

Literatura, Trechos,
Um romance na linguagem secreta da comunidade travesti
Em ‘Neca: um romance em bajubá’, Amara Moira conta as histórias de amor e as aventuras sexuais de uma personagem trans; leia um trecho
04out2024Recém-publicado pela Companhia das Letras, Neca: um romance em bajubá é a estreia de Amara Moira no gênero. Doutora em teoria literária, Moira é autora de E se eu fosse puta (N-1 Edições, 2023), anteriormente publicado como monólogo na antologia A resistência dos vaga-lumes (Nós, 2019).
Em Neca, a escritora e professora narra em pajubá o reencontro de uma travesti com um amor do passado, a quem conta as memórias das aventuras sexuais do tempo em que era prostituta no Brasil e na Europa.

Com inspiração em línguas africanas, como o iorubá, a linguagem foi batizada de pajubá (ou bajubá), que significa “mistério” ou “segredo”. Criada entre as décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura no Brasil, nasceu como uma forma de comunicação e resistência da comunidade LGBTQIAPN+.
O primeiro documento oficial do pajubá, no entanto, foi lançado no Brasil apenas em 1992, com O diálogo de bonecas, organizado por Jovanna Baby, idealizadora da Astral (Associação de Travestis e Liberados), que lutou por garantias de direitos humanos para travestis no final dos anos 1990 e publicou o dicionário.
Leia a seguir um trecho do romance de Amara Moira.
Trecho de Neca: um romance em bajubá
Passada! O ocó, cê acredita que ele pediu pra eu nenar na neca dele? Ainda bem que na neca e não na boca, porque cê sabe que tem. Nenar nenar, mona, que chequinho no truque nada. O negoção é que ele queria, a melequeira toda e ele lá se esbaldando. Se rolou? Oras, que jeito? A chuca feita recém, água saindo translúcida, praticamente potável, e dois minutos depois, não chegou nem a dar dois, olha quando me liga o lixo. Sem xoxação, eu ainda sentada no trono… e o futum de prova, tava só por Deus. Aqüé babado que ele ia me dar, bicha. Uó. E, ó, tentar até tentei. Falei que ele ligou na hora certa, a Dona Nena na portinha quase, um puta dum equê, porque ia sair o quê, né? Nem o champagne quentinho direito teve, quanto mais o coiso que ele queria tanto. Deu só aquele caldinho do édi de ficar forçando, o que salvou, isso e o botão de rosa, o édi c’os beição pra fora e ele lá tascando beijos. Quando o lixo que niente, só que, se ele é mais fresquinho e nena ele tá de boa, vixi, é justo com quem acontece…
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Cheque faz parte, é do ofício. Prevenir a gente tenta, embora nem sempre dá. Comer, poucos que eu gosto gosto. Nisso, cona é às vezes melhor, porque ativos ficam horas e horas na meteção, não cansam, e uma hora a chuca, mesmo a mais bem feitinha, vence, aí cê faz o quê? Tem bofe que surta, não é cara de nojinho só, não, eles apavoram — como cê é porca, desse jeito não tem mais como! Mulher, é o que eles dizem. Essência de flores o que eles queriam ali, acredita? Ali não é bem o que tem, tem é o jantar de ontem. Mas checão deles, parcelado e com fundo,
esse ô se tem fundo, aí a gente tem que lidar normal, cheirão babado empesteando o ar e a cara de paisagem do infeliz — que foi que eu fiz? Que foi que eu fiz? Nada, bebê, acontece. Não quis nem fazer antes, foi? Não deu vontadinha? Aposto que agora deu. Agora, a minha neca pra ficar didê, que já nem é meu forte, antecipando ainda essa cena uó, o guanto todo melado e eu tendo que tomar cuidado a hora de tirar daquele edi que já nem tem mais prega, haja imaginação!
Bicha, às vezes cê faz umas caras. E “bicha”, não é que eu tô te xoxando, não, viu? É pajubá, a língua das bicha, aqui é tudo travesti. Só ficar aqui por um tempo e cê já vai catando. Eu nem penei tanto, acho. Acho que só fui indo, ouvindo, parlando aqui um pouco, um pouco outro ali, igual quando eu tava em Madri e tinha que dar o truque no castelhano — sôi brasilenha, carinho, te gusta? Las mariconas se quedavam doidas com a gente. Doidas. Lá, aqui, onde for, o povo é tudo doido, não é só dar ou comer que eles querem não, querem também cunete. Olha o que eles têm coragem, mona, tascar a linguona, e aí eles fazerem, ok, pó cavucá à vontade, boca é sua, mas e a cara de pau de perguntar se eu faço? Arrepio só de pensar, aquele edi suado, cheio de pelo, nena e ofofi gritando, só os tarzanzim dependurado: Uôuôuôuô! Aí oral querem sempre, sempre sem guanto, aquela neca uó, último banho sabe-se lá quando, e que a gente ainda chupe se deliciando o sacão peludo, pelancudo dele (afe!). Fora o leitinho na boca, a minha, e todos, todos, parece até ensaiado — confia em mim, sou casado, doador de sangue. Sei. Anel no dedo até tem, mas o de trás já virou pulseira de tanta neca que rodou ali, a maioria no pelo, aposto. Conheeeço. Edivaldo, Edivaldo, cê não me engana nada: fui brincar ali com o dedinho, conhecer o terreno, um, dois, um, dois, e ele quase engoliu minha mão. Só imagina a necometragem do lixo! Depois vem se arreganhando pra cima de mim, querendo pôr sem, ver se eu deixava entrar, a maricona toda desentendida — quês que cê? quês que cê? Senhor, como eu odeio essas trucosas malditas!
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