Literatura,
Um cronista atípico
Martinho da Vila lança livro de crônicas sobre 2018 e fala de política, Carnaval e o embranquecimento de Machado de Assis
01nov2019 | Edição #28 nov.2019Lula livre, Marielle presente e os despautérios de Jair Bolsonaro são alguns dos assuntos tratados por Martinho da Vila em 2018: crônicas de um ano atípico (Kapulana), livro de 48 crônicas organizadas ao longo dos doze meses do ano. Mas, no vis-à-vis, quando a prosa bate na fronteira política, o artista enrola, contorna e pega o primeiro retorno (sem perder, no entanto, a voz mansa e o sorriso espontâneo que lhe são característicos). “Artistas não precisam se declarar contra ou a favor de algo, não precisam ser engajados”, diz ele, em entrevista concedida à Quatro Cinco Um em seu apartamento, em um condomínio nobre da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. “O samba de raiz é de esquerda, mas não de uma esquerda engajada. Ele sempre foi politizado e crítico, mas de maneira indireta.”
‘Bolsonaro diz ser contra as cotas raciais e há negros bolsonaristas. Como é que pode?’
Sobre a eleição de Jair Bolsonaro, a esta reportagem, limita-se a dizer: “Ninguém consegue explicar, não dá para entender”. Mas, em tom decisivamente mais afiado, elenca em uma das crônicas do livro, datada da antevéspera das eleições, uma série de frases escusas do ex-capitão, divididas por temas como “negros”, “tortura” e “coro no filho gay”. Em outro texto, escrito em setembro, questiona: “O candidato do PSL diz ser contra as cotas raciais e há negros bolsonaristas. Como é que pode?”.
Ainda no campo político, um dos episódios mais marcantes narrados no livro é o encontro com Lula, na cadeia, acompanhado de Chico Buarque, em agosto. “Cheguei bastante apreensivo, devagar, devagarinho, calculando que ele estaria de ‘teto baixo’. A prisão provoca um estado depressivo, difícil de ser contornado. Que nada! Cruzamos os olhares e abriu um sorrisão”, escreve. À reportagem, insiste em retirar o cunho político da visita, embora seja abertamente elogioso ao amigo: “Ele é bastante forte e é uma pessoa muito culta. Soube que deu uma balançada ultimamente, que ficou muito nervoso. Mas Mandela ficou preso por 27 anos!”.
Mais espinhoso é o tópico da amizade com Sérgio Cabral, preso desde novembro de 2016 e réu em trinta processos da operação Lava Jato, e com Aécio Neves, que aguarda julgamento por corrupção passiva e obstrução da Justiça na mesma operação — ambos mencionados em uma crônica escrita em janeiro, na qual alude vagamente a seus desacertos políticos. “Eu não posso defender o lado deles, eu separo as coisas bem. Mas a amizade tem que ser para sempre. Eu gosto do Pezão, o Aécio é meu amigo, o Cabral eu conheço desde criança”, conta.
O maior espetáculo na Terra
Ao longo da conversa, o carnaval na política abre espaço para as politicagens do Carnaval, universo no qual Martinho firmou sua trajetória — sua alcunha vem do nome da escola de samba do coração, a Unidos de Vila Isabel, da qual já foi compositor, intérprete e diretor de Carnaval e, atualmente, é presidente de honra. Em 1988, concebeu o enredo para “Kizomba, festa da raça”, que deu o primeiro campeonato à escola e produziu o samba de enredo de mesmo nome, um dos mais célebres de todos os tempos, assinado por Luiz Carlos da Vila, Rodolpho de Souza e Jonas Rodrigues. Em 2013, viu o samba “A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo”, que compôs junto com o filho, Tunico (ao lado de Arlindo Cruz, André Diniz e Izainaldo Leonel), levar a escola ao terceiro título — o segundo foi conquistado em 2006, quando Martinho teve divergências com a escola após ver seu samba derrotado e optou por não desfilar.
Para o Carnaval de 2020, ele declara estar fora da competição de sambas. “Antigamente, eu gostava de disputar, ganhando ou perdendo, mas, por causa da forma da disputa, não gosto mais. Hoje, é como se fosse uma campanha política: ganha quem fizer mais barulho”, diz. Destaca, no entanto, a qualidade dos enredos atuais de suscitar a reflexão — neste ano, a Mangueira levou o título narrando a biografia do Brasil pela ótica dos heróis ausentes dos livros de história e, no ano passado, a Paraíso do Tuiuti chamou a atenção com um enredo que questionava o fim da escravidão.
