Poesia,

Revolvendo os escombros

Com título emprestado de museu, novo livro de vencedora do Prêmio Oceanos explora ruínas do Rio

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

“Gêneros literários são notórios preguiçosos”, diz Anne Carson em uma entrevista. A escritora canadense vem produzindo uma obra que não se fixa em nenhuma categoria e já recebeu diversos prêmios em reconhecimento às suas experimentações. Inclassificável é também a obra de Marília Garcia, vencedora do Prêmio Oceanos em 2018 com Câmera lenta (Companhia das Letras). Ambas se assemelham tanto no modo como evocam e atualizam suas especialidades quanto na densidade filosófica de seus escritos. 
Foi pelo próprio selo, a Luna Parque, que Garcia lançou seu último livro, Parque das ruínas. Nele, acende fagulhas de novas percepções com um tom íntimo e narrativo que oscila entre ensaio e poesia. Sua obra tem se demonstrado incontornável na cena atual da poesia brasileira, seja pelas questões sobre as quais se debruça, seja pelo diálogo com grandes representantes em diversos campos do saber. Permeada por interrupções e intermitências, a narrativa de Parque das ruínas flui, mas é inconstante.

No prólogo, Garcia cita uma obra da artista Rose Lynn-Fisher, em que lágrimas são ampliadas em microscópio: “Essas imagens/ que parecem feitas de longe/ mostram algo que está muito muito/ perto/ tão perto/ perto demais”. Depois, conta o episódio que ensejou o livro: a encomenda de um texto por parte de um professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em greve por falta de repasses públicos. Durante uma visita à Chácara do Céu, museu mantido pela Uerj, sentiu vontade de tomar café, mas, sucateado, o lugar nem sequer servia a bebida: ela tinha que atravessar a passarela até o Parque das Ruínas, instituição contígua. Os episódios estavam ligados: a cidade e sua universidade mergulhadas em escombros. Dali em diante, Garcia segue com experimentações que refletem sobre a experiência do olhar e ver. É tocante como ela lança mão de diversos artistas para compor seu próprio experimento, como Georges Perec, cuja escrita também se baseia na aplicação de procedimento, Paul Auster e os cineastas Antonioni, Harun Farocki e David Perlov.

Mais do que lampejos de beleza, estão em jogo na obra de Garcia também conceitos e ideias. Se entendemos que toda vivência comunitária é política, as provocações e proposições levantadas pela autora nos fazem questionar o lugar do artista dentro de uma estrutura política, bem como a ideia de comunidade em colapso.

Mais do que mil palavras

Garcia causa incômodo e estranhamento tanto nos habituais leitores de poesia quanto nos novos — e mais uma vez se aproxima de Anne Carson, já que as duas colocam em xeque as identidades do leitor e da literatura, revelando que ambas se constroem e desconstroem na relação com o olhar, a memória e a história. O deter-se demoradamente, o olhar que de tão próximo parece distante e de tão distante parece próximo, o vagar pelas ruínas e coincidências, a descoberta do infraordinário. O que leva alguém a fazer e dizer essas coisas estranhas?

A voz que retorna constantemente aos mesmos eventos, sempre acrescentando referências e perspectivas, e a repetição como procedimento forçam a língua a dizer coisas que não gosta de dizer. Talvez por isso os poetas sejam os que menos respeitem a língua em nome da produção de novos sentidos. Porque ter respeito pela língua, esse fator de identidade, é ter respeito pelo poder e pelas fronteiras. Nenhuma escolha é por acaso. O vagar autônomo da autora, que narra os eventos que levaram à escrita que testemunhamos, atesta outro tipo de experiência em relação ao saber: a do caráter fragmentário da verdade.

Em Parque das ruínas, as palavras irrompem em meio a imagens em baixa resolução, e somos obrigados a reconhecer a pobreza das primeiras e a grandeza das últimas. Porque uma escrita límpida é uma escrita mentirosa, e a necessidade de recortar, partir e se obrigar a dizer essa pobreza das palavras é o que permite ver a grandeza da poesia. É um método incômodo, mas acolhedor, pois se desenrola como um diário em fluxo de consciência, recolhendo elementos cotidianos e entrelaçando-os. Ao fim, fica a impressão de que o livro resguarda a crença no poder da poesia de nos levar a lugares interditos da mente.

Em sua última obra, Marília Garcia segue formulando perguntas sem dar respostas. Perguntas que atravessam o corpo, a cabeça e o coração. Para que serve um poema? Não faz diferença, se a todo momento a poesia se impõe a nós.   

Quem escreveu esse texto

Yasmin Nigri

Artista e poeta, escreveu Bigornas (Editora 34).

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.