Literatura estrangeira,
Pacto sinistro
Romance mostra como a troca de segredos terríveis cria relações de poder em relacionamentos amorosos
01jun2020 | Edição #34 jun.2020Um casal de namorados vive uma relação tempestuosa: “Era como se gostássemos um do outro sem medida apenas para poder apurar que nos detestávamos. Ou vice-versa”. Ele é Pietro, jovem professor de literatura no ensino médio em Roma. Ela é Teresa, sua ex-aluna, agora adulta. A dinâmica de hostilidade e de traições mútuas é entrecortada por períodos de harmonia, sempre brevíssimos: “Parecíamos convencidos de que a violência com que injetávamos continuamente desordem entre nós enfim nos transformaria num casal harmônico; mas essa meta, em vez de se aproximar, só se afastava”. Mais do que amor, o narrador escolhe palavras intranquilas como agonia, fúria, languidez, abatimento, necessidade, urgência, desejo.
Um dia, depois de uma briga que parecia irreparável, fazem as pazes e dobram a aposta, selando uma espécie de pacto: cada um deve contar ao outro o seu segredo mais terrível. Teresa começa, Pietro a segue. Assim, passam a se conhecer como ninguém e a ter, um sobre o outro, um poder desmedido. Essa é a premissa de Segredos, novo romance de Domenico Starnone, que acaba de ser publicado no Brasil pela editora Todavia, em mais uma ótima tradução de Maurício Santana Dias. Como ocorre em Laços (um de seus romances anteriores), o livro, embora breve, é dividido em três partes. Cada uma traz uma perspectiva diferente.
O primeiro relato é o mais longo e o mais complexo, uma espécie de novela. Narrado em primeira pessoa por Pietro, conta a história de sua vida a partir do acordo feito com Teresa. Pouco tempo depois da troca de confidências, o casal se separa, amistosamente. Anos mais tarde, ele conhece Nadia e se apaixona. Os dois se casam, vivem bem, têm três filhos. Ele passa a prosperar cada vez mais na vida de intelectual, antes bastante modesta.
Mas o temor de que Teresa poderia vir a usar o seu segredo contra ele, destruindo assim a vida que construiu, assombra Pietro por toda a narrativa. Em busca de se tornar um homem bom, faz um esforço de retidão orientado por uma estética mais do que por uma ética — gosta mais de si mesmo conforme se aproxima da imagem que idealizou para si próprio.
“Devo admitir que, a princípio, tive a impressão de estar imitando algum outro: um personagem de romance ou do cinema que eu havia esquecido; ou alguma pessoa real com quem eu topara na infância por poucos minutos e que me marcara. Mas a certa altura — fato novo em minha vida — cheguei a me dizer: não, finalmente aos quarenta anos essa sensibilidade e essa inteligência são mesmo minhas.”
Supereu
Mas ocorre que Pietro nunca está confiante dessa posição. É sempre invadido por um mal-estar específico. Duvida de si mesmo em todas as áreas da vida (como professor, como marido, como pai, como pessoa), é inseguro, frágil e autocentrado em excesso, mas empenha-se em demonstrar uma leveza que nunca experimentou. Gosta de parecer simpático e quer se convencer de que não tem grandes aspirações, mas admite que não organizara sua vida “baseada em grandes ambições simplesmente porque, se eu era imperfeito até nas pequenas coisas de uma vida pequena, imagine o que teria sido nas grandes coisas de uma vida grande”.
Para ser bom, Pietro faz um esforço de retidão orientado por uma estética mais do que por uma ética
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Se, de um lado, o narrador teme que o arranjo com Teresa possa destruí-lo, de outro, parece grato ao fantasma que o obriga a se manter na linha. É como se delegasse a ela uma espécie de supereu, conceito da psicanálise que Starnone cita nominalmente em seu romance: “Estava me propondo um controle à distância, um supereu exigentíssimo que nos próximos cinquenta anos falaria a mim com a voz dela, e a ela com a minha?”. Grosso modo, para Freud, o supereu atua como censura, fazendo uma mediação entre as profundezas do eu e o que chega à superfície. Da mesma forma, Pietro também passa a temer que aquela Nadia que conhece e ama traga consigo outra Nadia: “Uma coisa é a pessoa amada, outra é a pessoa real que, enquanto a amamos, nunca vemos realmente”.
O segundo relato é de Emma, filha de Pietro e Nadia. É uma narrativa breve, também em primeira pessoa, em que somos apresentados à versão adulta da personagem que acompanhamos antes, pelas palavras do pai, quando ainda era menina. Esse texto é e não é a história de Emma, pois ainda que nos conte de suas questões principais, entre elas está, na centralidade, a presença afetuosa da figura paterna. O grande evento de sua narrativa é uma homenagem preparada pelo Estado a professores notáveis, e ela faz de tudo para incluir o pai no rol de homenageados. Portanto, o trecho também é sobre ele, agora visto pelos olhos admirados da filha. A esse evento convidam Teresa, agora uma cientista com reconhecimento internacional, para discursar como ex-aluna de Pietro. Ele está com quase oitenta anos; ela, com quase setenta.
O terceiro relato é da própria Teresa, por ocasião desse mesmo prêmio. Enquanto a história de Pietro está localizada no passado, a de Emma e a de Teresa se encontram num mesmo tempo narrativo, mais próximo do presente. Esse relato é ainda mais sumário do que o anterior. Teresa resume a sua história de vida a poucas linhas e então retoma a história com Pietro, a partir de sua perspectiva.
O contraste produz inconsistências interessantes e, mais importante, nos apresenta o fato de que as páginas narradas por Pietro na verdade são parte de um romance que ele escreveu na velhice e lhe enviou por e-mail. Paramos de ler quando Teresa também desiste da leitura. Por isso, o final fica em aberto. Agora, quem pode dar um desfecho é ela. Pietro passa a temer, como sempre temeu, que, depois de consolidar sua vida como um homem no caminho do bem, Teresa, por gosto, por maldade, para espicaçá-lo, apareça para lembrar a todos que embaixo dessa figura há outra soterrada, muito menos nobre.
Ao autor, então, coube fazer essa montagem, pois a perspectiva intermediária, a de Emma, é inapreensível para Teresa. Quando nos damos conta desse truque, o romance quase perde a força. Quase, porque é uma história tão boa que temos vontade de perdoar o mágico por deixar ver o fundo da cartola.
Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.
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