

Literatura, Trechos,
A tragédia de um destino
Em Na voz dela, Alba de Céspedes narra o desejo de libertação de uma mulher que vive sob a tutela do marido na Itália fascista
24mar2025A inconformidade com o trágico e injusto destino reservado às mulheres marca a obra literária da ítalo-cubana Alba de Céspedes. Na crônica Na voz dela, publicada pela Companhia das Letras com tradução de Joana Angélica d’Avila Melo e posfácio de Elena Ferrante, a autora de Caderno proibido continua a expressar sua revolta contra a dominação patriarcal ao acompanhar a história de uma talentosa pianista reduzida à sombra de seu esposo, durante a Itália governada pelo fascismo.
A crônica retrata o forte impulso amoroso e extraconjugal da musicista Eleonora, que entra em conflito com a sua condição de mulher submissa ao marido. Narrada pela filha, Alessandra, a história revela um contexto opressor de desigualdade de gênero, que cerceava brutalmente os desejos femininos.

Guiada pelo sentimento de decepção com os anos de fascismo italiano, Céspedes narra a tentativa da protagonista de rumar em direção à emancipação feminina, por meio do amor. Explorando também a relação entre mãe e filha, a autora não poupa detalhes sobre a sombria conjuntura política e social da época e evidencia a urgente necessidade da equidade de gênero.
Trecho de ‘Na voz dela’
Assim, o grande edifício parecia habitado só por mulheres: na realidade, pertencia‑lhes o domínio inconteste daquela escada escura que elas desciam e subiam diversas vezes durante o dia, com a sacola vazia, com a sacola cheia, com a garrafa de leite envolta num jornal, acompanhando os filhos à escola com a cestinha e a lancheira, reconduzindo os filhos metidos em aventaizinhos azuis que despontavam de sob os casaquinhos demasiado curtos. Subiam sem sequer olhar ao redor: conheciam de cor os rabiscos que historiavam as paredes, a madeira do corrimão era luzidia por causa do atrito contínuo das suas próprias mãos. Somente as moças desciam ágeis, atraídas pelo ar livre; seus passos retiniam sobre os degraus como granizo sobre vidro. Dos garotos que moravam no prédio não recordo grande coisa: de início eram menininhos indelicados que viviam o dia inteiro na rua, iam jogar futebol no jardinzinho paroquial e depois, ainda muito jovens, eram absorvidos pela repartição paterna; e do pai logo assumiam o aspecto, os horários e os hábitos.
Mas o prédio, abandonado e triste por fora, respirava através do vão de seu grande pátio como através de um pulmão generoso. Diante das janelas internas, estreitas sacadas de grades enferrujadas revelavam, por seu arranjo, a condição e a idade dos inquilinos. Ali alguns ocultavam móveis velhos, outros guardavam gaiolas de frangos, ou brinquedos. A nossa era adornada com plantas.
Nesse vão sobre o pátio as mulheres viviam à vontade, com a familiaridade que une as pessoas que habitam um colégio ou uma cadeia. Mas tal confiança, mais que do teto comum, nascia do fato de se reconhecerem na penosa vida que levavam: através das dificuldades, das renúncias, dos hábitos, uma indulgência afetuosa as ligava, sem que elas mesmas soubessem. Longe dos olhares masculinos, se mostravam verdadeiramente como eram, sem a necessidade de levar adiante uma pesada comédia. A primeira batida das janelas ao serem abertas marcava o início da jornada, como a campainha num convento de freiras. Todas, resignadas, aceitavam, com o nascer de um novo dia, o peso de novas fadigas: sossegavam considerando que cada gesto cotidiano delas era apoiado em outro gesto semelhante realizado, no andar de baixo, por outra mulher envolta em outro robe desbotado. Nenhuma ousaria parar, por medo de interromper o movimento de uma engrenagem precisa. E, pelo contrário, em tudo aquilo que fazia parte da vida caseira percebiam inconscientemente a presença de um modesto valor poético. Uma cordinha que corria de uma sacada a outra para melhor estender as roupas era semelhante a uma mão que se estendesse pressurosa; cestinhas saltitavam de um andar a outro socorrendo, com um utensílio emprestado, uma necessidade repentina. Contudo, no decorrer da manhã as mulheres se falavam pouco: às vezes, nos momentos de pausa, alguma vinha se apoiar na grade e olhava para o céu, dizendo: “Que sol bonito, hoje”. À tarde, ao contrário, o vão sobre o pátio ficava vazio e silencioso; atrás das janelas se intuíam quartos, cozinhas arrumadas. Alguma velha se sentava à sacada para costurar, e as criadas para debulhar ervilhas ou descascar batatas que deixavam cair numa panela disposta ao seu lado, no chão. Depois, ao anoitecer, também estas entravam de volta para seus afazeres e essa era a hora em que eu vivia solitária acima do pátio como se ele me pertencesse por direito.
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No verão, com frequência, depois do jantar os homens também se sentavam nas sacadas, em mangas de camisa ou mesmo vestindo pijama: no escuro se via palpitar os vaga‑lumes vermelhos dos cigarros. Mas as mulheres se diziam somente “Boa noite”, e a voz delas estava diferente. Às vezes falavam das doenças das crianças. Todos, porém, entediados, entravam logo, fechando as janelas, e entre as sacadas se abria um grande vazio negro.
Minha mãe quase nunca aparecia nesse espaço e apenas, como eu disse, para regar as flores. Essa reserva que agastava as inquilinas lhe valia, porém, a admiração delas. Assim nossa família, embora paupérrima, desfrutava de uma consideração especial por causa da gentil beleza, do comportamento elegante de minha mãe, e de seu humor sempre leve e sereno.
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