Flip, Literatura,
No passinho do kuduro
Primeiro romance de Kalaf Epalanga é embalado por ritmos dançantes e pede acompanhamento musical
01jul2019 | Edição #24 jul.2019O romance de estreia do angolano Kalaf Epalanga é um livro para ser lido com acompanhamento musical. Note-se que não se trata aqui de uma sugestão como outra qualquer, visando ao ajuste de condições exteriores (encontrar um ambiente confortável, livre de distrações etc.) para favorecer a experiência da leitura. O acompanhamento musical externo é, nesse caso, uma exigência interna à obra, pois a experiência de leitura depende de um conjunto específico de canções, sem o qual uma dimensão central da narrativa é perdida. Enquanto escrevo este texto, por exemplo, escuto o excepcional disco Angola 72, de Bonga, um dos grandes nomes da arte de resistência angolana.
A obra parte da história de um músico e escritor angolano (o próprio Epalanga) que, ao se dirigir até a Suécia para um concerto em Oslo, capital da Noruega, é detido por tentativa de imigração ilegal, por estar sem passaporte. Antes de se tornar escritor, Epalanga era já internacionalmente conhecido como um dos integrantes do Buraka Som Sistema, grupo de música luso-angolana diretamente responsável pela internacionalização do kuduro — que pode ser precariamente definido como um modelo de música eletrônica nascido nas periferias de Luanda.
Aliás, um dos objetivos do romance (inspirado, segundo o autor, em obras como Carnaval no fogo, de Ruy Castro, e Desde que o samba é samba, de Paulo Lins) é contar a história do kuduro e seu processo de internacionalização, ficcionalizando para isso a própria trajetória da banda, que surge como um dos fios condutores do enredo. Mas a influência da banda não se resume ao plano narrativo. Em linhas gerais, pode-se compreender toda a concepção do romance como integrando o projeto mais amplo do Buraka Som Sistema, que se divide em duas frentes principais: a popularização do kuduro como linguagem pop periférica global (world ghetto music, como define o narrador) e a aproximação do ritmo com outras linguagens artísticas. Também o livro parece obedecer aos impulsos de difusão internacional do kuduro e à fusão do ritmo com outras linguagens — no caso, a literária.
Capítulos musicados
A experiência musical não é aqui acessória, ajudando a compor os sentidos da obra por meio da audição das várias músicas e dos artistas que atravessam o romance desde o início. Nesse aspecto, inclusive, Epalanga demonstra domínio técnico exemplar, dotando cada capítulo de um estilo próprio que, por sua vez, relaciona-se com uma tradição musical específica.
O primeiro capítulo, focado na detenção do autor, trata sobretudo da condição do imigrante e assume uma forma ágil, marcada pelo movimento e pela multiplicação de espaços e lugares, alternando a narrativa do presente da detenção com passagens sobre a história de Luanda, a vida cultural lisboeta e a cena musical europeia, sobretudo em seus bairros negros periféricos. Tudo no capítulo remete a movimento, desterritorialização — não por acaso seu espaço narrativo é o carro em movimento, a caminho do show. É nesse sentido que o kuduro comparece como representante musical dessa internacionalização da cultura negra periférica. O ritmo é apresentado como sendo essencialmente desterritorializado, e sua história e sua luta por vencer as limitações dos poderes locais e seu posterior processo precarizado de internacionalização confundem-se na obra com a própria condição do imigrante africano, que, celebrado internacionalmente como artista de sucesso, é detido como criminoso por andar sem passaporte.
O que dota de vida a música (e a existência) de matriz europeia é precisamente a periferia
Apresentando um novo narrador, o segundo capítulo é de ritmo mais cadenciado, para dançar em pares. O foco é o encontro amoroso entre Mari, professora de dança portuguesa, e Quito, baiano que passa seus últimos dias em Lisboa. Sai de cena o agitado e violento kuduro para ceder lugar aos bailes de kizomba com seus ritmos mais cadenciados e românticos, como a coladera. É fundamental que a música aqui seja mais lenta e menos cosmopolita que o kuduro, remetendo a outra época, pois é esse também o andamento do romance entre Mari e Quito — processo de conquista lento, gradual, como o aprendizado da dança, que é também um encontro com o caráter transatlântico (e mesmo interracial) da cultura periférica.
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Por fim o último capítulo, focado no policial norueguês, o narrador da vez, é de longe o menos musical — o que não significa um descompasso da obra. Ao contrário, a adequação entre forma e conteúdo segue sendo a tônica. Os espaços silenciosos, os intervalos monótonos, os parágrafos longos e lentos remetem ao tipo de relação que se estabelece entre as personagens europeias que trabalham diretamente com a repressão aos imigrantes. São personagens vazias, presas a padrões autodestrutivos e repetitivos que fazem desaparecer a vivacidade e o fluxo dos capítulos anteriores. Ainda que diminua e muito o fluxo musical, este ainda se faz presente. O policial é fã de rap norte-americano, o que já mostra uma relação pouco orgânica da personagem com a música, já que o rap nada tem a ver com a vivência dele. Há, sobretudo, um distanciamento, remetendo antes a algo que se perdeu, um vínculo inexistente e artificial.
Também os brancos sabem dançar é, pois, um belíssimo primeiro romance e uma grata surpresa no universo romanesco angolano. Dotado de domínio narrativo seguro, Epalanga constrói sua obra a partir de um modelo de organização rítmica que apresenta também uma hipótese sociomusical: o que dota de vida a música (e a existência) de matriz europeia é precisamente a periferia, espécie de efeito colateral do colonialismo. O romance, contudo, não deixa de apresentar um excesso de didatismo por razões de ordem estrutural, sendo construído de modo a se complementar com a presença de elementos extraliterários, como vídeos e músicas, conferindo um caráter fragmentário à estrutura, que precisa ser “resolvida” literariamente.
A imagem que Epalanga constrói da música periférica por vezes soa excessivamente clean. Entende-se o objetivo político do escritor em representar a cultura do imigrante como espaço de paz e afirmação de identidade marcada pela festa e pelo amor, em oposição à truculência vazia dos agentes do poder. Mas faz falta um olhar mais apurado para a dimensão de conflito dessa cultura, sobretudo em se tratando da tradição musical angolana, historicamente engajada. Existe algo de violento e agressivo no kuduro — espécie de paródia angolana da dança desengonçada europeia de Jean-Claude Van Damme no filme Kickboxer —, na sua combatividade e sexualidade afrontosa (para padrões europeus), que não comparece de todo no romance.
Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.