‘Os enredos de Carnaval mais bem recebidos têm posicionamento. O ‘Brasil gigante pela própria natureza’ é coisa do passado’
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“Nos anos 1930, Getúlio Vargas recomendou que se fizessem temas sobre a história do Brasil. Fizeram diversas vezes, sob várias óticas, o descobrimento, a República, a Abolição, mas sempre de acordo com a versão dos livros. Atualmente, os enredos mais bem recebidos são os que têm posicionamento. O ‘Brasil gigante pela própria natureza’ é coisa do passado”, diz. “Teve um tempo em que havia uma exaltação à princesa Isabel, por exemplo, pois se lia que a Abolição foi uma dádiva sua. Mas não, foi consequência de uma luta grande. O Carnaval é uma aula”, diz, em concordância com os versos mangueirenses de 2019: “Não veio do céu/ Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão no mar de Aracati”.
Em 2018, o próprio Martinho foi enredo da escola de samba paulista Unidos do Peruche, em celebração aos seus oitenta anos, algo que relata orgulhosamente no livro: “Com 40 anos ao quadrado, como prefere dizer, o oitentão samba no alto do último carro como se fosse um menino, canta como se o homenageado não fosse ele e é aplaudido em todo o percurso”. (Aqui, abro um parêntese: o uso da terceira pessoa é frequente ao longo das 204 páginas, mas se alterna com alguns textos em primeira pessoa — algo que, se por um lado preserva a liberdade do autor, por outro, poderia ter sido uniformizado, sem grandes perdas ao leitor, pela edição, que também deixa passar alguns percalços de padronização e deslizes gramaticais. Nada, no entanto, que comprometa a leitura.)
Apesar de não querer mais compor sambas de enredo, Martinho elenca alguns motes que ainda gostaria de levar para a avenida: “Ecumenismo, para falar de todas as religiões juntas, o que daria um bom visual; o folclore brasileiro com base nas mulheres que lavam roupa, tema do meu disco O canto das lavadeiras e que acabou sendo o enredo da Viradouro para 2020 — algo de que gostei e não gostei, pois eu queria desenvolvê-lo para a Vila Isabel; e diplomacia, que eu estudei bastante e que, na minha opinião, pode resolver todas as questões mundiais”.
Diplomacia e ativismo
Martinho foi o segundo sambista a ultrapassar a marca de 1 milhão de cópias vendidas com o álbum Tá delícia, tá gostoso, de 1995 (o primeiro foi Agepê, com Mistura brasileira, de 1984), ganhou o Prêmio Shell de Música Popular Brasileira em 1991 e venceu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Samba em 2005, 2009 e 2016. Mas, mais do que um músico de sucesso, ele é também um dos maiores pesquisadores das origens da música brasileira e um intelectual aclamado. Entre seus títulos estão o de Comendador da República da Ordem do Barão do Rio Branco, em grau de Oficial, e a Ordem do Mérito Cultural, pela contribuição à cultura brasileira, além de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), honra concedida no fim do ano passado — o discurso que proferiu na solenidade deste último consta na íntegra em 2018: crônicas de um ano atípico, que, aliás, é o 16º livro lançado por ele, entre obras de ficção e não ficção para adultos e crianças.
Para adquirir mais conhecimento, Martinho decidiu fazer o curso de relações internacionais na Faculdade Estácio de Sá, do qual concluiu o terceiro ano em 2018 (o quarto, explica, é voltado a quem vai de fato atuar na área). “Até pouco tempo atrás, o aluno de faculdade tinha uma classe social, um tipo de roupa, até um desenho físico”, diz, celebrando a mudança no perfil. “Na minha sala, havia dois colegas que moravam na [favela da] Rocinha. No geral, penso que estamos progredindo como sociedade. Fala-se do morro e de como não havia crime organizado ou milícias. O morro em que eu fui criado era uma maravilha, mas, mesmo que tenha sido, eu não quero voltar para lá. O passado nunca é melhor do que o presente”, conta o músico criado em Duas Barras, município do interior fluminense, a 180 km da capital, homenageado em uma das crônicas de seu livro — “Que cidadezinha bucólica!”.
