabemos pouco ou quase nada, remanescem as motivações dos votos dos ministros, especialmente as relacionadas a fatores externos. Temos motivos para acreditar que os integrantes do tribunal são influenciados pelo contexto político, pela saliência do caso, pela mídia e pela opinião pública, e que a TV Justiça exerce grande influência sobre o comportamento dos ministros. Mas não sabemos exatamente como essas influências se dão — em que casos? Sobre que perfil de ministros? Em que condições? —, entre outras razões pela dificuldade metodológica de operacionalizar empiricamente essas variáveis e de isolar seus efeitos umas em relação a outras. 

O fato é que o tribunal define os problemas que enfrentará ou não. Se suas decisões têm afetado a vida política do país, o mesmo se pode dizer de suas omissões

Por fim, a experiência recente tem indicado de modo dramático que, embora formalmente o Supremo só possa decidir quando provocado por partes externas, a combinação de um vasto número de casos antigos a decidir e a completa ausência de prazos para decidi-los dá ao tribunal na prática um controle completo de sua agenda. Os mecanismos desse controle ainda não foram totalmente mapeados, mas incluem os diversos poderes alocados entre ministros (pedidos de vista, pedidos do relator para inclusão de casos na pauta, controle do presidente sobre que casos serão de fato chamados à decisão). 

O fato é que o tribunal define, a seu critério, os temas e problemas que enfrentará ou não. Se suas decisões têm afetado a vida política do país, o mesmo se pode dizer de suas omissões. Levas inteiras de processos relevantes passam anos sem dar o ar da graça no plenário e nas turmas, consolidando situações de fato, às vezes de constitucionalidade bastante questionável. 

Nesse cenário, um tema perturbador a ser explorado diz respeito à definição dos relatores dos processos. Há um mecanismo de sorteio que, segundo o tribunal, atribui aleatoriamente cada novo caso a um dos onze ministros. Como relator, esse(a) ministro(a) controlará de forma quase completa o andamento do processo. Diversos ministros usam essa oportunidade para  agir como “empreendedores” de certas reformas e causas sociais, políticas e econômicas perante a opinião pública e os atores políticos. 

Por estas e outras razões, as críticas institucionais ao tribunal se avolumam a cada dia. De um lado, aponta-se as contradições e a opacidade de seu funcionamento, o comportamento errático e estratégico de seus ministros, o ativismo político individual de alguns deles, a falta de previsibilidade de suas decisões. De outro, alguns de seus membros se apresentam como a vanguarda de reformas que acreditam necessárias para o país, ou até como articuladores de soluções e acordos junto à classe política. Nessa combinação extrema de poder, exposição, ambição individual e falta de mecanismos de controle, não será surpresa se, num futuro não muito distante, uma agenda de “reforma do Supremo” passe a ocupar lugar central no debate político nacional.

Há cinquenta anos, Aliomar Baleeiro, então ministro do STF, publicou o clássico O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. De lá para cá, apesar de muitas questões ainda em aberto, houve avanços na análise e compreensão do funcionamento do Supremo na democracia brasileira. 

Os resultados de pesquisas aqui mencionados foram alcançados por uma extensa rede de pesquisadores. Como tentativa de adensá-la e de superar coletivamente os desafios de pesquisa empírica sobre o tribunal, foi lançado o projeto Mare Incognitum, que reuniu dezenas de acadêmicos em seminário realizado no ano passado na Universidade de São Paulo, em torno de uma agenda de temas e problemas que marcam a investigação sobre o tribunal. 

Os resultados da primeira edição de Mare Incognitum serão publicados em breve, e um segundo seminário está em preparação para o segundo semestre de 2018. O objetivo é compartilhar ideias, hipóteses, bancos de dados, métodos e técnicas de pesquisa, e consolidar um repertório comum de conceitos e ferramentas de análise numa rede permanente de colaboração, para que um tribunal tão poderoso seja cada vez menos esse “outro desconhecido”. 

Quem escreveu esse texto

Rogério Arantes

Cientista político, escreveu Judiciário e política no Brasil (Sumaré/Educ).

Diego Werneck Arguelhes

Professor associado do Insper, é coautor de Onze Supremos: o Supremo em 2016 (Letramento).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.