Literatura,
Escavando cavernas
Diários revelam como obras de Virginia Woolf se comunicam, transbordam umas nas outras e conectam escritora a leitores de outros tempos
01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93Ao escrever Mrs Dalloway, que viria a ser seu romance mais famoso, Virginia Woolf enfrentou inúmeras tormentas criativas. Pensou em abandonar o projeto e chegou a questionar se ainda deveria ser escritora — tais suas dificuldades. O processo de escrita durou quase quatro anos. Se contarmos a partir do surgimento da personagem principal, Clarissa Dalloway, e não da história em si, então seriam mais de dez, pois Clarissa aparece pela primeira vez, como coadjuvante, no romance de estreia de Woolf, The Voyage Out (1915), que também levou anos para ser concluído. Ao reaparecer uma década depois, é como protagonista de um conto (“Mrs Dalloway em Bond Street”), que logo se desdobraria no romance, como a própria autora registra em seu diário.
É também pelo diário que conhecemos aquele que talvez seja o principal motivo de Woolf não ter desistido de As horas, o título provisório do romance: a descoberta de um método narrativo que lhe permitia se ater à temporalidade de um único dia — aquele em que se passa a ação —, e ao mesmo tempo conectá-la a outras, subterrâneas, que emergem de quando em quando no presente. A essa técnica, Woolf deu o nome de “cavernas”.
Assim ela escreve em 30 de agosto de 1923, no diário (tradução minha):
Eu devia falar sem parar sobre ‘As horas’, e minha descoberta; como escavei lindas cavernas atrás dos meus personagens; acho que isso me dá exatamente o que eu preciso; humanidade, humor, profundidade. A ideia é de que as cavernas se conectem, e cada uma venha à luz no momento presente.
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Cerca de dois meses depois, em 15 de outubro, ela confessa:
Levei um ano inteiro tateando até descobrir o que chamo de minha escavação de cavernas, processo com que revelo o passado em prestações, à medida que me vem a necessidade. Esta é a minha principal descoberta até agora; e o fato de haver demorado tanto a fazê-la prova, acho, o quanto é falsa a doutrina de […] que é possível fazer esse tipo de coisa conscientemente. A pessoa fica num estado lastimável — certa noite decidi até abandonar o livro —, e então de repente topa com a fonte escondida.
Foi essa grande descoberta de um pequeno detalhe que lhe deu um caminho a seguir. Tornou-a capaz de conectar um único dia a todos os que o precederam, e com isso sustentar que um dia nunca é apenas um dia. Assim, pôde fazer ressoar uma vida em todas as outras da sua história. Tece uma temporalidade maior que a deste ou daquele indivíduo, construindo um tempo monumental que abrange não apenas o das personagens, mas também o de um país em luto (a Inglaterra do pós-Primeira Guerra e pós-epidemia de gripe espanhola) e que, em certos trechos, extrapola até mesmo o tempo histórico. Desse modo, apesar de concentrada, a temporalidade no romance mantém-se extraordinariamente expansiva.
Pela autora, vemos como as coisas diminutas que compõem nossa vida são feitas de gravidade e beleza
Foi também esse detalhe descoberto ao acaso o que permitiu que, um século depois, percebêssemos como as obras de Virginia Woolf constituem uma metáfora pulsante do seu próprio procedimento de cavernas: elas se comunicam, transbordam umas nas outras, trazem elementos de umas à tona em outras.
Só quando a totalidade de sua obra (incluindo diários e cartas) começou a ser publicada, no final da década de 70, foi possível perceber a amplitude desse traço constitutivo. Vimos então o quanto seus diários, especificamente, pouco tinham de confessional e o quanto eram híbridos. Como terreno de experimentação e registro de processos criativos, evidenciaram quantas personagens ou cenas foram gestadas ali (é o caso de diversas de Mrs Dalloway) e quantas migraram de outros de seus textos para lá.
De certa maneira, os diários constituíram a grande obra modernista de Woolf: afinal, no decorrer de mais de mil páginas escritas ao longo de 44 anos, trazem lado a lado o sublime e o rasteiro, esgarçando com frequência os limites entre a realidade e a ficção, como ela fez em tudo o que escreveu. Por outro lado, é também um palimpsesto de textos cujas camadas versam sobre assuntos tão diversos quanto relações familiares e maritais, botânica, edição, história, moda, arte, literatura e as fofocas de seu meio.

O mais importante para mim, porém, é que com a técnica das cavernas essa escritora do século passado consegue se conectar com intensidade a leitores e leitoras de outros tempos, incluindo o atual. Virginia Woolf importa não apenas por suas inovações formais impressionantes, por seu papel central no desenvolvimento do romance modernista ou por ser uma figura crucial do feminismo e da teoria literária do século 20. Ela importa porque sua voz reverbera nossas próprias experiências. Através dela, vemos como as coisas diminutas que compõem nossa vida, ao mesmo tempo tão intensa e tão cheia de nada, são feitas de gravidade e beleza. Como tradutora que também foi, Woolf acreditava na passagem para o outro. Existe uma permeabilidade entre o olho que vê, aquilo que ele olha e aquilo em que se transforma ao olhar.