Sobre a situação do negro no Brasil atual, reconhece que ainda estamos muito atrasados, mas vê avanços significativos. “Até 1988 [ano da promulgação da Constituição], não se discutia racismo fora do movimento negro e não havia negros em universidades ou em posições de liderança. Mas houve uma evolução. Primeiro, o movimento teve a coragem de contestar, depois, de mostrar a importância do negro na formação do Brasil e, em seguida, na cultura do país. Hoje, no entanto, encontra dificuldades em seu objetivo principal, que é ocupar espaços”, diz, citando a disparidade racial em cargos governamentais: “Veja as fotos do governo brasileiro, seja do federal, do estadual ou do municipal… não há negros”.
Ao abordar, em seu livro, os 130 anos da Lei Áurea, completados em maio do ano passado, escreve: “Muitos ativistas do Movimento Negro não festejam porque, passados 130 anos, a situação do negro no Brasil ainda é péssima” (a crônica, no entanto, termina em tom alegre, pois a data marcou também suas bodas de prata com a mulher, Cléo). Em outro texto, chama a atenção para a conotação negativa da cor preta em expressões como “mercado negro” e “buraco negro”. E, em um terceiro, celebra Cruz e Sousa: “Além de ser o nosso maior poeta negro, foi um dos precursores do simbolismo no Brasil. Viva a cultura negra!”.
Quando o negro vira branco
Dos escritores brasileiros, destaca entre seus favoritos Lima Barreto e Machado de Assis, duas vozes negras (nem sempre assim identificadas) que estão entre as mais celebradas da literatura. “Eu me inspiro em Lima quando escrevo sobre o dia a dia, mas me apaixonei pela literatura por conta de Machado. Eu me identifiquei com ele. Ele também morou no morro, a mãe dele era lavadeira como a minha e ele era preto como eu”, diz o autor de Memórias póstumas de Teresa de Jesus (Ciência Moderna, 2003), escrito para a mãe, assumindo que nem sempre soube da cor da pele de Machado. “O Brasil embranquece todo negro que sobe na escala social, e o negro também assume isso: vira branco. Também a história, não sei se propositalmente, não quis deixar referência para os negros. Então, por muito tempo, não se sabia que Machado de Assis era negro, que Lima Barreto era negro, que Cruz e Souza era negro, que Zumbi dos Palmares era negro, que Aleijadinho era negro… a fotografia de Machado sempre foi embranquecida.”
‘O Brasil embranquece todo negro que sobe na escala social, e o negro também assume isso: vira branco’
Aproveitando a pauta das minorias, Martinho reconhece por que algumas de suas letras mais antigas possam sofrer leituras machistas e faz um mea culpa em relação à canção “Você não passa de uma mulher”, de 1975: “Na composição, você precisa buscar a palavra exata. Mas, às vezes, ela acaba não sendo exata para a situação. Se eu tivesse pensado um pouco mais, teria colocado ‘e você é uma mulher’, teria ficado perfeito. As palavras ‘não passa’ foram mal colocadas”. Também alvo de críticas é “Mulheres”, música de Toninho Geraes que ele lançou em 1995. “De início, foi-se dito que era machista. Depois, acho que começaram a entender. É a história de um cara que teve vários relacionamentos. Como todos e todas têm. E, após todas as relações em busca da pessoa ideal, ele finalmente a encontra”, diz, jogando no ar também a possibilidade de o eu lírico ser uma mulher ou, ainda, de ser um homem que encontrou a felicidade em outro homem.
Esses possíveis deslizes não subtraem seu talento com as palavras. Estas, em 2018: crônicas de um ano atípico, mantêm o tom da oralidade e lembram, muito, as de um diário. Não tendo o artista redes sociais — ou, ao menos, não alimentando-as ele próprio: o trabalho é delegado à sua equipe —, o livro é, no mínimo, uma oportunidade de ler algo próximo ao que seriam os “textões” de uma personalidade notável sobre assuntos que alternam o noticiário e sua vida íntima. E ainda que, logo na introdução, antecipe o estado de espírito que circundou seu atípico ano (os meses são descritos como “péssimo”, “horrível”, “triste”, e por aí vai), Martinho nos garante, olho no olho, que, como canta em um de seus maiores sucessos, a vida vai melhorar: “Quem se estagna está na pior. As mudanças da sociedade foram feitas pelos otimistas, pelos que acreditam. Quem não acredita não faz nada. Vai melhorar, sim”.
Matéria publicada na edição impressa #28 nov.2019 em outubro de 2019.
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