Trechos,

Instrumento de uma causa ou tendência da estação?

Escritora e colunista da Quatro Cinco Um, Djaimilia Pereira de Almeida reflete sobre seu lugar de autora negra em novo livro; leia trecho

02ago2023 | Edição #72

“Sou negra e escrevo o que sou. Mas haverá isso? Um ponto de vista particular, qualificável segundo essa etiqueta?”. É a partir de perguntas como essas que a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, colunista da Quatro Cinco Um, propõe uma reflexão sobre raça, gênero e cultura contemporânea em O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, que será lançado no dia 8 de agosto pela Todavia.


O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, de Djaimilia Pereira de Almeida, lançamento da Todavia

O livro reúne dois ensaios e uma conversa entre Djaimilia e a poeta e tradutora Stephanie Borges, promovida pelo Instituto Moreira Salles. Nos textos, Djaimilia investiga com franqueza e sensibilidade as armadilhas de, como escritora negra, ser ora vista como “o instrumento de uma causa”, ora como “uma moda, uma tendência comercial”.

Nascida em Luanda em 1982, a autora de, entre outros, A visão das plantas (Todavia) e Luanda, Lisboa, Paraíso (publicado no Brasil pela Companhia das Letras e vencedor do prêmio Oceanos 2019), mescla ensaio social e pessoal para entender seu lugar e de outras mulheres negras que escrevem hoje. Leia um trecho a seguir.

Trecho de O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo

Sou negra e escrevo o que sou. Mas haverá isso? Um ponto de vista particular, qualificável segundo essa etiqueta? O mundo em que vivemos parece achar que sim. Dum lado da barricada, é-me dito que pertence aos exemplares dessa categoria um papel social que, a certo ponto, vai além do ofício de escrever propriamente dito. Desse lado, aguardam da escritora posições, declarações de princípio, um posicionamento claro sobre as questões do nosso tempo. Do outro, é-me dito que nada distingue uma escritora por ser negra, mas também que a categoria corresponde a uma moda, a uma tendência comercial, a um objecto do mercado. Os lados digladiam-se. Como me verão, dum lado e doutro? Uns ver-me-ão como um produto. Outros, como instrumento de uma causa. Outros, como frouxo exemplar da mesma. Outros ainda, lerão os meus livros. A maioria, ignorá-los-á. Não acredito que exista uma imaginação negra, a imaginação característica de autores negros. Também não acredito que tudo (na imaginação) seja político, como não acredito que os sonhos que temos durante a noite são políticos. E, contudo, sou negra e escrevo o que sou, quem sou. Escrevo livros. Penso livros. É o mesmo ofício. Se os meus livros não podem ser melhores do que sou, também não podem não ser da minha cor.

Se os meus livros não podem ser melhores do que sou, também não podem não ser da minha cor

Manequim de montra-produto: serei suficientemente bonita? Suficientemente exuberante? Transmitirei uma imagem empoderada, confiante, enérgica, suficientemente feminista? Admitir-me-ão um semblante triste? Um esgar dubitativo? Posso vestir cores escuras — ou tenho de me ficar por roupas que vão bem com a minha pele? Posso ser gorda, ou tenho de ser magra, radiosa, elegante, perfeitamente penteada? Qual o ponto certo entre a cor e a sombra? Posso pensar antes de falar, ou a hesitação cheira a esturro? Posso ter dúvidas, ou tenho de ser rápida, mais veloz do que a minha sombra, continuamente alegre, leve, grata, fresca alface, uma pena? Levantar voo? Posso ser superficial? Tenho de usar óculos de massa, posso ter acne ou cieiro nos lábios? Posso sorrir nas fotografias? Posso ser vespa, zangão, ou só borboleta?

Serei tendência da estação, como os chumaços e as blusas de laçada e o azulão? Como as bandanas, as bermudas, posso roer as unhas, que significa uma mulher ser uma moda, sim, agora as pretas estão na moda. Serei uma mulher ou uma coisa? Uma preta é uma pessoa ou uma divisa? Na moda como os iPhones, o streaming, os carros eléctricos, o marfim, a pimenta, as esmeraldas, quem me decretou tendência da estação? Está a passar, vêm aí as asiáticas, as eslavas, as coreanas são melhores do que as nigerianas, mais misteriosas. É literatura ou categoria porno? Quanto vale a autora em barras de ouro? Sou moda como gadgets, carros eléctricos, serei, ainda, uma pessoa? Outono-Inverno 2015-16 — ou escravidão?

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.