Túnel
Traduzo Mrs Dalloway enquanto cuido de crianças, escrevo um livro e esqueço todos os dias de comprar flores. Traduzo esse livro cento e dois anos depois de Virginia começar a convencer o marido, Leonard, a voltarem a morar em Londres, e me sinto próxima dela. Ela acreditava que sua vida estava se esvaindo no subúrbio, para onde eles tinham se mudado por ordens médicas, após sua tentativa de suicídio em 1915. Eu, cinco anos depois da pandemia, busco a beleza para conseguir respirar, pressentindo ao mesmo tempo o novo horror que se alastra pelo mundo. E nisso somos semelhantes, Virginia Woolf, Clarissa Dalloway, Septimus Smith, os leitores e leitoras comuns de hoje e eu. Graças à conexão entre nós produzida pela obra, tocamos uma experiência profunda que vai muito além de “o que acontece”, pois investe nos pequenos atos do cotidiano com um potencial momentoso.
O ato de traduzir vem sempre atado a determinismos culturais dos quais nem sempre temos consciência. Traduzir impõe a quem traduz uma “prova”, como diz o teórico Antoine Berman — uma experiência política e histórica que exige de nós ler e traduzir ao mesmo tempo com e contra as próprias construções culturais que sustentam a tradução. Cavernas me conectam a Mario Quintana, Denise Bottmann, Claudio Marcondes e tantos e tantas que criaram uma voz em português para Woolf, em Mrs Dalloway, a partir de suas próprias palavras. Agora, dia após dia, sou eu quem fabrica as minhas, enquanto vou a reuniões de escola, dou palestras, faço bolo de maçã e visito familiares doentes.
Woolf fala sobre encontrar forças na vulnerabilidade, usar a criação para se erguer da aflição
Virginia Woolf construiu uma obra — romances, ensaios, diários, contos, cartas — em que, por ligações subterrâneas, uma coisa se conecta à outra, ou, nos termos dela, uma luz aqui requer uma sombra ali. Ao traduzi-la, tenho prazer em descobrir o que se conecta ao quê, ou em fazer emergir aspectos insuspeitos. Um exemplo é a cena em que, logo nas primeiras páginas, Clarissa evoca um gozo feminino, ao relembrar seu desejo reprimido por outras mulheres e por seu amor de adolescência, Sally Seton. Aqui, o trecho em minha tradução:
[…] no entanto era incapaz de às vezes resistir ao charme de uma mulher, não uma garota, de uma mulher confessando para ela, como costumam fazer, algum apuro, alguma besteira. E talvez por pena, ou pela beleza delas, ou pelo fato de ela mesma ser mais velha, ou por algo ao acaso — como um perfume suave ou um violino tocando ao lado (estranho o poder que têm os sons em certos momentos), ela então sem dúvida sentia o mesmo que os homens. Por um momento apenas; porém bastava. Era uma revelação repentina, um matiz como um rubor cuja expansão alguém tenta analisar e que cede, quando este se espraia, e se apressa até o limite mais longínquo e lá tremula, e sente o mundo se aproximar, intumescido, com uma significância surpreendente, uma pressão de êxtase, que rompe sua membrana fina e jorra e verte com alívio extraordinário sobre as fendas e feridas! Então, durante aquele momento, ela presenciava uma iluminação; um fósforo ardendo em uma flor de açafrão; um significado interior quase revelado. Porém a proximidade recuava; o endurecimento suavizava. Tinha terminado — o momento.
Nessa passagem, o orgasmo é retratado não apenas nas imagens sugestivas (como a do fósforo ardendo na flor de açafrão), mas no ritmo. O fato de esse aspecto em Mrs Dalloway ter permanecido pouco destacado nas traduções talvez seja, por sua vez, produto de um túnel: uma reverberação contemporânea do que a própria Woolf chamou, no célebre ensaio “Profissões para mulheres” (escrito seis anos depois), de “impossibilidade” para as escritoras da sua época de falarem abertamente sobre a própria sexualidade. Com isso, o trecho põe em xeque tanto a fala da própria Woolf quanto a ideia de que ela teria sido sutil a respeito do desejo por mulheres em Mrs Dalloway (algo que, aliás, ela mesma vivenciava à época, por meio de seu caso amoroso com a escritora Vita Sackville-West), ou de que Clarissa seria uma personagem frígida. Mesmo tendo lido o romance ao menos quatro vezes antes, só percebi esse ato transgressor da parte de Woolf quando a traduzi, envolvida nesse que é o ato de leitura mais íntimo que se pode ter com um texto.
Trampolim
Por que, então, ainda ler (e traduzir) Mrs Dalloway? Atenta ao que costuma passar despercebido para nós, Virginia teve a coragem de usar o que lhe acontecia — as impressões sensoriais, corporais, da sua própria vida, inclusive as de episódios que chamava de loucura, e que ela emprestou a Septimus Smith — como trampolim para as mais elevadas ideias. Aprendo com ela. Lendo-a, traduzindo-a, escuto sua voz enquanto a recrio. Ela fala sobre encontrar forças na própria vulnerabilidade, usar a criação para se erguer da aflição, fazer do não saber um percurso digno, habitar o momento como um ato de criação e resistência. O momento — não apenas o momento grandioso de ser, mas o momento de não ser, insignificante, repetitivo — não implica necessariamente superficialidade: guarda em si o potencial de gerar raízes fundas. Virginia Woolf nos lembra de olhar para borboletas ainda que aviões de guerra sobrevoem nossas casas. Não como um escapismo, nem para ignorar ameaças bastante concretas. Mas porque a vida não é nem só aviões, nem só borboletas: a vida é interligação, um movimento contínuo que segue resistindo e cedendo, contra todas as nossas previsões.
Nota da redação
Os diários de Woolf são publicados pela editora Nós, com tradução de Ana Carolina Mesquita, e compõem um projeto editorial focado nas obras da escritora. O quarto volume está previsto para o fim de 2025 e o último para 2026.
Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “Escavando cavernas”
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