Os Melhores Livros de 2024, Poesia,
Poeta de fôlego
‘Épico escalafobético’ de Adelaide Ivánova reescreve poeticamente a história pela voz dos oprimidos em tom anarquizante e desaforado
01dez2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dezNo Livro de Ester, um dos doze livros históricos da Bíblia, lemos que, ao sétimo dia de grandes banquetes, estando já “alegre do vinho”, o rei persa Assuero, vulgo (especula-se) Xerxes, ordena que tragam a rainha Vashti, “com a coroa real, para mostrar aos povos e aos príncipes a sua beleza”. Na tradução de João Ferreira de Almeida, lê-se: “Porém a rainha Vasti recusou a vir conforme a palavra do rei”. Essa recusa é o ponto de partida de Asma, de Adelaide Ivanóva, “épico escalafobético”, no dizer da autora, que sob a máscara de Vashti Setebestas peregrina pelo sertão-mundo, séculos, fronteiras e identidades adentro, tomando por modelo aquela recusa original.
Porta-voz da desobediência e mestre em esculacho, Vashti/Adelaide se lança num projeto de reescrita poética da história pela voz dos oprimidos, sempre em tom anarquizante e desaforado, anticlássico por excelência. Manipula com absoluta insubordinação a tradição épica, já desde a resposta da ré Vashti ao rei Menelau, que no tribunal que abre o livro lhe pergunta quando tudo começou: “Quando eu disse pra um macho/ Vai te lascar pra lá!”.
Essa “entidade feminina”, como escreve a autora, conduz Asma e viabiliza a técnica, típica do alto modernismo, do cruzamento de temporalidades — como Tirésias em The Waste Land, de Eliot, cujo poema “A jornada dos magos” (primeiro verso: “Foi um frio que nos colheu”), parodiado, vira “A jornada das migas” (primeiro verso: “Um calor do caralho”). As semelhanças param aí: Tirésias é um observador trágico, Vashti é a protagonista desabusada de andanças, perrengues e lutas sem fim.
Estruturalmente, Asma divide-se em seis livros. O primeiro, “A tempestade”, compreende o interrogatório de Vashti, cujas respostas afrontosas operam arqueologias da opressão:
No mesmo tempo em que Aruaques/ Astecas/ Incas/ Tupinambás/ Kariris (etc.)/ eram massacrados no novo mundo/ no velho trabalhadoras/ eram expulsas de suas casas/ marcadas como animais/ queimadas como bruxas.
O segundo livro, “Memórias do KKKárcere”, traz cenas-poemas de claustro físico, político ou existencial (“páginas adiante aprendo/ que pardas caboclas cabras sertanejas […] são nomenclaturas/ raciais ou laborais/ inventadas e registradas/ pós-invasão/ e eu aqui nessa gaiola/ sem poder fazer nada”).
Remexendo episódios dolorosos, ‘Asma’ sempre comunica um entusiasmo valente e desabusado
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Em “Setebestas-Fera”, o terceiro livro, seguindo a epígrafe de Mary Del Priori (“cantar o sofrimento de alguns monstros”), Adelaide defende a vaca, a piranha, a mula — e também os animais mortos em Leningrado, em “Bestiário #4”: “os bichos que não foram comidos morreram de inanição/ no cerco a Leningrado”.
O quarto livro intitula-se “Epitáfio Pessoa” e ilustra uma pequena história da xenofobia à brasileira, tendo como mote um editorial de 1954 do Estado de S.Paulo. Ficamos sabendo que “é preciso tomar providências” em relação à “entrada abrupta de milhares de nordestinos, muitos dos quais são portadores de moléstias contagiosas”. Seguem-se poemas, todos brilhantes, com títulos como “Disidrose”, “Sarna”, “Candidíase” e “Transtorno de estresse pós-traumático”. Em “Cólera #1”, por outro lado, a xenofobia tem endereço na Alemanha, onde mora a poeta.
A recusa original de Vashti aqui é a recusa em ser tratada como cidadã de segunda classe, mas essa batalha gera traumas, que se manifestam em ataques de cólera contra espremedores de laranja ou alemães folgados: “Ele protestou, reclamou seus direitos, dizendo eu cheguei/ aqui primeiro. Na fila ou no país?, pensei, e saber a resposta faria toda/ a diferença”.
O quinto livro chama-se “Diccionario de medicina phantastica e das sciencias populares” e comporta uma história do Brasil em dez poemas, dedicados a resistências e insurreições lideradas por mulheres, de 1501 a 1875, desde as moçoró do primeiro poema, que avistam a chegada dos invasores: “No fresco do mês de agosto/ junto ao rio que nos nomeia/ apareceu, tenebroso,/ peixe de pano e madeira”. Em “1646, Tejucupapo”, Maria Camarão tem um bom conselho para Vashti: “Te emancipa, mulher, foi o que ouvi/ de Maria Camarão quando eu disse que achava/ os galegos bonitinhos e tinha pena de escaldá-los”.
Em “1817, Revolução Pernambucana”, a entidade entra em conflito com a revolucionária porém sinhá Bárbara de Alencar, que lhe pergunta o que acha do levante: “Sempre olhando pra baixo, pro pano/ que costurava, respondi: olhe, sinhá, aprecio/ a liberdade de culto e de imprensa, mas sem abolição/ sua revolução é patacoada”. A abertura desse poema, aliás, é bem exemplar do livre encaminhamento de Vashti pelos séculos: “Nem me lembro mais como eu fui parar/ no Araripe, deve ter sido atrás/ ou fugindo de macho,/ isso faz mais de cem anos, sei lá”. E esse “deve ter sido atrás/ ou fugindo de macho”, como dos “galegos bonitinhos”, dá boa medida do humor que se manifesta pelos extravios eróticos de Vashti entre emancipação e desejo.
Crachá de nordestino
O sexto livro, por fim, se chama justamente “Asma” e, de início, retoma o tema da xenofobia. Mas aqui se encena a travessia de uma migrante nordestina na companhia de seu Leônidas, sempre com o recurso das temporalidades cruzadas, reforçando a persistência das opressões. A cena inicial, contemporânea, com seu Leônidas e seu rádio Toshiba, comprado “usado nos anos 90”, será atravessada por episódios inspirados em estratégias de cerceamento de outros momentos históricos. Entre eles, uma reportagem de 1939 da Gazeta do Norte mineira, epígrafe do segundo poema, menciona um delegado que sugere realizar um cadastro e tornar obrigatório o uso de uma placa: “Só quem tivesse esse crachá poderia mendigar em locais públicos”. Adelaide escreve: “Seu Leônidas logo se arretou e com razão/ quem já viu, um crachá de nordestino.”
O livro se encaminha para o poderosíssimo poema-título, “Asma”. O mote são pesquisas que têm associado a condição asmática a traumas sofridos por mães em gerações anteriores. Adelaide explora aqui uma ancestralidade biológica do trauma, a asma como herança-fantasma da dor: “Escrevo com esse corpo que já morou no da minha mãe”.
De livro a livro, nunca se sabe o que esperar de Asma, obra em tudo surpreendente e original. Remexendo episódios dolorosos, sempre comunica um entusiasmo valente e desabusado, recusando a obediência e também o esmorecimento, convocando e inventando sua comunidade. Manipulando técnicas modernistas de maneira muito própria, com sotaque forte e desencanado, revela ao mesmo tempo um trabalho sério e apaixonado de pesquisa. Por tudo isso, é preciso andar com Vashti/Adelaide, nessa volta que quer “reclamar/ não posse de coisas/ mas da história.”
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Poeta de fôlego”
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