O escritor palestino Ghassan Kanafani (Divulgação)

Literatura, Trechos,

Ghassan Kanafani e um dia em Gaza

Em ‘O que lhes restou’, autor fundamental para entender a Palestina conta a história de dois irmãos vivendo sob as violências do colonialismo sionista

30set2024

Publicada originalmente em 1966, a novela do palestino Ghassan Kanafani ganhou nesta semana a primeira edição brasileira pela Tabla, com tradução de Ahmed Zoghbi. Ambientada em Gaza, a história de dois irmãos se desenrola ao longo de um dia inteiro na cidade e mistura presente e passado, além de trazer uma curiosa conexão com o deserto e o relógio.

Uma das vozes mais importantes da literatura palestina, Kanafani foi assassinado em 1972, quando uma bomba explodiu seu automóvel. Na época, o serviço secreto israelense reivindicou o ataque que matou o jornalista e sua sobrinha de dezessete anos, Lamis Najm.

Kanafani é autor de Homens ao sol (Tabla, 2023, trad. Safa Jubran), publicado uma década antes da sua morte, e que também fala sobre as violências do colonialismo sionista e a resistência dos palestinos. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘O que lhes restou’

Agora podia olhar diretamente para o sol pendurado na superfície do horizonte, que se dissolvia como uma tocha púrpura imersa na água. Logo, mergulhou por completo, deixando linhas em chamas para trás, suspensas nos limites do céu, que começaram a retroceder sobre um fundo, primeiro de um cinza brilhante, depois uma mera tinta branca.

De repente, surgiu o deserto.

Pela primeira vez ele a via respirar como uma criatura. Misteriosa, estranha e mansa ao mesmo tempo, transfigurava-se em ondas cinzentas de luz, que desapareciam pouco a pouco por trás do escuro céu que caía.

Imensa e obscura. Porém grande demais para amá-la ou odiá-la. Não era completamente silenciosa, e ele a percebia como um corpo monstruoso a respirar com um som audível. À medida que afundava nela, sentia vertigem; sobre sua cabeça, pairava um céu calado, enquanto a cidade ficava para trás até restar um ponto preto perdido no horizonte.

Diante dele, até onde a vista podia alcançar, o deserto respirava e ele a sentia subir e descer

sobre seu peito. Ao redor, no coração desse muro preto, brotavam, uma após outra, estrelas cintilantes, que brilhavam cada vez com mais intensidade.

Só então soube que não voltaria mais. E longe, atrás de si, Gaza desaparecia em sua noite trivial. Primeiro sumiu a escola, depois a casa, enquanto o mar de prata se dobrava e retornava ao coração escuro. As luzes suspensas das ruas permaneceram por alguns instantes, cansadas e fracas; depois se apagaram, lentamente. Ele andava e deixava as pegadas emitirem um som abafado. Experimentava aquela sensação que o invadia sempre que se jogava nos braços das ondas: sentia-se forte, grande e fluindo com uma firmeza inacreditável, ao mesmo tempo que impotente e frágil.

Fundia-se na noite, como um novelo de lã com a ponta amarrada em sua casa em Gaza. Por dezesseis anos, fios de lã se emaranharam nele até que se tornou um novelo, que ele agora desemaranhava e se deixava enrolar na noite. “Repita comigo: dou-lhe por esposa minha irmã Mariam.” “Dou-lhe por esposa minha irmã Mariam.” “Por um dote de…” “Por um dote de…”

“dez guinéus.” “dez guinéus.” “Tudo para o futuro.” “Tudo para o futuro.” Sentado diante do xeique, sentiu os olhares dos presentes cravados em suas costas — todos que ali estavam sabiam que ele não a daria em casamento se ela não estivesse grávida — enquanto o canalha que será seu cunhado, sentado a seu lado, ria por dentro, com um som perceptível.

Tudo para o futuro, é claro. Menos o rebento, o mais urgente, que revirava em suas entranhas.