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Literatura,

Uma ode ao desejo

Em romance de estreia, Selby Wynn Schwartz transforma precursoras do feminismo em herdeiras da poeta grega Safo

02jul2025

A primeira coisa que fizemos foi trocar nosso nome. Vamos nos chamar Safo.

É assim que começa As filhas de Safo. Mas quem seriam as herdeiras da poeta grega? Selby Wynn Schwartz tenta responder a pergunta nesse seu romance de estreia, publicado no Brasil pela Autêntica Contemporânea com tradução de Nara Vidal.

Lançado originalmente em 2021, com o título After Sappho, o romance apareceu na lista de melhores do ano de revistas e jornais como New Yorker, Washington Post, Time e Guardian, além de ter sido indicado ao Booker Prize de 2022. Nele, a autora entrelaça composições de Safo, nascida no século 7 a.C., e histórias de mulheres que viveram entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do século 20 da nossa era. 

O recorte temporal é certeiro. Nas décadas da modernidade retratadas, vemos o feminismo nascer como organização coletiva, o lesbianismo finalmente ser reconhecido (para na sequência ser brutalmente condenado) e a luta das mulheres pelo direito ao voto avançar. As personagens em cena de fato existiram, mas a autora ficcionaliza a vida das figuras históricas e constrói relações de disputa e de desejo entre elas.

Teias

Construído a partir de textos curtos, o romance tem uma narrativa fragmentada. Isso faz muito sentido, já que o ponto de partida é Safo, cujos poemas também nos chegaram quase que exclusivamente em fragmentos. 

O parágrafo inicial, apesar de curto, é de uma densidade surpreendente e propõe de imediato a ficção. Nem nós, nem as mulheres que aparecem no livro, trocamos nossos nomes para Safo. É a ficção que permite que o romance seja o que ele é: uma teia forte, estabelecida pelas relações imaginadas entre mulheres reais e costurada pelos fragmentos de Safo que nos chegaram de Lesbos.

A frase inicial também revela a estratégia de uma narrativa criada a partir da primeira pessoa do plural (“nós”), que propõe que As filhas de Safo seja narrado por uma espécie de coro feminino que lutou para conquistar direitos para as mulheres — entre eles, o de serem livres em relação ao seu desejo, forjando o que viríamos a chamar de queer. Por escolher a primeira pessoa do plural, também inclui a nós, leitoras, como personagens. 

As composições de Safo gestam decisivamente a visão que temos de ‘poesia lírica’

Há um jogo interessante nessa escolha. Embora as tragédias gregas contenham um coro que comenta, aconselha, reage às ações e lamenta, é raro que faça algo além disso: tanto espacialmente, no teatro antigo, quanto no curso da ação, o coro fica às margens.  

Já o coro de mulheres desejantes proposto por Schwartz é protagonista, e a individualidade das figuras mencionadas se soma à coletividade de mulheres existente dentro e fora dele, o que considero ser uma linha de força poderosa do romance. Também estamos em cena.

Lesbos

Mas, afinal, por que partir de Safo?

Safo foi uma poeta e uma musicista que passou a maior parte de sua vida em Mitilene, na ilha de Lesbos. Não há dados precisos sobre como viveu e como morreu — mesmo na Antiguidade, ela já era uma figura obscura. Ela compôs o que chamamos hoje de “poesia lírica”, ou seja, seus poemas eram cantados com o acompanhamento de uma lira ou de instrumentos semelhantes. Os versos ditavam o ritmo. 

Platão e poetas do período helenístico se referem a Safo como “a décima Musa”. Outros a chamam de “a Musa mortal”. Os alexandrinos reuniram sua obra em nove livros — temos notícia de que o primeiro livro continha 1.320 versos. 

Dessa extensa obra, chegaram-nos poucas centenas de fragmentos, alguns com uma letra ou outra, que não formam sequer uma palavra. Toda a parte musical de suas composições se perdeu. Ainda assim, não é um exagero afirmar que as composições de Safo gestam decisivamente a visão que temos de “poesia lírica”, do amor e do desejo na tradição ocidental. Pelo que restou delas, também vemos que Safo tematizava principalmente o desejo entre mulheres. Não à toa, é a partir do nome de sua ilha de origem, Lesbos, que vem o termo “lésbica”.

Nomes

Ao longo da leitura, encontramos personagens que de fato trocaram seus nomes (não para Safo), por diferentes motivos: há quem não se identifique com o próprio nome, há quem precise adotar um pseudônimo para se proteger da repressão. Esse é o caso de Rina, que inicialmente adota pseudônimos para publicar seus textos em jornais a contragosto do pai; depois, adota um novo nome para ter direito a uma nova vida, após abandonar o marido (de quem foi vítima de violência sexual) e o filho, fruto dessas bodas que foi forçada pelo pai a contrair após o estupro sofrido.

A mudança de nome, sugerida por Schwartz desde a primeira linha, serve a diferentes fins: é o estabelecimento de uma nova identidade, é a adequação à identidade que já existia, mas que não tinha vazão, e é estratégia de insubordinação — ou, dito de outro modo, ferramenta de libertação de corpos oprimidos pelo mundo patriarcal. Tudo isso se constrói com frases que são quase pinturas, devido à alta carga imagética que carregam, embora o texto também se permita ser direto e seco em várias passagens, o que confere à obra um estilo singular que flerta com o da escritora e helenista canadense Anne Carson, citada por Schwartz nas notas finais como referência importante. 

Ressalvas

Depois da última linha, tenho apenas duas ressalvas sobre as escolhas da autora: a primeira é o recorte eurocêntrico das décadas da modernidade, que leva a um enfoque primordialmente embranquecido e que deixa o Sul global à margem. A segunda é a insistência no verbo “escrever” para se referir às composições de Safo. Apesar de se ser uma obra de ficção e, portanto, Schwartz poder fazer o que quiser com Safo (que não sabemos se era letrada ou não, e até podia ser), realçar a dimensão da oralidade poderia ser uma estratégia poderosa. Para mim, é mais fácil aproximar Safo de Amy Winehouse do que de Virginia Woolf, por exemplo.

Feitas as ressalvas, é importante que possamos contar (e fabular) a história centrada em mulheres, ainda mais valendo-se de trechos curtos que, não raro, evocam cartas e diários, gêneros muitas vezes designados, de forma pejorativa, como “literatura feminina”. A autora usa o desejo como linha que costura gêneros e discursos, o que nos faz lembrar do poder que temos quando desejamos. Não nos esqueçamos disso.

Quem escreveu esse texto

Lilian Sais

Escritora, lançou A cabeça boa (DBA) em 2025.

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