Literatura infantojuvenil,
Onde vivem os monstros
Poemas de Roald Dahl, autor de “A fantástica fábrica de chocolate”, mostram o lado malvado dos bichos
06mar2021 • Atualizado em: 18maio2023 | Edição #44Um alerta aos leitores. Este livro contém: a) uma vaca voadora que faz cocô em pleno voo (azar de quem passar por baixo); b) um porco reflexivo que conclui, sem remorso algum (e por que deveria?), que é melhor devorar seu dono do que ser devorado por ele; c) um monstro vivendo na barriga de um menino que exige pudim e paçoquinha; d) um crocodilo chamado crocomito (e “nunca se viu animal mais maldito”), entre outros confeitos de imaginação.
Bichos malvados, livro de poemas infantis do escritor inglês Roald Dahl lançado pela Editora 34, é uma pequena joia e um excelente mostruário da obra de um dos mais queridos e populares contadores de histórias inglês. Pois é na poesia que seu humor travesso, afeito aos jogos de palavras, mais se destaca — assim como o belo trabalho de tradução das poetas Angélica Freitas e Marília Garcia. Como por exemplo quando um tamanduá faminto, que no original confunde o sotaque americano de aunt (tia) com ant (formiga). Na tradução de Freitas e Garcia, a tia é espertamente batizada de Dona Rosa, e o trocadilho com sotaques é substituído por outro, sobre nomes de flores. A velhinha ainda assim termina devorada, pois “o tamanduá não sabia/ que ela era apenas uma tia”. Tudo isso acompanhado pelas ilustrações de Quentin Blake, ilustrador favorito de Dahl, cujo traço reforça os ares espevitados, surpresos e doidos tanto de animais quanto de humanos.
Uma infância sem contato com a obra de Roald Dahl, seja ela por meio de seus livros, ou pelas inúmeras adaptações de sua obra ao cinema, é uma infância incompleta. Histórias como A fantástica fábrica de chocolate, Matilda, O bom gigante amigo ou O fantástico Senhor Raposo estão inseridas na memória afetiva de adultos e crianças há décadas. Ele domina como ninguém um senso de humor particularmente britânico que consegue, ao mesmo tempo, ser deliciosamente maldoso (o prazer inenarrável que sentimos no modo como Willy Wonka vai eliminando cada uma daquelas crianças insuportáveis em sua fábrica de chocolate, por exemplo) mas também gentil, como na relação entre o narrador órfão e sua avó em As bruxas, já duas vezes adaptado para o cinema como A convenção das bruxas.
Polêmicas
Mas Dahl também não se viu livre de polêmicas. Se os oompa-loompas de Willy Wonka carregam o peso do colonialismo inglês, e suas bruxas uma dose de sexismo, foram suas críticas a Israel durante a Guerra Civil do Líbano (1975-1990), acompanhadas de generalizações antissemitas, que lhe mancharam a imagem. Mesmo que amigos judeus, como o filósofo Isaiah Berlim, tenham saído em sua defesa ao desconsiderar suas declarações como meros caprichos infantis de um provocador de mesa de jantar — o equivalente inglês do “tiozão de churrasco” —, o estrago estava feito. Dahl foi um veterano da 2ª Guerra Mundial que serviu na Força Aérea (experiência que inspirou seus populares gremlins) e como espião (que o levou a roteirizar Com 007 só se vive duas vezes, de 1967), mas seu desprezo pelo nazismo não o impediu de recair em generalizações insensíveis, especialmente ao final da vida. Contudo, é difícil dizer que, em sua obra infantil, isso seja um aspecto dominante, ou mesmo sequer perceptível durante a leitura — diferente, por exemplo, da discussão nacional que se trava quanto a Monteiro Lobato.
Dahl é sobretudo um autor que respeita seu leitor infantil ao não tratá-lo com condescendência. Há nele a sensibilidade do adulto que, não se esquecendo de que já foi criança, lembra que a infância, em seu confronto com as regras ora desconhecidas ora incompreensíveis do mundo adulto, é uma aventura repleta de terrores e encantos em iguais proporções. Parte do que podemos considerar sua deliciosa crueldade como narrador é que, em seus livros, as ações sempre têm consequências, e estas são quase sempre irreversíveis — mas podemos conviver com elas e seguir adiante. E muito da sensação que sua obra traz ao leitor adulto é como se, voltando a ser criança e sendo confrontado com o dilema “travessuras ou gostosuras”, escolhêssemos ambos para sairmos correndo rindo às gargalhadas, apenas para em seguida passar mal de tanto comer doce.
Este texto foi feito com apoio do Itaú Social.
Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.
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